por Paulo Silas Filho

Quando se romantiza algo, vê-se a coisa com outros olhos – de forma mais apaixonada, com entusiasmo, muitas vezes afoitamente. A romantização em si não constitui uma celeuma, pois permite em algumas situações perspectivas diferentes daquela usual e determinada. O problema se faz pressente quando o objeto da romantização não é algo passível desse fenômeno. Nesse caso, um certo evento ou situação não deveriam comportar visão distinta daquela que representa o que a coisa realmente significa, residindo justamente nesse ponto a problemática da coisa: ver o deploro com bons olhos.
Pretendia escrever um texto mais rebuscado – repleto de referências e com jargões acadêmicos para dar o ar de cientificidade que para muitos é indispensável. Talvez escreva algo nessa linha com o tempo e reflexão devidos e necessários para uma abordagem nesse viés sobre o tema. Mas, pelo menos para o momento, optei por essa escrita terapêutica (como uma espécie de desabafo sobre algo que me atormenta) que pode ser lida como conversa de bar, servindo como proposta de reflexão sobre o problema aqui exposto para discussões futuras.
Já expus brevemente o que quero dizer por ‘romantização’. Digo agora sobre os outros dois termos presentes no título. Por ‘violência’ deve aqui ser compreendida toda e qualquer forma de ofensa significativa contra algo ou alguém, seja física, seja psíquica, seja patrimonial, enfim, como algo estrutural que permeia as tantas relações entre as pessoas. Já ‘belo’ deve ser lido como aquilo que está inserido no imaginário social do que isso representa, que ao mesmo tempo é permeado por tratativas filosóficas sobre o conceito, enquanto também repercute naquilo que pode ser compreendido como o padrão de beleza estabelecido de forma geral pela sociedade.
Feitas essas considerações prévias, à proposta do problema, portanto. A questão que me chama a atenção é o peculiar fenômeno de como o belo é capaz de produzir a romantização da violência. Isso é visto com notoriedade e sem qualquer disfarce em alguns âmbitos. Quando é fulano ou beltrano que praticam determinado ato, por serem ‘boa gente’, relativiza-se suas ações, seja ignorando a violência perpetrada, seja dando outro sentido ao ocorrido.
Trago um exemplo atual e recente que ilustra essa minha inquietação. “365 Dias” é um filme recém lançado que está disponível no catálogo da Netflix. A película causou alvoroço, arrancando suspiros do público que se viu cativado pelo enredo quente que permeia o filme, conquistando diversas pessoas a ponto de situá-lo como um dos mais vistos nos últimos dias na plataforma. Por mais que tenha agradado muita gente, o filme é ruim. O enredo é péssimo. A história é forçada e destoa de uma narrativa coerente e satisfatória. Sobre esse ponto, podem me dizer que se trata de uma questão de gosto ou de opinião. Pode ser – eu mesmo sou fã de filmes de zumbi (quando muitos são passíveis dessa mesma crítica com enfoque no enredo), mas ainda assim ressalto essa crítica: se retiradas as cenas de sexo do filme, não sobra nada que agrade.
O cerne da questão posta, porém, não é a qualidade duvidosa do filme, mas a romantização feita sobre o peculiar relacionamento que nele se desenvolve. Em resumo (até mesmo por nem ser possível ir além de um resumo, já que a construção das personagens é bastante simplória de modo a não se permitir qualquer análise mais profunda): um mafioso sequestra uma mulher que julga amar e a aprisiona até que ela se apaixone por ele. Uma espécie de Síndrome de Estocolmo planejada e forçada. Esse é o casal de protagonistas do filme. O que se desenvolve a partir disso é no mínimo bizarro: (muito) sexo, amor, casamento e concepção. Como dito, a trama é ruim, mas que acaba por agradar a muitos por toda a lascívia nela presente.
