por Eduardo Newton

A cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro foi, em 1565, fundada por Mem de Sá em meio a luta travada com os franceses que ocupavam a ilha de Villegagnon. Adquiriu fama mundial pelas suas belezas naturais, pelo estádio Maracanã, pelo seu carnaval, pelo Cristo Redentor e pelo caráter acolhedor do seu povo. A notoriedade agora, porém, se dá por outra razão, pois nem o melhor ficcionista poderia imaginar que uma nova espécime seria encontrada unicamente nesse mais que centenário município: a besta-fera de Benfica.
Antes de descrever esse estranho ser e oficializar o convite para os mais diversos cientistas o estudarem, é oportuno localizar onde foi encontrado esse animal. Benfica é um bairro carioca que, certamente, já viveu tempos mais felizes, ainda mais quando a nobreza estava sediada na sua vizinhança. Porém, os anos passaram e uma triste realidade se instalou. O imperador foi mandado embora por uma quartelada. O Rio de Janeiro deixou de ser a capital da república e encarou um processo de encolhimento econômico e político. Benfica não passou imune a esse processo. Atualmente, dessa localidade somente três locais são lembrados pela população: o Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes – o Pedregulho, a CADEG e a Cadeia Pública José Frederico Marques. Como consequência das espetaculosas operações de “combate à corrupção”, a unidade prisional acabou adquirindo maior renome; afinal, ex-governadores e importantes agentes políticos já conheceram as celas da “Cadeia de Benfica”.
O que talvez pouca gente saiba – e se aproxima o momento da descrição do ser que foi recentemente descoberto – é que nesta unidade prisional se localiza a Central de Audiência de Custódia da Capital, que tem competência para apreciar as prisões em flagrante de mais de 40 comarcas. A sua inauguração e demais obras sempre se marcaram por pomposas cerimônias, mesmo quando a realidade indicasse que algo não deveria permitir tanta festa e regozijo, vide o noticiado em destacado veículo da mídia:
“Placa de teto de parlatório recém-reformado cai, e TJRJ afirma que a estrutura foi derrubada por gato.
Obra foi entregue há oito dias, em cerimônia da qual participaram autoridades do poder judiciário. Sala serve para que presos sejam entrevistados por defensores públicos e advogados de defesa.
(…)
A entrega da obra ocorreu durante cerimônia no dia 14 deste mês. O presidente do Tribunal de Justiça do Rio, desembargador Claudio Mello Tavares, e outras autoridades que integram o poder judiciário participaram da solenidade.”[i]
A besta-fera, o novo ser descoberto e enxergado apenas por defensores (públicos e privados), somente surge nas salas de audiência. Apesar de a Central de Audiência de Custódia da Capital, tal como já apontado, se localizar em uma unidade prisional sem histórico de fuga, todas as pessoas apresentadas à autoridade judicial são mantidas algemadas no curso da audiência de custódia e isso se dá independentemente da suposta infração que teria ensejado o seu aprisionamento. Afinal, a besta-fera representa um perigo enorme para magistrados, membros do Ministério Público e auxiliares do Poder Judiciário; daí, devem ser contidos com grilhões. Pena, de acordo com os criadores da fera, que as algemas não podem suprimir o odor desse ser vivo. De acordo com essa lógica, aquele ambiente, a sala de audiência, possui poderes mágicos que transforma os mais diversos seres humanos em figuras animalescas e bestiais e que, por isso, devem ser controlados a qualquer custo.
Contudo, há um sério problema no tratamento conferido à besta-fera de Benfica, pois o enunciado nº 11 da Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal deveria impedir esse agir:
“Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.”
Aliás, diante da inversão da lógica contida na citada decisão sumulada do STF, o certo seria denomina-la como Súmula Vacilante, pois é simplesmente ignorada pelos aplicadores do Código de Processo Penal de Benfica (CPPB). A título ilustrativo, extrai-se a realidade ocorrida no dia 13 de janeiro de 2020, quando 73 (setenta e três) pessoas foram apresentadas à autoridade judicial e todas elas foram mantidas algemadas. Caso os números não convençam os meus poucos leitores, são colacionadas as seguintes fotografias tiradas no momento de contenção desse novo ser tido como atávico pelos operadores do CPPB:


Se não bastasse a violação a Súmula Vinculante nº 11 e todo um mosaico normativo que impede a submissão da pessoa a tratamento degradante, a imposição compulsória e generalizada de algemas é a materialização do elitista pensamento da burocracia brasileira, vale dizer, que se acha melhor que o restante da população e somente é capaz mostrar uma valentia com quem não pode esboçar qualquer reação. Se o preso é uma ameaça a todos, por que ele divide celas superlotadas? Aliás, por que não usa algemas no presídio? A preocupação com a segurança é, portanto, seletiva e, o pior, hipócrita.
A besta-fera de Benfica é o retrato do processo penal brasileiro: desumano, seletivo, violador de normas jurídicas e incapaz de efetivar o Texto Constitucional. Nada disso é novo, a única inovação que marca esse novo ser de Benfica é que se perdeu a vergonha em se estigmatizar as pessoas. Segundo essa inconstitucional forma de pensar, se uma pessoa foi apresentada à autoridade judicial é sinal de que algo de errado foi feito e como castigo, pelo menos, ficará com a lembrança dos grilhões na sala de audiência. Há de se lutar pela extinção dessa espécime judicial e enquanto sobreviver os que são capazes de enxerga-lo têm o dever de lutar pelo seu fim.
EDUARDO NEWTON é mestre em direito pela UNESA e Defensor Público no estado do Rio de Janeiro/RJ
[i] https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/08/22/placa-de-teto-de-parlatorio-recem-reformado-cai-e-tjrj-afirma-que-estrutura-foi-derrubada-por-gato.ghtml
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