ARTIGOS

Enterrem o coração de D. Pedro I numa curva do Ipiranga

por Juremir Machado

Há símbolos que não entram na minha mitologia nem na minha cachola, que pode ser estreita como certas conexões de internet ainda disponíveis. Sonho em ter um cérebro 5G. Por enquanto, só tenho perguntas: para que guardar o coração de uma pessoa, mesmo sendo o primeiro imperador do Brasil independente, numa caixa fechada a cinco chaves? Para que trazer essa relíquia macabra de Portugal para as comemorações do bicentenário da nossa emancipação? Fico me questionando: quem quer ver o coração de um homem morto há dois séculos? Patriotas parecem ter essa mania de idolatrar restos mortais.

Li que muitas pessoas gostariam que Portugal mandasse o nosso ouro de volta em lugar de nos emprestar o coração de um autocrata. Os diamantes também poderiam ser devolvidos. O que nunca se poderá restituir é a liberdade de todos aqueles homens e mulheres arrancados da África para viver e produzir como escravizados no Brasil, enriquecendo ociosos portugueses e brasileiros que odiavam trabalhar, como se vê na literatura do século XIX. A história não tem remake. Mas pode ter novas tragédias. Essa ideia de trazer o coração de D. Pedro I para os festejos de 7 de setembro é de um mau gosto exemplar. Não fosse coisa da turma do capitão seria possível dizer que é de cabo de esquadra. Seria de cantar: deixem em paz meu coração até aqui…

O que vale um coração embalsamado? Talvez essa esquisitice talvez tenha a intenção de refutar com duzentos anos de atraso uma acusação feita pelos opositores perseguidos por D. Pedro, de que ele não tinha coração. Em 1972 a ditadura militar também se interessou pelo esqueleto de D. Pedro I. Que coisa mais macabra, necrófila, bizarra. Parem com isso. Pensando bem, com muita cautela e bom senso, talvez toda essa pantomima pudesse resultar em algo com sentido. Quem sabe D. Pedro I, do lugar onde ele estiver, pressupondo-se que mortos ficam em algum lugar acompanhando o que fazemos neste vale de lágrimas, pudesse enviar um recado pelo WhatsApp da psicografia dizendo apenas isto:

– Enterrem meu coração numa curva do Ipiranga.

Nunca se viu louvação cívico-patriótica mais brega.

*

Enquanto isso no elevador lotado de embaixadores.

– O capitão quer dar o golpe, não há dúvidas.

– O que vamos dizer à mídia?

– Que foi só uma maneira de falar, ora.

– Claro, claro. Afinal, somos diplomatas.

– Mas que ele está tentando melar as eleições, isso está.

– É um caso raro: ele vê fraude até quando ganha.

– Como foi que o Brasil elegeu esse cara?

– Entre nós, que somos diplomatas, que cagada!

*

No mesmo momento no café da Câmara dos Deputados.

– Afinal, por que Bolsonaro não sofre impeachment?

– Ora, nobre colega, por causa dos atributos do Arthur Lira.

– Que atributos?

– Bunda grande.

JUREMIR MACHADO é jornalista, professor universitário e doutor em Sociologia pela Universidade de Paris V

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