Visto de forma ingênua, o filme é um soft porn que apresenta uma improvável história de amor, causando deleite no espectador quando os protagonistas finalmente se tornam um casal. Por esse ângulo, impede-se de enxergar toda a podridão que reside naquele relacionamento: o rapaz é também um assassino; o contato entre o casal se inicia através do sequestro; as ameaças do homem contra a mulher são feitas abertamente; a mulher está em situação de cárcere privado; o rapaz controla a vida toda da mulher – antes, durante e depois do sequestro; o suposto amor declarado pelo homem é na verdade uma patologia gritante (que tem origem no início do filme e se perpetua por toda a trama); isso para dizer o mínimo. Mas para todos esses fatos se faz vista grossa, pois a atenção acaba sendo dada para o sexo e para a boa aparência das personagens.
Eis o primeiro problema da coisa toda: a romantização do que de fato representa a situação vivenciada pelo casal do filme. Mas há um algo mais aí que acaba por potencializar a problemática: o belo que constitui as personagens. Ambos são bonitos, homem e mulher. Aparência que atrai. Corpos sensuais. Erotizados. Isso parece bastar para justificar a violência toda, impedindo de se enxergar o aspecto turbulento que constitui a história.
De fato, o por muitos tão criticado padrão de beleza repercute a ponto de se fazer vista grossa e, pior, até mesmo se encantar por alguém ou por uma relação que é violência pura. Proponho o seguinte exercício mental: substitua o ator que interpretou o mafioso por alguém considerado feio, de aspecto rude e odioso, sem os atributos que caracterizam o erótico, o sensual, o belo. O aceite do público para com a relação, com a história, com o suposto amor que envolve o casal seria o mesmo? Está aí algo a se (re)pensar.
“Mas é só um filme”, podem dizer. E realmente é. O problema nem é tanto a ausência de uma reflexão crítica sobre a história nele presente. Como dito, provavelmente o que fez o sucesso do filme são as várias cenas eróticas. E só. A grande questão reside no fato de que a celeuma aqui posta é um reflexo direto do que se observa na sociedade em geral: as várias situações que de algum modo se assemelham ao filme mas que são relativizadas por conta do aspecto do belo que se faz presente. O aceite passivo do espectador, sem qualquer estranheza ou problematização da relação supostamente amorosa do filme – dado o enfoque no belo (na aparência, na sensualidade, na lascívia…) –, talvez seja um sintoma da normalização da violência que hoje se vive.
Sobre o casal da película que, direta ou indiretamente, é reflexo de muitas relações na nossa realidade: não é um romance. É abuso. É violência. É crime. É triste.
Enquanto hoje, com enfoque próprio, costuma se abordar por esse viés crítico grandes obras literárias como “Otelo”, de Shakespeare, ou “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, enxergando e pontuando ali, no amor suposto de Otelo ou Bentinho, a questão da violência que se faz presente de tantas formas, uma obra audiovisual como “365 Dias” parece arrebatar muitos críticos sociais inclusive a ponto de se fazer esquecer ou ignorar o imbróglio que também ali presente está. As cenas quentes fortemente presentes no filme talvez não permitam ver o verdadeiro problema da coisa – assim como quando rimos de uma piada racista, homofóbica ou preconceituosa em geral sem nos darmos conta disso.
Essa problemática não é exclusiva no âmbito das relações com violência. Se levarmos em conta uma expansão do conceito de ‘belo’ aqui considerado, podemos apontar para várias personalidades (líderes políticos – de todos os lados -, atores, escritores, professores, filósofos…) que muitas vezes têm suas falas e ações relativizadas por serem belos: bonitos, cativos, persuasivos, notórios, famosos ou até mesmo pelo simples fato de compartilharem uma mesma ideologia que a nossa.
Não se trata necessariamente de um escárnio para com pessoas, relações e obras em que são produzidas e reproduzidas várias formas de violência. Trata-se, antes, da capacidade de enxergar o problema que reside nos recônditos dessas situações tantas. O belo corrobora para ocultar a violência. Que estejamos sempre atentos. Fica aqui o alerta e a proposta para reflexão.
PAULO SILAS FILHO é professor de Direito na UNINTER e Unc, mestre em Direito e advogado
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Paulo, parabéns pelo texto. Concordo com suas observações e também achei o filme integralmente ruim.
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