por Pedro L. Fonseca

Esta versão do texto foi atualizada e corrigida pelo autor em 1/5/21.
Rejeitado no congresso internacional de psicanálise de 1936, “excomungado” da International Psychoanalytical Association em 1963. Em 2021, quarenta anos após sua morte, chegou a hora de Jacques Lacan ser acusado de assédio moral.
A acusação vem do teclado do genro, Jacques Alain-Miller, talvez o mais influente psicanalista contemporâneo. Seu grupo, chamado de Campo Freudiano e representado pela Associação Mundial de Psicanálise, congrega sete grandes escolas de psicanálise no mundo. No Brasil, a Escola Brasileira de Psicanálise e os chamados institutos do Campo Freudiano, que dispensam formação a candidatos a analista, guiam-se pelo projeto teórico-institucional de Miller.
Praticamente ao mesmo tempo em que o intelectual de direita Guy Sorman acusa Michel Foucault de abusar sexualmente de meninos (também aqui, quase quarenta anos depois da morte do filósofo), Miller afirma, em artigo publicado no último 23 de abril, ter sofrido abusos de autoridade – “inomináveis e incessantes, tanto públicos quanto privados” – por parte do sogro, Jacques Lacan.
A declaração de Miller pode ser lida no contexto dos movimentos-hashtags “#MeTooIncest” e “#MeTooGay”, que explodiram na França nos últimos meses. Neles, vítimas de abuso sexual foram ao Twitter para falar, pela primeira vez, sobre abusos sofridos muitos anos antes.
Já Miller afirma ter sofrido abusos de autoridade que constituiriam “verdadeiro crime de incensto moral e espiritual”. Ele diz que iniciará processos judiciais, de alcance simbólico, mas que serão “decisivos para curar as feridas da alma e reparar os danos causados a sua autoestima” (autoestima e feridas da alma não são conceitos psicanalíticos).
Não será a primeira vez que os nomes de Jacques Lacan e Jacques Alain-Miller circularão nos tribunais franceses. Há cerca de dez anos, Miller e sua esposa, Judith, filha de Lacan, processaram Elisabeth Roudinesco, a mais conhecida e respeitada historiadora da psicanálise, ainda em atividade. Os herdeiros enxergaram difamação no trecho de uma biografia de Lacan em que Roudinesco relata o desejo do psicanalista francês de ser sepultado sob ritos católicos, o que teria sido ignorado pela família. Judith e Jacques-Alain saíram derrotados.
Já na ação judicial proposta pela Associação dos Amigos de Lacan em 2007, o réu era Miller. O genro de Lacan, que é seu executor testamentário e encarregado da publicação de sua obra, foi acusado de cometer abusos nesta tarefa, especialmente por conta da lenta e irregular publicação dos Seminários, parte fundamental do ensino de Lacan. A associação saiu derrotada da disputa judicial e o ritmo de publicação dos seminários seguiu igual. Dez deles permanecem oficialmente inéditos, embora transcrições paralelas e não-autorizadas possam ser encontradas, por exemplo, no site Staferla.fr.
O teor das obras publicadas não é menos controverso. Quando se comparam os exemplares do Seminário de Lacan disponíveis nas livrarias (no Brasil, publicadas pela editora Zahar) e as transcrições paralelas, as diferenças são imensas. Miller, nomeado por Lacan co-autor dos seminários, diz realizar um trabalho de “tradução”. Críticos do trabalho de edição veem em sua tesoura um desvio intencional do modelo teórico proposto pelo sogro, em favor de suas próprias ideias (a manobra, denunciada por Jean Allouch poucos anos depois da morte de Lacan, é objeto de estudo minucioso pelo psicanalista argentino Alfredo Eidelsztein, em sua tentativa de “desambiguar” o que disse Lacan do que defende Miller).
O problema em torno da publicação da obra de Lacan por seu executor testamentário volta à tona neste mês de abril de 2021. Nos 25 tweets que publicou em 22.4.21, Miller anuncia que chegou a hora de tornar público “a montanha de papéis” que Lacan lhe legou. Afirma tratar-se de um grande momento e antevê um “trabalho monumental de edição” – o que, dada a controvérsia em relação ao estabelecimento dos seminários, levanta preocupações. Os herdeiros de Lacan nunca autorizaram o acesso de pesquisadores a sua biblioteca e arquivos.
