Por Paulo Ferrareze Filho

Os evangélicos vão dominar o Brasil. A gente padece de uma orfandade patológica situada entre a servidão voluntária e o autoritarismo atroz. Ecos de uma formação psicossocial que importou Deus sem avaliar o alto preço dos “impostos” que a operação demandou. Como produto colonial, o significante Deus se encravou no discurso brasileiro mediante dor, sangue, estupro e expropriação. Chegou desde 1500 não só com força, mas na força. A potência desse espalhamento ajuda a explicar as centenas de dissidências ligadas à tão poderosa reunião de letras: Deus. E com firma reconhecida, como cantava Vinicius de Moraes.
Os evangélicos vão dominar o Brasil. Esses dias meu vizinho cantava com a família uma música de louvor no sábado de meio dia. Tinha feijoada lá em casa, mas virou feijoada gospel. Na distopia brasileira, instalada a ditadura evangélica, as rádios tocarão música de louvor 24h por dia. E vão denunciar Chico Buarque como satanista. E Alcione como bruxa. E fustigar os livros seculares. E violentar para negar o aborto. E pregar a paz com armas. E fumegar babaquices ou disparos entre seus medos e ilusões.
Os evangélicos vão dominar o Brasil. Logo vou explicar que essa frase não é retórica. Mas antes: esse mesmo vizinho deixou na portaria um feixe de livretos com o título “O último convite”, escrito por um pastor sei lá de onde e com PhD. Vejam como a neurociência-coach-marketeira chega até aos ungidos. Chamam de “aversão à perda” essa estratégia de associar urgência ao temor e um prejuízo. Essa coisa de colonizar o outro para salvá-lo, tentando impor a urgência que todo último convite tem, é parte inseparável do empreendimento evangélico que hoje coloniza a mente de um zilhão de pessoas no Brasil.
Os evangélicos vão dominar o Brasil. A catequização, que tem entre nós muitos nomes, é o sistema de metas do setor comercial da empresa de Jesus. Os fiéis, que devem espraiar a Palavra constante nas escrituras, são os colaboradores. Se colaboradores laicos ainda conseguem ganhar algum salário, os clientes do evangelismo não só não ganham nada, como ajudam a pagar a conta da luz do templo ou a piscina do pastor. O sucesso dessa promessa de vida boa que ordena “é dando que se recebe”, demonstra a potência cooptativa e patológica dessa religiosidade de baixa extração, como majoritariamente são as igrejas evangélicas no Brasil. O que é definitivo é que nem uns nem outros leram uma outra bíblia, mais modesta e não-toda, a da antropofagia brasileira que, no versinho 4, reza: “contra todas as catequeses”[1]. Oswald deve estar penando para explicar o Brasil de hoje no reino nem sacro nem santo dos mortos.
Os evangélicos vão dominar o Brasil. A pesquisa de Leonardo Rossatto Queiroz[2] deixa claro que há uma “predisposição maior dos evangélicos em considerar sua religião como a única correta”. Quero sublinhar essa palavra “única”. Nesse lugar, essa palavra não pode deixar de ser interpretada como um autoritarismo que é filho ou da ingenuidade ou da arrogância. A ilusão de um grande Outro não castrado e onipotente promove a banalidade da imposição de sentidos. O rapto desses sentidos se dá sequestrando significantes poderosos como “Deus”, “Amor” ou “Bem”. Outro dia travei este diálogo com um evangélico pelo direct que exemplifica isso:
[…]
Evangélico: Satanistas podem ser cristãos, se amarem.
Eu: Satanistas podem amar sem ser cristãos.
Evangélico: Se amou, cruzou a linha da essência cristã…
Eu: Esse é o autoritarismo: se apropriar da palavra, dizer-se dono de seus sentidos, que são sempre os sentidos atribuídos por determinada patota. Se um hare crishna ou um budista amarem, vão estar pouco se lixando pra Jesus e para o cristianismo.
Evangélico: Se amarem, já estarão ligados a Jesus, que é o criador, o salvador, mesmo que não o chamem assim.
Claro que coloquei os satanistas no jogo para tentar irritar o cara. Mas, vocês estão percebendo? Os evangélicos vão dominar o Brasil. Em quase quinze anos de docência nada parecido tinha acontecido. Antes de começar os testes finais desse semestre, um aluno perguntou se podia cantar uma música de louvor para ajudar na prova. Até agora não entendi se o pedido era sério ou não. Mas a coisa estava ali, viva ao menos como chiste ou metáfora, dita e simbolizada na distopia brasileira. E precisando de média 6,0 para subir aos céus da aprovação. E parece que não sou o único. O professor Pietro Nardella-Dellova passou por algo parecido e foi simplesmente genial. Transcrevo a postagem dele na íntegra: “Um aluno evangélico me pediu para usar cinco minutos para uma mensagem de Deus para a turma. Eu disse que “sim”, até toda a aula, mas com duas condições: 1) convidar umbandistas, ateus etc. para falar; 2) expor os artigos 1º a 6º da Constituição Federal.” O aluno respondeu: “esse não é o propósito de Deus”. Ao que Pietro respondeu: “então, seu deus não terá nenhum minuto.”
