ARTIGOS

Coronavírus e nosso enigma civilizatório

por André Márcio Neves Soares

O divulgador científico e autor do livro “Spillover: Animal Infections and the Next Human Pandemic (“transbordamento: infecções animais e a próxima pandemia humana” em tradução livre), David Quammen, um materialista darwiniano declarado, é bem claro a respeito do que representa essa pandemia:

“Os humanos são mais numerosos do que qualquer outro grande animal na história da Terra. E isso representa uma forma de desequilíbrio ecológico que não pode continuar para sempre. Em algum momento haverá uma correção natural. Ocorre com muitas espécies: quando são muito numerosos para os ecossistemas, acontece algo com elas. Ficam sem comida, ou novos predadores evoluem para devorá-las, ou pandemias virais as derrubam. Pandemias virais interrompem, por exemplo, explosões de populações de insetos que parasitam árvores. Aí existe uma analogia com os humanos”.

Com efeito, se somos mais de 7 bilhões de pessoas, nenhum animal se compara ao nosso grau de evolução na terra. Mas isso é um problema enorme nesse momento de pandemia. A extraordinária capacidade de reprodução da nossa espécie, seja pelas vantagens biológicas adquiridas, seja pelos progressos científicos concretizados ao longo de nossa existência, oferece a essa nova onda pandêmica maiores e melhores oportunidades de autorreprodução. De fato, acionamos uma espécie de bomba-relógio quando passamos de um mero “ser-a-mais” na natureza para o topo da cadeia alimentar, entre todos os seres vivos, sem um botão de “desativação” dessa bomba-relógio. A ciência tem sua parcela de culpa nesse processo. É mais do que sabido que a globalização acelerou o ritmo no planeta em todos os níveis, inclusive para os maus momentos como esse.

Realmente, esperar que um sistema econômico como o capitalismo – em que a ganância é sinônimo de fortuna, e fortuna é sinônimo de sucesso – se atentasse para a grave crise sanitária que se avizinhava, é ignorar aquela fábula do escorpião, que precisava atravessar o rio, persuadiu o atravessador (seja ele peixe, sapo ou quem fosse) a ajudá-lo e, no meio do rio, picou-o, mesmo ciente de que ia morrer junto com ele. O instinto falou mais alto. Assim é também no capitalismo: apesar dele saber que estará morto no longo prazo, a cada dia se renova para durar um pouco mais.

O pensador francês Bruno Latour (antropólogo, sociólogo e filósofo) é um dos maiores críticos desse sistema parasitário. Num breve texto, intitulado “Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise”, ele declara, espantado, a capacidade do novo coronavírus de fazer o que nenhuma ideologia ou luta de classe jamais conseguiu, a saber, desacelerar, suspender, redirecionar o sistema econômico capitalista.

Com efeito, a globalização tem como roteiro final a fuga total das restrições planetárias. O novo coronavírus, a despeito do discurso oficial generalizado, pode estar propiciando uma oportunidade ímpar aos donos do capital para esterilizar qualquer entrave rumo ao ato final da desregulamentação do que restou do Estado do bem-estar social, bem como das migalhas oferecidas pela rede de proteção em favor dos menos favorecidos, nos países que nunca chegaram a conhecer esse modelo social-democrata do pós-guerra.

Aqui faço uma importante crítica ao texto de Latour, qual seja, o seu não-pensamento explícito sobre a contradição inerente na concepção de proteção dos capitalistas e seus filhos e a incapacidade explícita da economia continuar como está. De certo que ele pensou nisso. Afinal, ao dizer que os adeptos da globalização estão a “construir fortalezas que possam garantir seus privilégios, bastiões inacessíveis àqueles que terão de ser deixados para trás”, Latour reconhece que os capitalistas “não são ingênuos a ponto de acreditar no grande sonho modernista da partilha universal dos ‘frutos do progresso’”.

Como mudar, ipso facto, o nosso destino histórico de que “nunca aprendemos a morrer” (Mbembe, 2020)? De fato, esse pensador camaronês, talvez um dos grandes arquitetos do que eu poderia chamar de “neohumanismo” da atualidade, faz essa afirmação impactante no seu último artigo denominado “O direito universal à respiração”. Mbembe sabe que essa pandemia não acabará com o ser humano. A preocupação dele está nos danos gerais que o novo coronavírus causará à nossa espécie, e à biosfera por tabela, num momento de exponencial propagação de outro vírus em conjunto, qual seja, o neoliberalismo brutal, ou “Brutalisme” (Brutalidade), não por acaso o título do seu mais recente livro (ainda não traduzido para o português).

Efetivamente, se o pior ainda está por vir, é deveras interessante que ele comente que muitos não passarão pelo buraco da agulha, talvez uma referência a Robert Kurz, o filósofo alemão oriundo da Escola de Frankfurt, no seu artigo intitulado “A comercialização da alma”.

Ora, Mbembe diz a mesma coisa quando qualifica nosso tempo como “Tempos sem garantia de promessa, num mundo cada vez mais dominado pelo medo do seu próprio fim”. Em outras palavras, a vulnerabilidade de todos nós está escancarada pela redistribuição desigual cada vez maior, a qual só poderá ocasionar novas formas de violência brutal nesse processo contemporâneo de esgotamento físico e psicológico.

Contudo, esse pensador camaronês também não nos envia uma resposta concreta sobre como evitar essa nova ordem global de irracionalidade e crise sanitária. O máximo que chega a evidenciar é o perigo desses dois vetores da nova ordem tornarem impossível a continuidade de toda e qualquer forma de vida.

