ENTREVISTAS

Entrevista com Marcelo Freixo: “unir as esquerdas contra o fascismo”

por Juan Manuel Domínguez

Arte de Cris Vector

Marcelo Freixo atualmente é deputado federal e flerta com as eleições ao governo do Rio de Janeiro em 2022. Em 2007 assumiu seu primeiro mandato na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Já nesse primeiro ano protocolou pedido de abertura de Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar a ação das milícias no Rio. A CPI foi arquivada durante um ano e meio e só foi retomada após a bárbara tortura sofrida pelos jornalistas do jornal O Dia por milicianos. Essa comissão mudou a história da segurança pública do Rio. Como consequência da CPI foram presos muitos líderes milicianos, entre eles o deputado Natalino Guimarães, ex-DEM, acusado de ser o chefe da milícia “Liga da Justiça”; e vereadores como Jerônimo Guimarães, do PMDB, (irmão de Natalino e preso sob a mesma acusação), e Cristiano Girão, acusado de chefiar a milícia em Gardênia Azul, zona oeste do Rio.

Antes de se eleger deputado estadual, Freixo trabalhou como pesquisador da ONG Justiça Global. De 1993 a 1995, foi diretor do Sindicato dos Professores (SINPRO) de São Gonçalo e Niterói. Participou como voluntário no projeto de prevenção ao HIV – AIDS nas prisões do estado durante os anos de 1995 e 1996. Em quase 20 anos de trajetória, coordenou vários projetos educativos no sistema penitenciário.

O personagem de Diogo Fraga no filme Tropa de Elite 2 foi inspirado na figura do Freixo. Quando perguntado sobre a veracidade de algumas cenas e do seu personagem, Freixo respondeu: “Tem muito de ficção. Eu nunca fui casado nem com a ex-mulher do Coronel Nascimento nem com a do Wagner Moura. Aliás, a minha mulher, que é jornalista, tem respondido a essa pergunta sistematicamente. Na realidade, negociei várias rebeliões em presídios. Mas aquela cena do tiro no preso dado pelo policial do BOPE nunca aconteceu. Quando tinha rebelião no Rio, o BOPE me chamava e ia me buscar em casa. Negociei dezenas de rebeliões junto com o BOPE e nunca houve um refém, preso ou guarda ferido. Sempre tiramos os reféns com vida, os presos saíam com vida e sem serem torturados ou, como eles falam, sem “o esculacho”. Agora, a cena do colete aconteceu de verdade. Eu estava entrando no presídio em rebelião e um comandante disse para mim: “Bota o colete”. Eu disse: “Não. Tenho que andar uns 50 metros e eles estão com as armas lá. Se quiserem me atingir, vão me atingir.”

Marcelo Freixo é um ícone dos movimentos de luta pela defesa dos direitos humanos. Sua história também representa a história de muitos professores e trabalhadores da educação que atuam em áreas marginais, periféricas, com a certeza de estar transformando a vida de muitos dos seus compatriotas. Em entrevista, Freixo falou sobre sua experiência como educador nas prisões e sobre a política brasileira no ar de nossos tempos.

***

1) Com as experiências que você já teve, como a educação nos presídios pode ajudar a diminuir a violência e a conflitividade social?

Sem sombra de dúvidas, qualquer projeto dentro do sistema prisional relacionado a educação tem grande impacto na vida da pessoa que está cumprindo pena. Há uma massa carcerária hoje de baixíssima escolaridade. Grande maioria da população presa é negra e jovem, e escola nunca teve um significado na vida dessas pessoas. A prisão não é um instrumento de exclusão social, ela é um instrumento de consolidação da exclusão social anterior. Não é à toa que a grande maioria da massa carcerária negra, jovem, moradora de periferia de favela e de baixíssima escolaridade é a imensa maioria da população carcerária.

Quando esse preso entra um projeto de educação que possa ser transformador dessa realidade, tudo pode mudar. Por isso que o projeto de educação não pode ser um projeto conservador, ele tem que partir da ideia do conhecimento que esses prisioneiros têm das suas vidas. De que profissões eles construíram, que experiências tiveram. É necessário saber que tipo de noções eles construíram ao longo da vida, antes de serem detidos. Tudo isso tem que ser aproveitado num processo de reconstrução da autoestima, para fazer com que eles criem alternativas de vida já dentro do cárcere. Projetos de educação são muito poderosos e transformativos dentro da cadeia. Justamente por isso, deveria ter um grande investimento, o que infelizmente não acontece.

