ARTIGOS

Goleiro Bruno: quando o não é civilizatório

por Carla Joana Magnano e Djeff Amadeus

A consciência histórica, segundo Gadamer, é o principal acontecimento do século XX. Por isso, quando os olhos do mundo estavam voltados para o chanceler alemão Wily Brandt, no memorial da resistência judaica no Gueto da Varsóvia, ele, movido pela vergonha em razão do holocausto, olhou para o chão, dobrou as pernas e ajoelhou-se para o mundo.

Também movida pela vergonha, Anna Schmitz, personagem da obra O Leitor, de Bernhard Schlink, depois de aprender a ler, envergonhou-se dos atos que praticara durante o nazismo e, por isso, num ato de dignidade, como forma de tentar reparar os males que causara, suicidou-se.

A vergonha que constrangeu Anna Schmitz e Wiy Brandt somente é possível com consciência histórica. Ou seria melhor dizer: consciência crítica histórica.

Com isso, estamos colocando – ou pretendemos colocar – a seguinte questão: a contratação ou não contratação do goleiro Bruno, segundo pensamos, deve ser guiada (exclusivamente) pelo plano da consciência histórica.

Isso porque, analisada sob o viés exclusivamente jurídico, como fazem a maioria dos criminalistas, a discussão é intelectualmente pobre e fraca. O direito é incapaz de esgotar as reflexões desse caso.

Afinal, juridicamente falando, não é necessário muito esforço – daí a maioria sentir-se à vontade – para concluir que o goleiro Bruno, por ter cumprido os requisitos legais, tem direito de continuar sua vida! Mera subsunção. Easy case, pois.

Quanto a isto, aliás, até as pedras sabem. E – até onde se sabe – não há divergência entre elas.

Por isso, para além do direito, a questão aqui deve ser tratada no campo da consciência histórica e, sobretudo, no simbólico, porque, como bem observou Castoriadis, “tudo que se apresenta no mundo social-histórico está, de forma indissociável, entrelaçado com o simbólico.”[1]

Por isso, diz Castoriadis, o gesto do carrasco é real por excelência, mas sempre simbólico na sua essência, o que levou Cassirer a definir o ser humano como um “animal symbolicum”.[2]

Se é verdade que tudo está, de certa forma, entrelaçado com o simbólico, então o foco (não deve) ser discussão em torn,,o dos direitos do goleiro Bruno, já que seus direitos não podem – e não devem – ser retirados.

O foco, então, deve ser no efeito simbólico de sua contratação, já que esta é uma faculdade, que pode ou não ser exercida. Esse é o ponto!

Direito de ser contratado ele tem; mas direito de não contratá-lo também há. E nesse confronto a resposta parece-nos simples: deve prevalecer a não contratação. E aqui, segundo pensamos, trata-se de um dever, que nada tem a ver com a moral, muito menos com qualquer tipo de ponderação de valores, mas sim com a consciência histórica e o efeito simbólico.

Vale dizer: um racista tem direito de participar de uma entrevista de emprego, mas ele não deve ser contratado, por um simples motivo: porque ele é racista. Esse é o ponto! O goleiro Bruno tem direito de ser contratado, mas a consciência histórica e o efeito simbólico obrigam que nenhum clube o contrate, porque os clubes têm responsabilidade social em relação às pessoas que escolhem como possíveis ídolos.

Inclusive porque, neste caso, a idolatria tem um pano de fundo falsamente atribuída ao desempenho profissional, mas muito bem definida se a perspectiva analítica for também critica e histórica. Bruno foi, por diversas vezes, visitado por seguidores e fãs ainda durante o cumprimento de pena, que nem podiam o admirar pelo futebol naquele momento, mas que o idolatravam pelo que era dito no decreto condenatório, por ele ter executado uma mulher, no pais onde matar mulher é admirável.

E uma sociedade como a nossa, que carrega em seu DNA a escravidão, o racismo e o estupro não pode possibilitar que racistas e/ou machistas possam vir a ser colocados em postos de possíveis ídolos. Uma coisa é a reinserção social que a ele deve ser garantida; outra – bem diferente – é querer torná-lo ídolo pelas razoes inseridas no contexto, já que Bruno está a mais de dez anos fora da prática profissional do futebol de alto nível e não é necessária uma enorme apuração esportiva pra concluir que dificilmente ele recuperara a sua mais alta performance, bem como que não é usual que times nem torcedores idolatrem atletas nessas condições de atuação.

