por Juan Manuel Domínguez

“Somos nós, pessoas dotadas de razão, as que temos que repensar radicalmente e restringir o capitalismo destrutivo.” Byung-Chul Han, “A emergência viral e o mundo de amanhã”, El País, 2020
Herbert Marshall McLuhan, filósofo e teórico da comunicação canadense, desenvolveu, no decorrer do século XX, o termo “aldeia global” para descrever um planeta em que o avanço tecnológico no transporte e nas telecomunicações diminui as distâncias e aproxima a população, de modo a considerar o mundo uma aldeia.
Pouco depois, o termo “globalização” viria à tona para descrever um processo acelerado em que o predomínio da identidade cultural ocidental iria se cruzar com o resto das culturas e dos povos do mundo. O mundo, de forma cada vez mais acelerada, se definia através do olhar do ocidente, como a extensão final e definitiva da era das colonizações.
E é nessa “aldeia global” ora “globalizada” que o COVID-19 se inscreve historicamente para abrir, assim, através da sua letal presciência, uma nova era da nossa história.
O COVID-19 chega em um momento de hegemonia plena do neoliberalismo no mundo. Não importa quanto queiram nos assustar com o monstro da Coréia do Norte, com o aterrorizaoa Irã, ou o sacrificado Nicolás Maduro. A estrutura mundial atual de poder se define pelos parâmetros neoliberais de um setor de capital concentrado, anônimo, agressivo e que impõe sua vontade sobre estados muito enfraquecidos, ajudado por uma rede de mídias monopólicas que se valem de múltiplos artifícios para dissolver toda forma de construção coletiva de resistência.
Esse capital transnacional, anonimamente feito a partir de uma mistura de celebridades bizarras e de entes que recusam se dar a conhecer, tem criado uma eficaz rede de interesses ao redor do planeta, semeando, desde diferentes redes de construção de sentido (redes sociais, TV, rádios, grandes redes de igrejas) uma letal mistura de desigualdade social, patriarcalismo doentio e consumo desenfreado.
O futebol, fenômeno densamente interiorizado no nosso cotidiano, é um exponente fiel desse cenário. Há anos sabemos como o negócio-futebol pode mudar para sempre a realidade financeira de uma pessoa de baixa renda, de uma forma inimaginável por outros caminhos dentro do jogo capitalista. Os salários enormes e surreais dos jogadores de futebol mostram como o sistema, por diversos canais selecionados, instaura o conceito de hiper-riqueza e o normatiza constantemente.
Claro está que esses jogadores de futebol não são os grupos concentrados de capital capazes de amedrontar, desestabilizar ou mesmo derrubar governos através da ação midiática, política ou judicial, afinal, sabemos que cada dia precisam menos dos golpes de estado armados. Porém, jogadores de futebol, atores de hollywood ou apresentadores de TV, funcionam como agentes simbólicos que consolidam e legitimam a desigualdade com aplausos dos que pagam o preço por ela.
É nesse cenário dominado e ameaçado por essas elites que o COVID-19 apareceu. E é diante dessa situação de aniquilação e morte massiva que não escondem seu desprezo pela vida daqueles com os quais coabitam nesse mundo. Em um momento de morte iminente, o capital mostra de forma escancarada sua irracionalidade, histeria e egoísmo. Mesmo que o Brasil seja o exemplo mais patético disso, a situação se repete, com maior ou menor grau, em todos os pontos do planeta.
Não parece casualidade que, dos quatro líderes políticos americanos que tiveram atitudes de menosprezo à situação (Trump, Bolsonaro, Piñera e Obrador), três sejam os maiores representantes da ideologia neoliberal na região. De fato López Obrador é o único caso de um presidente da asa progressista que tem tomado uma atitude tão desacautelada ante a pandemia.
Os que detém as maiores riquezas acumuladas estão em silêncio ou pedindo o sacrifício de vidas humanas, para assim não frear a grande máquina de produzir desigualdade. O sistema está nu, e não é mais possível esconder com alienação sua fatal realidade. Sabemos que nesse momento a máquina neoliberal está imobilizada pela presciência do coronavírus. Esse momento oferece tempo a quem não participa do banquete de preparar analises e ações.