2) Qual o risco de quem entra num presídio para educar, tratar ou fazer qualquer ação reconciliatória do sujeito preso com a sociedade?

Eu trabalhei nas prisões durante muitos anos da minha vida. Comecei a trabalhar com 21 anos de idade e trabalhei por mais de 15 anos direto com projetos de educação. Depois trabalhei com fiscalização, trabalhei com prevenção de HIV, e nunca foi um lugar com algum tipo de risco, seja para os profissionais de segurança seja para o corpo técnico. Dentro das prisões trabalham psicólogos, assistentes sociais, dentistas, médicos, e é um trabalho muito gratificante e muito importante.

Geralmente esse trabalho é feito em condições muito precárias, tanto dos agentes de segurança quanto dos técnicos, mas é evidente que nesse período de pandemia não se pode permitir a circulação de pessoas para preservar a vida de todos. Mas, fora isso, não é um lugar de risco para as pessoas, muito pelo contrário, é um lugar muito gratificante.

3) Porque precisamos de uma política pública ativa e urgente hoje nas periferias no combate ao Covid-19?

A coisa que mais me preocupa hoje em dia em relação ao coronavírus é exatamente a proliferação dessa pandemia nas áreas mais pobres das grandes cidades. Nós tivemos uma primeira onda de contaminação que veio de uma população que frequentava aeroportos, gente que pode fazer viagens internacionais. Agora isso chegou nas populações mais pobres e periféricas.

O grande remédio que o mundo inteiro está adotando, segundo a Organização Mundial de Saúde, é o isolamento, para que um número grande pessoas não seja contaminada ao mesmo tempo e o sistema de saúde não tenha condições de atender. Nesse ponto, a grande preocupação com as áreas mais pobres é a impossibilidade de isolamento e de uma higiene básica. As áreas sem saneamento básico são muito grandes. Tem muitas pessoas que moram com muita gente em casas pequenas. Isso dificulta demais o isolamento. Sem contar a quantidade enorme de pessoas que vivem em lugares que não tem água, o que dificulta a higiene básica necessária para evitar o vírus.

Os leitos de quase todas as grandes cidades já estão lotados. Há pouquíssimas possibilidades de leitos, principalmente em UTI. Os aparelhos respiradores são poucos diante do crescimento do número de contágios. Nesse momento em que conversamos já passamos de 100 mil brasileiros contaminados, uma taxa de morte de 7%. Isso vai Sem dúvida alguma vai aumentar e teremos muitos brasileiros mortos pelo vírus, mas também e sobretudo pela desigualdade. Mortos pela falta de acessos e de condição de se preservar.

4) O quanto piorou a violência e a corrupção institucional com a chegada do bolsonarismo?

O governo Bolsonaro tem uma base autoritária. Ele tem apoio dos generais do exército. Além disso tem projeto de armamento da população que apoia o bolsonarismo. Dentre esses, há os que estão muito próximos das milícias e dos policiais militares.

O episódio com os policiais no Ceará, em que a polícia estava enfrentando o Estado, exigindo fechamento do comércio, teve o apoio do Bolsonaro e apoio de gente muito próxima ao Bolsonaro. Essas são as forças que Bolsonaro tenta usar para quebrar o monopólio da força do Estado e criar uma força policial de apoio armado a ele e sua família.

Sem dúvida alguma isso estimula uma violência cotidiana, e isso leva a polícia a sentir que está acima da lei, que tem um presidente que dá respaldo a ações mais violentas. Isso tudo é muito perigoso no dia a dia de uma sociedade muito desigual, onde a polícia já cumpre um papel que não é dos mais simples, e não pode, e não deveria ser estimulada a incrementar sua violência.

5) Que diferença faria hoje, com a crise da pandemia, um governo com forte vocação em políticas públicas?

Faz muita falta ao Brasil um governo que fortaleça as instituições e que tenha políticas públicas mais claras em áreas como saúde, educação, segurança e moradia.