Sabendo disso, os clubes têm responsabilidade social pelas pessoas que escolhem para ocupar esses lugares, afinal de contas, se durante o cumprimento de pena ele foi idolatrado pelos atos contidos na sentença ao ser visitado por fãs com mascaras de cachorro e aclamado pelo crime, e se depois de mais de uma década fora de forma não estaria na posição ícone esportivo, não é difícil concluir que os clubes que o possibilitem essa posição estariam, em verdade, interessados na popularidade feminicida de Bruno, que é a única que ele sustenta atualmente.

– Ah, e se ele fosse um grande matemático ou químico, não poderia vir a ser contratado? Poderia, desde que não fosse (ou deixasse de ser) racista e machista, porque uma sociedade formada na escravidão e no estupro tem o dever de dizer não a qualquer racista ou machista! Trata-se de um reparo histórico que o nosso pais tem se negado a fazer através dos séculos.

Não se trata – e que fique bem claro isso – de exigir que as pessoas sejam santas ou retas. Ninguém o é. Absolutamente ninguém! Em todos nós habita um canalha, como bem escreveu Alfredo Naffah. Mas, numa sociedade como a nossa, constituída com base na escravidão, no racismo, rumo ao topo do feminícidio e que mais mata homossexuais, no mundo, é um dever dizer não a quem não se envergonhe desses tipos de canalhices.

O não aqui, aliás, é civilizatório; é, por isso, um dever de qualquer pessoa que tenha o mínimo de consciência histórica.

Todos e todas que estão dizendo não pelas razoes históricas que aqui expusemos devem ser ouvidos e não guilhotinados em nome de um garantismo que jamais foi posto em discussão. Lembremos que as guilhotinas, na vitrine da historia, já levaram a cabeça de gente que falou pra ninguém ouvir.

Galeano conta que nem só os homens perderam a cabeça com ela. Houve também mulheres que a guilhotina matou e esqueceu, pois não eram importantes como a rainha Maria Antonieta.

Três casos exemplares:

Olympia de Gouges foi decapitada pela revolução francesa, em 1793, para que não continuassa a acreditar que as mulheres também sao cidadãs; em 1943, Marie-Louise Giraud avançou para o patíbulo, em Paris, por ter practicado abortos, actos criminosos contra a familia francesa; enquanto ao mesmo tempo, em Munique, a guilhotina cortava a cabeça a uma estudante, Sophie Scholl, por distribuir panfletos contra a guerra e contra Hitler:

– Que pena – disse Sophie – Um dia tão bonito, com tanto sol, e eu tendo que ir embora.

CARLA JOANA MAGNAGO é advogada criminalista e professora de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia

DJEFF AMADEUS é advogado criminalista e mestre em Direito e Hermenêutica Filosófica pela UNESA/RJ


[1] Castoriadis, Cornelius. A instituição imaginária da Sociedade. Trad. De Guy Reynaud. Rio de Janeiro, Pas e Terra, 1982, p. 142.

[2] Cassier, Ernst. A Antropologia filosófica – Ensaio sobre o Homem: Introdução a uma filosofia da Cultura Humana. São Paulo, Mestre Jou, 1972, p. 51

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1 resposta »

  1. Gostei deste artigo, li outros tb, e em um certo artigo sobre o pacote anticrimes não concordo com o Djeff quanto a sua posição, uma vez que as cadeias no dias de hoje estão a contemplar mais pessoas que não se consideram negras, o autor aponta uma realidade não vivida nos dias de hoje no ES, pois a minha afirmação parte do convívio de trabalhadores detentos em um hospital público, o HESVV, em dois anos nenhum negro!! Quanto a Paraisópolis, o que menores estavam fazendo lá? cadê seus pais? considerando que o movimento funk naquele local era constantemente reclamado por moradores devido a orgia no local (sexo, drogas, bebedeiras) com muito barulho. Termino o meu relato dizendo que as leis existem e tem que ser cumpridas, porém temos advogados contra leis que podem vir colocar ordem nesta bagunça que virou o nosso país. Lamento por isso!!!

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