por Afrânio Jardim e Djeff Amadeus

Esta postulação será entregue, em mãos, ao Procurador Geral da República, porque o Ministério Público, no período democrático, enquanto fiscal da lei, estará diante de uma das maiores provas de sua função como órgão defensor da ordem jurídica e do regime democrático.
Permita-nos explicar o porquê.
Segundo noticiado pela Globo, G1,[1] será lançada uma campanha publicitária pelo Governo Bolsonaro, sem licitação, na qual o Governo Federal incentivará brasileiros e brasileiras a voltarem à “normalidade”, vale dizer, voltarem aos seus postos de trabalho, em clara desobediência às normativas da OMS, bem como às determinações do poder público, editadas pelo Ministério da Saúde e pelos Governadores dos Estados.
Ou seja: em meio à pandemia, onde a palavra de ordem do governo tem sido a contenção de gastos, Bolsonaro pretende gastar quase 5 milhões de reais para lançar a campanha “o Brasil não pode parar.”
Ficamos surpresos. Não acreditávamos que, com dinheiro público, pudesse ser feita uma publicidade, sem licitação, que incentive o povo brasileiro a colocar suas vidas em concreto e imediato risco. Incrível!
Importante notar que a atual urgência dispensa licitações apenas para viabilizar medidas administrativas em prol da saúde pública e não contra ela.
Ultrapassada a discussão acerca da (i)legalidade da ausência de licitação, interessa-nos, aqui, uma rápida análise acerca do disposto no artigo Art. 268 do Código Penal, a saber: “Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa: Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa.”
Notem que, no parágrafo único deste dispositivo legal, há previsão de aumento de pena se o agente for funcionário público. E, ainda, o crime admite a figura da tentativa.
Sobre esta temática, o doutrinador Bruno Gilaberte teceu as melhores considerações, com as quais concordamos, ao escrever que “o autor do crime não é necessariamente a pessoa portadora de uma doença contagiosa, embora possa sê-la, mas qualquer pessoa obrigada a respeitar a determinação sanitária: pessoas sob suspeita de contaminação, médicos que devem adotar determinados procedimentos, fiscais do cumprimento das medidas etc.”.[2]
Isto decorre do bem jurídico em questão – saúde de pessoas indeterminadas – motivo pelo qual concordamos com Bruno Gilaberte no sentido de que “medidas locais determinadas por governos estaduais, governo distrital e prefeituras, tal qual os atos normativos federais, servem à configuração do crime, pois, quando se fala em saúde pública, há peculiaridades regionais que não podem ser desprezadas.”[3]
Sendo certa a existência da Lei Federal 13.979/2020 que estabeleceu normas gerais, bem como a existência de normas regionais, a exemplo do Decreto nº 48.809, de 14 de março de 2020 que, inclusive, serviu de base para a detenção de uma pessoa que objetivava organizar uma manifestação, ficamos a nos perguntar por que algo semelhante ou ao menos uma investigação não acontece com o Presidente Bolsonaro?
A propósito, além da referida publicação, o atual Presidente da República, endossando claramente os respectivos conteúdos, fez divulgar, em suas redes sociais, vários vídeos toscos, incentivando a população a deixar as suas casas, desobedecendo a regras impostas pelos governos estaduais e municipais:
Conforme entendimento já firmado pelo Supremo Tribunal Federal, a prática por parte do Presidente da República, durante o seu mandato, impede a sua responsabilização penal, conforme dispositivo constitucional, mas não impede a investigação da conduta delituosa e a respectiva persecução penal.
Ficamos a nos perguntar, ainda, qual seria a reação do Ministério Público se o ex-presidente Lula, com uma suspeita de corona vírus, aguardando o exame, convocasse uma manifestação – contrariando o poder público – e, além disso, ainda cumprimentasse e abraçasse os manifestantes?
Perguntamo-nos, também, como seria a reação do Ministério Público se, com dinheiro público, sem licitação, contrariando as normas da OMS e do Poder Público, o ex-presidente contratasse uma empresa de publicidade para convocar o povo a ir às ruas, em desobediência aos decretos estaduais de recolhimento domiciliar, recomendado pelo seu próprio Ministério da Saúde.
Não há dúvida de que Dallagnol, Moro e toda a sua turma tratariam de incriminar o ex-presidente Lula para investigar a suposta prática do referido crime; isso se não vislumbrassem a prática de “terrorismo” …
Desta forma, nos termos da legislação processual penal em vigor, esperamos que, em face desta “notitia criminis”, o Ministério Público Federal tome as medidas persecutórias pertinentes.
Ao Ministério Público foi dada a missão de fiscal da Constituição, embora isto possa ser um nada se seus membros, na condição de fiscais da legalidade constitucional, não responderem corretamente à função que lhes foi confiada pela nação.
Quedar-se inerte neste grave momento importa em grande desprestígio para esta relevante instituição e também caracteriza, ao menos, uma demonstração de desapreço pela saúde de nossa população.
Rio de Janeiro, 27 de março de 2020
AFRÂNIO JARDIM é Procurador de Justiça do E.R.J (aposentado), professor associado de Direito Processual Penal da Uerj) aposentado. Mestre e livre-docente em Direito Proc.Penal pela Uerj).
DJEFF AMADEUS é Advogado, mestre em direito e hermenêutica filosófica pela Unesa, pós-graduado em filosofia pela PUC-Rio, pós-graduado em processo penal pela ABDCONS-RJ, membro da FEJUNN e do Movimento Negro Unificado (MNU)
[1] https://epoca.globo.com/guilherme-amado/sem-licitacao-campanha-publicitaria-brasil-nao-pode-parar-vai-custar-48-milhoes-24332699
[2] https://profbrunogilaberte.jusbrasil.com.br/artigos/824581464/direito-penal-da-pandemia-covid-19-e-crimes-contra-a-saude-publica
[3] https://profbrunogilaberte.jusbrasil.com.br/artigos/824581464/direito-penal-da-pandemia-covid-19-e-crimes-contra-a-saude-publica
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