Docilidade ou epidemia
O artigo em que denuncia os supostos abusos do sogro chama-se Docile au trans (“Dócil ao trans”). Nele, Miller, que recentemente afirmou (via Twitter) ver Judith Butler como “filha espiritual de Lacan”, convoca os praticantes da psicanálise a se portarem de maneira “dócil ao trans”, seguindo o exemplo de Freud, que “soube se mostrar dócil às histéricas”. Os trans, diz Miller, são, como ele, vítimas.
O artigo abre um volume especial do jornal Lacan Quotidien, dirigido pela filha de Miller, Ève Miller-Rose, e dedicado à questão trans. Seguem-se ao texto de JAM, como Jacques-Alain Miller habitualmente assina, quatro artigos publicados em veículos ou blogs especializados na questão trans. Dois deles contém duras críticas à psicanalista-historiadora Élisabeth Roudinesco – a mesma que venceu o casal Lacan-Miller na corte de cassação francesa em 2012.
Quanto a Roudinesco, desde o último dia 10 de março, quando disse em um programa na televisão francesa acreditar que vivemos uma “epidemia trans”, a psicanalista é alvo de acusações de transfobia.
Incontornável historiadora da psicanálise, biógrafa de Freud e autora de livros que influenciam psicanalistas em todo o mundo, inclusive no Brasil, Roudinesco afirmou, na bancada do programa de televisão “Quotidien” exibido em 10 de março, que vivemos uma “epidemia transgênero”. A participação da historiadora no programa teve como motivo o lançamento de seu novo livro, “Soi-même Comme un Roi” (algo como “A Si Mesmo Como um Rei”), em que ela aborda aquilo que chama de “derivas identitárias”.
No dia seguinte ao programa, três membros da Assembleia Nacional francesa acionaram o Conselho Superior do Audiovisual (CSA), chamando atenção para as afirmações supostamente transfóbicas de Roudinesco. As declarações, dizem eles, atentam contra a dignidade das pessoas transgêneros, “retomando uma longa tradição de patologização dos corpos e identidades transgêneros, e convocando, de maneira indireta, ao seu apagamento”.
O fato de o apresentador do programa, Yann Barthès, não interceder imediatamente implicou, segundo os deputados, desrespeito à lei que obriga emissoras de televisão a assegurar que os programas não contenham incitação ao ódio em razão da identidade de gênero.
Em uma versão anterior deste texto, atribuiu-se uma frase à historiadora de maneira equivocada, pelo que o autor se responsabiliza e se desculpa. O que, afinal, disse Roudinesco no programa de televisão “Quotidien” no último dia 10 de março?
“Há aquilo que chamo de deriva do gênero, onde, a partir de certo momento, tornou-se muito importante que os seres humanos não sejam reduzidos à diferença anatômica homem-mulher, e que mostrou haver também uma construção social do sexo, que chamamos de gênero.
Mas agora suprimimos a diferença anatômica em nome do gênero. Tudo é construído e dizemos “genré” (“generado”). Mas não. É preciso os dois. O ser humano tem, por um lado, uma diferença biológica, e por outro uma diferença psíquica.
Apresentador: A senhora não pensa que podemos ser fluídos?
Roudinesco: Sim, podemos, mas não vale a pena atribuir [assigner] a isso. Podemos ser tudo o que você quiser. Mas o que não está bem é atribuir. Podemos nos sentir fluídos. Mas não há terceiro sexo. Você sente tudo o que você quiser. Você pode ser bisexual, pode ser fluído, tudo isso, mas não há um terceiro sexo. Há uma bissexualidade, há uma diferença de gênero. O transgênero foi inventado a partir de pessoas que tinham problemas com essa identidade, o que chamamos transexualismo. Eles têm uma identidade… Não se deve evidentemente discriminá-los. Isso existe. Mas acredito que há, de certo modo, uma epidemia. Tem demais.
Apresentador: Tem demais o quê?
Roudinesco: Gente que se sente em uma identidade que não está lá desde a infância. Isso existe, suficientemente chamado transexualismo. Hoje em dia chamamos de transgênero.
Apresentador: Pessoas também que ousam falar…
Roudinesco: Sim, talvez, mas quando uma criança de 8 anos diz que ela é de outro sexo, no que ela está habilitada? É preciso dizer a ela “bom, muito bem, você tem o direito de se sentir assim”, mas isso não quer dizer que se deva designar [l’assigner]. Podemos dizer: “talvez, mas você tem uma anatomia, então você verá mais tarde se você tem vontade de mudar de sexo”.
