por Eduardo Newton

O historiador Eric Hobsbawn produziu magníficas obras e por essa razão sempre merece ser lido. A partir de um elemento identificador de uma certa temporalidade, escreveu A Era das Revoluções, A Era do Capital, A Era dos Impérios e A Era dos Extremos. Não seria nenhum exagero imaginar que o atual período fosse denominado como o das incertezas, da flexibilização e da incoerência.
No Brasil, essa época adquire uma conotação mais evidente, uma vez que tudo pode ser flexibilizado, tornado incerto ou ser incoerente por meio de decisões estatais. O estado do Rio de Janeiro e o município do Rio de Janeiro, apesar do grave quadro pandêmico desencadeado pelo COVID-19, decidiram afrouxar as regras do isolamento social. De maneira correta, e isso deve ser ressaltado, duas instituições públicas – a Defensoria Pública do estado do Rio de Janeiro e o Ministério Público do estado do Rio de Janeiro – vieram a questionar, por meio de uma ação civil pública, decretos emitidos por esses entes da federação. Em 08 de junho passado, o juiz de direito Bruno Bodart suspendeu alguns artigos do Decreto Municipal nº 47.488 e do Decreto Estadual nº 47.112, até que fossem apresentados estudos científicos nos moldes fixados pela Presidência da República e pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
Não resta dúvida de que essa decisão judicial se mostrou marcada por uma louvável prudência. Não impôs um impedimento de caráter definitivo, mas somente condicionou a mudança do status quo à apresentação de documentos idôneos a justificar o arrefecimento do isolamento. Foi ainda aprazada uma audiência com a participação das partes do processo e dos secretários de saúde do estado do Rio de Janeiro e do município do Rio de Janeiro, a fim de que forneçam subsídios para a reavaliação das medidas determinadas na decisão liminar.
Antes mesmo que fosse realizada o ato processual agendado, quando as partes poderiam expor seus pontos de vista e uma solução dialógica e democrática poderia ser alcançada, no dia 09 de junho, ou seja, na data seguinte à decisão liminar, com lastro à economia pública, se deu o fenômeno da “suspensão da suspensão”.
A Justiça fluminense, por meio de um instituto de duvidosa constitucionalidade, entendeu que até o trânsito em julgado da ação civil pública não seria possível cumprir a decisão liminar proferida pelo juízo de 1º grau. A partir da leitura da fundamentação empregada, depara-se com duas linhas argumentativas: o risco à ordem econômica e a impossibilidade de interferência do Judiciário nas escolhas realizadas pelo Executivo. Essas duas construções merecem ser desconstruídas, uma vez que são construídas em bases fragilíssimas.
O risco à ordem econômica, além de demonstrar o manejo retórico de um conceito jurídico indeterminado, denota, nesse caso, a evidente adoção de uma visão de mundo pautada exclusivamente no capital. Vidas vêm antes de qualquer negócio jurídico ou empreendimento empresarial. O Texto Constitucional, em seu artigo 1º, não menciona o princípio da dignidade da res ou do capital, mas sim da pessoa humana. Aliás, não é por outra razão que é invocado o consequencialismo na decisão que suspendeu liminar e que impedia o afrouxamento do isolamento social sem bases científicas. O risco de perecimento de empregos, o que poderia repercutir na fruição do direito à vida, não pode ser considerado como um argumento sério utilizado pela Justiça Fluminense, pois quando ocorreu a impugnação pela liberdade das pessoas presas de liberdade não foi dada a mesma consideração; ao contrário, o que se viu foi um pedido de suspensão incabível em sede de habeas corpus que impediu com quem pessoas pudessem sair das masmorras que compõem o sistema prisional. É a razão neoliberal que permeia a decisão que permitiu o flanar pelas ruas da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro e isso não pode ser menosprezado.
A alegada impossibilidade de interferência no Poder Executivo pelo Judiciário tampouco goza da mínima idoneidade. Como dito, a decisão de 1º grau não adquiriu contornos de impedimento definitivo. A suspensão da liminar adquire contornos graves, pois demonstra, o que é comum na atual quadra, o desprezo pelo conhecimento científico. Quiçá, tenha faltado tempo, já que se trata de um nítido caso de célere e equivocada prestação da tutela jurisdicional, questionar a própria existência do cenário pandêmico ou mesmo invoque a condição de uma gripezinha para permitir o funcionamento do comércio.
A desconstrução dos argumentos utilizados na decisão proferida pela Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro indica a gravidade do atual cenário. Não se tem certeza sobre as decisões judiciais, já que podem ser rapidamente substituídas por outras. É possível flexibilizar conceitos jurídicos e mesmo a relevância do conhecimento científico em prol da necessidade de empresas lucrarem e o Estado arrecadar.
Mas, ainda resta examinar a incoerência que veio a ser brevemente mostrada nesse artigo com o tratamento conferido aos presos. É preciso aprofundar essa questão, pois a mesma autoridade pública que flexibilizou o isolamento social mantém os prédios forenses trancados. Ora, o povo pode ir as ruas, mas não pode ingressar nos palácios da justiça? Audiências são realizadas por meios nitidamente ilegais e que possuem como quadro normativo a vontade de quem não é legislador. Tal como a iniciativa privada, a “Justiça” necessita de números, de estatísticas de decisões proferidas, mesmo que sejam concebidas fora do Estado de Direito.
As audiências de custódia merecem uma menção em separado. Suspensas e não se sabe até quando, pois existe o pleito, que veio a ser apresentado por determinado órgão de classe, de ser mantida a dispensa de sua realização[i]. O preso por ser descartável na lógica neoliberal não tem o direito de fruir a flexibilização do isolamento, resta a ele o risco decorrente da sua situação de estar enjaulado. Simbolicamente já foi eliminado e no mundo dos fatos corre esse sério risco, ainda mais quando se leva em conta o Estado de Coisas Inconstitucional.
Com o intuito de concluir, é importante ter em mente que essa justiça que marca a era das flexibilizações, das incertezas e da incoerência pode ser muito bem compreendida por uma frase, caso examinada a sua realidade de fechamento, o Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro predica, mas não pratica. O risco pela frouxidão no isolamento pode ser suportado pela população, mas não por ele que prefere se valer de jeitinhos tecnológicos para expor números à sociedade. Hobsbawn teve a sorte de não escrever sobre a atual época; assim foi poupado dos sentimentos de tristeza e desesperança.
EDUARDO NEWTON é mestre em direito pela UNESA e Defensor Público no estado do Rio de Janeiro/RJ
[i] https://amaerj.org.br/noticias/amaerj-propoe-28-medidas-para-a-retomada-do-servico-presencial-no-tj/
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Realmente nesses período que vivemos só podemos ter certeza é da incertezas isso por culpa do próprio judiciário , temos uma justiça que se contradiz direto é afrouxamento do isolamento mas como dito no texto os prédio forenses se apegam as novas tecnologias para realização de suas atividades, que época em que vivemos.
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