Os evangélicos vão dominar o Brasil, tão chatos e repetitivos como essa frase. Não se sai desafetado de uma frase como esta: “toda a metafísica ocidental, seja ela proveniente de Atenas ou de Jerusalém, fez do desamparo o ponto de partida da aventura humana”.[3] Para Freud, é para amenizar a sensação originária de desamparo que criamos deuses que não morrem nunca. A invenção da religião tem esse caráter amansador, já que os deuses afastam os pavores da natureza, nos reconciliam com a crueldade do destino e nos recompensam pelas privações que os limites da cultura impõem.[4] Para Dufour, leitor de Freud, a religião fomenta entre fiel e autoridade religiosa uma relação em que o sujeito colmata imaginariamente suas faltas perante um Outro que lhe garante alguma consolação e conforto.[5]
Os evangélicos vão dominar o Brasil. É sabido que a potência do púlpito ajudou a eleger Bolsonaro. E também é sabido como isso fortaleceu pautas pouco laicas no Congresso nesses quatro anos de miséria na mesa, no bolso e na imaginação. Lembremos que Bolsonaro casou com Michele em uma igreja evangélica sob a benção de Silas Malafaia. Eu disse Silas Malafaia, o chefe do setor “Dispensa Adjetivos” do inferno brasileiro. O clube de Bolsonaro é um filme de terror. Há tudo que há de pior: vampiros, estelionatários, lacaios, bandidos, calhordas, milicianos, pastores machistas, velhacos, atiradores, caçadores, gente ruim, curta, tosca, representada por um espantalho velho, barrigudo e carcomido pelo tempo burro da ditadura.
Os evangélicos vão dominar o Brasil. Desculpe repetir, mas não é uma frase retórica. Nem performativa. É uma frase estilística e estatística. A cada fim de semana, 30 mil novos brasileiros e brasileiras são convertidos para a religião evangélica. Atualmente, contados apenas praticantes, “o Brasil já tem mais evangélicos do que católicos”, como mostra a pesquisa de Queiroz. Agora uma matemática simples para as próximas eleições. Em 2018, aproximadamente 70% dos evangélicos votou em Bolsonaro no segundo turno. Se tomamos que o Brasil tem 65 milhões de evangélicos (Data Folha de 2020), Bolsonaro arrebanhará 45 milhões de votos apenas desse nicho do mercado eleitoral que, como todo mercado, conquista clientes, também, com propaganda. Verdadeira ou falsa. Trocando em miúdos: não basta que o presidente seja o falso messias que emerge do esgoto da república abençoando a tortura e a morte, ao cumprir os ritos e compartilhar do discurso cristão, atos e ditos dos mais cruéis são seletivamente ou recalcados ou anistiados. Aproximadamente 60% de todos os evangélicos concordam que valores religiosos devem influenciar as decisões políticas do país. Esse tipo de orientação, muito mais presente no cotidiano dos evangélicos do que dos católicos, confirma o autoritarismo atuante no interior do evangelismo brasileiro.
Os evangélicos vão dominar o Brasil. Esses dias Bolsonaro disse que Jesus não comprou uma pistola porque não havia loja de armas na época…Portanto, fiquemos atentos para ver o que essa gente de Jesus pode fazer com uma arma na mão contra quem pensa e vota diferente.
PAULO FERRAREZE FILHO é professor dos cursos de Direito e Psicologia da Uniavan/SC, faz pesquisa de pós-doutorado em Psicologia Social na USP e é psicanalista em formação.
[1] ANDRADE, Oswald. Manifesto Antropófago e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 49.
[2] QUEIROZ, Leonardo Rossatto. O moralismo evangélico como arma política. Le Monde Diplomatique Brasil. Junho de 2022, p. 6-7.
[3] DUFOUR, Dany-Robert. A cidade perversa. Ed. Civilização Brasileira, p. 279.
[4] FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. Porto Alegre: L&PM, 2013, p. 58-59.
[5] Retirado do artigo de BINKOSKI, G. I. e outros. A discursividade evangélica e alguns de seus efeitos: laço social, psicopatologia e impasses teóricos e transferenciais. Na Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental. São Paulo, 23(2), 245-268, jun 2020.
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