A mão invisível do mercado não vai resolver as questões centrais que nós temo que resolver em um país que já era desigual antes da pandemia, e que provavelmente se tornará mais desigual depois da pandemia. Inclusive no que diz respeito ao número e o perfil dos seus mortos. Nós vamos precisar do fortalecimento do SUS. Vamos precisar de uma educação pública que dê conta de famílias devastadas pelo coronavírus. A gente está falando numa possibilidade de morte de 500 mil e até um milhão de pessoas. Se o Brasil tem 210 milhões de habitantes, e nós tivermos 70% da população contaminada e a taxa de mortalidade continuar de 7% a gente pode estar falando aí de aproximadamente um milhão de brasileiros mortos, e isso é muito grave. Isso pode mudar completamente a sociedade.

E para se restabelecer, para construir de novo uma mínima normalidade, não podemos imaginar a normalidade do passado. Aquela sociedade que existiu até o coronavírus não vai existir mais, e nós vamos precisar de políticas públicas mais eficientes, que tenham em conta a desigualdade, a tragédia que se abate sobre essa população. Isso muito provavelmente não acontecerá com o comando de Bolsonaro à frente da presidência da república.

6) Uma peça publicitária do governo Bolsonaro, usada para divulgar o programa Pró-Brasil, gerou polêmica porque nela só apareciam crianças loiras. Você acha que a sociedade brasileira não consegue reconhecer a si mesma?

Uma propaganda que tenha só crianças brancas e loiras não fala do Brasil. O Brasil é marcado por uma população negra muito grande e muito forte. O Brasil é o segundo país com maior número de negros do mundo, só perde para Nigéria.

Não tem cabimento qualquer imagem que pretenda retratar a realidade social brasileira só com gente branca, especialmente se o tema for educação. Há pouco tempo o MEC fez uma propaganda falando do não adiamento da prova do ENEM, alegando que as pessoas podem estudar em casa através da internet. Como se os alunos de escola pública tivessem condições de ter aulas online. Como se as escolas públicas estivessem em condições de ofertar essas aulas online. Então é uma desconsideração com a realidade muito violenta, muito agressiva, e que gera mais desigualdade nesse país.

7) Se acontecer o impeachment de Bolsonaro, qual seria o passo a seguir? Que panorama vislumbra após uma hipotética queda do presidente?

É muito difícil que tenha o impeachment nesse momento em que eu estou dando essa entrevista. Bolsonaro hoje tem 200 deputados a seu favor. Para ter impeachment tem que ter voto. Impeachment não é o desejo de uma parcela da sociedade. O Bolsonaro tem, segundo as pesquisas Datafolha, 36% dos brasileiros que acham seu governo bom ou ótimo, nesse momento em que ele cometeu tantas atrocidades.

Nós temos que conhecer melhor a quem que a gente chama de povo brasileiro. Tem 36% da população que acha bom o que ele faz. Isso significa que 36% dos brasileiros são fascistas? Eu acredito que não. Porém, você pode ter aí 10, 12 e 15% de brasileiros concordando com o que há de mais grave no governo Bolsonaro: posições fascistas, autoritárias, de fechamento do congresso e do STF. O papel da oposição e das forças democráticas é reduzir esses 36% ao número de fascistas que são iguais a ele, que penso seja de 12% a 15% da população. Só assim é possível pensar no impeachment.

E o impeachment tem que ser acompanhado de um projeto.  Qual é o projeto? Acontece o impeachment do Bolsonaro e quem assume é o Mourão, que é um militar. Qual vai ser o governo do Mourão? Que pacto vai se fazer para conseguir a retirada do Bolsonaro num possível impeachment que possa não ter relação com o mesmo projeto de Bolsonaro? Será no governo de Mourão? Terá acordo para isso?  É preciso ter responsabilidade. Na hora de falar impeachment temos que saber de que projeto a gente tá falando. Com que correlação de forças estamos falando e com que tipo de pacto para não ter uma sociedade que tira o Bolsonaro mas continua com os problemas do bolsonarismo. Bolsonaro não começa e não termina com Bolsonaro. Ele já cometeu muitos crimes e poderá sofrer um impeachment quando sua popularidade diminuir e ele perder apoio no congresso. Esse definitivamente não é o cenário de hoje.

JUAN MANUEL DOMÍNGUEZ é militante, professor, escritor, jornalista, roteirista, produtor e diretor de cinema. É também fotógrafo de documentários que fazem a defesa dos direitos humanos

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