O pensador bielorusso Evgeny Morozov. No seu último artigo, intitulado “Solucionismo, nova aposta das elites globais”, ele aponta para algo extremamente perturbador, a saber, que essa estrada vicinal, o “solucionismo”, criada no Vale do Silício, pelas mesmas pessoas que aceleraram o capitalismo clássico, para transformá-lo no neoliberalismo, agora implantam tecnologia para evitar a política.

Para tal desidério, Morozov questiona algo surpreendente: se essas duas ideologias, neoliberalismo e solucionismo, estão tão imbricadas, como a tecnologia pode virar um obstáculo? A resposta curta, mas não simples, está no fato de que um mundo em vasta abundância pode chegar a ser apenas compartilhado, mas não apropriado. Em outros termos, o mundo do capitalismo 24/7, do fim do sono, que nunca se desconecta, pode ser perigoso para o mercado físico, a efetiva apropriação da riqueza material, caso esse mundo virtual se desligue do que realmente importa ao mercado: o consumo. A solução encontrada pelos portentosos do poder também foi simples: encolher a imaginação coletiva, segundo esse pensador. Ou seja, vetar qualquer experiência tecnológica que tenha substância política.

As democracias tecno-autoritárias tão dependentes desse novo universo digital, se não podem mais esconder o novo coronavírus, e muito menos a próxima pandemia, subvertem a ordem e a encerra em evidência apologética da vigilância total.  Entretanto, entendo que o pensador em questão também não apresenta uma saída prática para o problema ora em evidência. No máximo adverte para a necessidade urgente de um novo pensar pós-solucionista, que vise resgatar a soberania pública diante das plataformas digitais.

Nesse sentido, poderíamos tentar revigorar a crítica com um pensador do nosso país, Paulo Freire (educador e filósofo), com sua obra “Pedagogia do Oprimido”. Nela, Freire busca libertar os homens (contexto de gênero próprio da época) usando a práxis como condição e fundação da ação. Assim, para ele a práxis assume uma função para além da libertação, pois é preciso a compreensão das massas quanto às suas necessidades reais. Quando isto é conseguido, a práxis se torna autêntica, verdadeira, revolucionária, pois possibilita às massas sua adesão e sua oposição contra as elites dominadoras.

Já para Zygmunt Bauman (sociólogo e filósofo polonês), todo ser humano tem dois lados: ele é uma benção e uma maldição. Se um dia voltar a deixar prevalecer seu lado “benção”, talvez ainda dê tempo de resgatar os laços de verdadeira amizade que estão em desuso, pela troca desse mundo vivo, real, empírico, pelo mundo virtual, instantâneo, disforme, ou seja, fluído. O problema é que ele e sua “fórmula de ouro”, isto é, Liberdade e Segurança, deixa de lado a Igualdade, essencial para o reconhecimento da totalidade social.

O retoque final seria a pensadora Nancy Fraser, filósofa estadunidense, e sua Teoria Crítica com forte ênfase sobre a Justiça. Com efeito, para Fraser (2007), a Justiça requer tanto redistribuição quanto reconhecimento. E nenhum deles sozinho é suficiente. Em verdade, o que ela está querendo dizer é que tratará de pensar as reinvindicações por reconhecimento como reinvindicações por justiça, como uma forma de pensar amplamente a justiça.

Civilizatório é sair do estado primitivo, desenvolver. Enigma é algo difícil de compreender, uma ambiguidade. Logo, o título desse texto retrata quão árido é o entendimento da própria história da nossa civilização. Mais de 10.000 anos depois da primeira grande revolução humana, a saber, a agricultura, a sociedade do homo sapiens ainda está longe de algum tipo de emancipação social coletiva. Nesse sentido, as fórmulas isoladas de mitigação dessa pandemia civilizatória dos autores citados, a saber, a práxis de Freire; a fórmula de ouro de Bauman, incrementada pelo status da Igualdade, perfazendo um triunvirato Igualdade-Liberdade-Segurança; e a Justiça de Fraser podem, talvez num novo pensar, reunir as condições necessárias para desvelar esse enigma de civilidade entre os cidadãos.  

ANDRÉ MÁRCIO NEVES SOARES é doutorando em Políticas Sociais e Cidadania pela UCSAL – Universidade Católica do Salvador

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. A benção e a maldição dos laços humanos. https://www.youtube.com/watch?v=3boQ4hB6aXU;

CRARY, Jonathan. 24/7 CAPITALISMO TARDIO E OS FINS DO SONO. São Paulo. Cosac Naify. 2014;

FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética? http://www.scielo.br/pdf/ln/n70/a06n70.pdf;

FREIRE, Paulo Reglus Neves. A Pedagogia do oprimido. São Paulo. Editora Paz e Terra. 2013;

KURZ, Robert. A comercialização da alma. http://www.obeco-online.org/rkurz77.htm;

LATOUR, Bruno. Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise. https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5243658/mod_resource/content/0/B%20Latour%2C%20Imaginar%20gestos%20que%20barrem.pdf

MBEMBE, Achille. O direito universal à respiração. https://www.buala.org/pt/mukanda/o-direito-universal-a-respiracao;

MOROZOV, Evgeny. Solucionismo, nova aposta das elites globais. https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/solucionismo-nova-aposta-das-elites-globais/;

QUAMMEN, David. https://brasil.elpais.com/ciencia/2020-04-19/david-quammen-nossas-demandas-do-mundo-natural-tendem-a-aproximar-de-nos-os-virus-que-vivem-em-animais-selvagens.html;

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