É momento de escrever, de mostrá-la, nua com está, em toda sua anatomia podre. É momento de inaugurar debates sobre seu funcionamento, sobre seus mecanismos e sub-mecanismos ocultos e insondáveis. A miséria que já produziu está exposta diante dos nossos olhos. Mas, agora, a certidão de que esse capital acumulado poderia salvar vidas de maneira imediata começa a deixar alguns ruborizados. Na Espanha, já existem pedidos que viralizaram na internet para que gente da classe frívola (jogadores, atores e apresentadores) façam doações mínimas para os hospitais que hoje não dão conta da situação. “Como reagir ante atores que dedicam tantos minutos para dar discursos de boa moral nas entregas de prêmios e hoje permanecem em silêncio diante do desespero de tanta gente?” , se perguntam alguns espanhóis.
As pessoas não estão sendo obrigadas a ir trabalhar para melhorar suas opções diante da realidade manifesta. Elas estão indo trabalhar para que o sistema não eleve seus níveis de miséria (já de por sí vergonhosos) ao ponto de torná-lo intolerável. Vídeos publicados recentemente mostram trabalhadores na cidade de Nova York, a cidade mais afetada no mundo, usando o metrô em massa para ir realizar sua função. Nas imagens, dá para ver que sua maioria são afrodescendentes, arriscando suas vidas para manter “serviços essenciais” funcionando na cidade onde ainda tem lugar o maior empório financeiro do mundo, a temível “Wall Street”.
Depois do HIV, pela primeira vez na nossa história, estamos ante um fenômeno que transcende todas as fronteiras e que não vai deixar lugar no mundo onde se resguardar. Pela primeira vez, mundialmente, falamos sobre sistemas de saúde e sobre a necessidade de virar um pouco o jogo da distribuição da renda. A diferença com o HIV (que rapidamente se tornou um vírus estigmatizante, em uma sociedade estigmatizada) é que o coronavírus não nos dá um via de escape segura (como seria o cuidado com a transmissão de fluídos no caso do HIV). O COVID-19 funciona como uma espécie de roleta russa. Mesmo quando já sabemos identificar os grupos de risco, ainda assim permanece indefinido o padrão de vulnerabilidade imunológica que tornaria a infeção menos mortal.
Esse que certamente será um fenômeno histórico fundamental do nosso tempo, talvez seja também o batismo de uma nova era. Temos descartar o roteiro de Hollywood para esse tipo de catástrofes: nossa história com o coronavírus não terminará com um emotivo discurso do presidente dos Estados Unidos e com todos nós, de mãos dadas, consentindo com a cabeça e nos culpando por ter perdido a fé no nosso amado patriarca. Não, não será esse o desfecho.
As vozes críticas desse mundo se fazem cada vez mais presentes a partir das redes sociais e das mídias alternativas. A esperança de que a crise torne essas vozes mais influentes mora no peito de muita gente. Em muitos casos, dos donos dos corpos que hoje não tem o privilégio de se resguardar cautelosamente dentro das suas casas. O capitalismo neoliberal está eventualmente imobilizado pelo vírus, e não parece estar muito preocupado em salvar a vida dos mais marginalizados que ainda hoje se sacrificam mais do que ninguém para fazê-lo funcionar.
JUAN MANUEL DOMÍNGUEZ é militante, professor, escritor, jornalista, roteirista, produtor e diretor de cinema. É também fotógrafo de documentários que fazem a defesa dos direitos humanos
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Não existe a salvação sozinha a salvação só vingará se for em grupo com disse o Papa Francisco.
A casa construída sobre a areia. O corona vírus refuta todas as teses do neoliberalismo.
O neoliberalismo é como uma casa construída sobre a areia,justamente por colocar o mercado a acima de tudo, o lucro mesmo em meio a debacle.
A escola de Chicago formadora de Paulo Guedes diz claramente,
O único direito é o direito do mercado, a pobreza não se trata de uma questão ética e sim técnico.
Os pobres são pobres pela própria culpa, pois perderam na concorrência com os outros.
Uma visão absolutamente mercadológica, vil e desumana.
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