Roudinesco aparentemente se refere ao caso de Lillie, uma menina trans de 8 anos que teve um pedido de mudança de nome rejeitado pela justiça francesa.
Para Roudinesco, a identidade se tornou uma obsessão na França por causa do narcisismo: a obsessão da sua própria imagem, de si mesmo como um rei. As patologistas narcisistas tornaram-se, segundo ela, dominantes nas sociedades democráticas avançadas.
O discurso de E. Roudinesco – por seu caráter prescritivo – talvez precise mesmo ser refutado. Será, porém, a docilidade, a melhor forma de abordar a questão? Sobre o adjetivo docile (dócil), o dicionário Larousse da língua francesa diz: “disposto a se deixar conduzir, dirigir; submisso; obediente” e “que manifesta a submissão, a docilidade, a complacência”. É assim que o(a)(e) psicanalista deve se portar?
Trans: um significante
Felizmente, nem a recomendação paternalista à docilidade, nem a existência de uma “epidemia trans” formam consenso.
Em um comentário sobre a intervenção do filósofo Paul B. Preciado na Escola Francesa de Psicanálise em 2019, o psicanalista argentino Alfredo Eidelsztein propõe uma reflexão sobre a “questão trans” que parece mais coerente com o ensino de Lacan, o homem que afirmou que o inconsciente é um estruturado com uma linguagem e que insistiu, desde os primeiros anos do seu ensino, que o psicanalista não opera sobre o eu e seus predicados imaginários, ou sobre aquilo que supostamente se origina em no corpo biológico, mas sobre elementos significantes, destacados do texto produzido na sessão de análise:
“O conceito de sujeito de Lacan (cuja definição é: o que um significante representa frente a outro significante) implica, necessariamente, que não é homem, não é mulher, não é criança, não é gay, não é lésbica, não é trans, não é bissexual, não é neurótico, etc.. Simplesmente ‘não é’, carece de ser e de identidade. Em cada história particular de uma pessoa, uma família, um povo, etc., o valor de ‘sujeito’ participará de redes significantes, cadeias de cadeias, nas quais adquirirá significados e sentidos múltiplos nunca garantidos em sua verdade, nem em sua perduração.
Psicanalista tampouco designa nada em si mesmo, seu significado dependerá de cada caso e de cada contexto. Nem todo psicanalista é patriarcal, machista e eurocentrista. Assim como não existe uma linguística, nem uma filosofia, tampouco uma física. Não existe um discurso da psicanálise; existem múltiplos (…) É responsabilidade de cada analista e sociedade de analistas o tipo de psicanálise que assume, pratica e difunde, e nisto, para começar, terá que decidir se é “freudiano” ou não, paternalista ou não, biologicista e individualista ou não”.
PEDRO L. FONSECA é psicanalista em São Paulo e membro de Apertura para Otro Lacan.
Categorias:ARTIGOS
Gostei do texto e da forma como a situação é abordada.
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Excelente texto
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Para além dos temas/teoria de psicanálise (sobre os quais me falta qualquer repertório) existe no texto uma contextualização de história recente que torna sua leitura bastante interessante. Para mim, especialmente quanto ao tratamento a sentidos/discursos através da tradução e edição ou mesmo a interdição pela não divulgação oficial.
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De fato, atribuir é problemático.
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O que me chama a atenção é como o autor não percebe a ironia no texto de Miller
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Olá, Ricardo, obrigado pela leitura. É claro que considerei a possibilidade de a história do assédio moral (onde imagino que você veja ironia) ser simples artifício retórico, mas preferi não extrair interpretações dessa ordem, atendendo-me ao que está no texto. A sequência dos acontecimentos, creio, dará mais elementos para compreendermos os recentes movimentos de J.A. Miller em relação a Lacan e a sua obra. Idem em relação à “docilidade trans”, que ele promete prosseguir desenvolvendo como continuação do texto que comentei aqui.
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*deboche
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Ich,
Você não entendeu moço.
É mesmo um caos filosófico.
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Camarada psicanalista. O texto de Miller onde acusa seu sogro, Jacques Lacan, de assédio moral é uma sátira, uma ironia para ilustrar a posição de Preciado em relação ao seu Outro, a posição fantasiosa da vítima em relação ao monstro. É claro que se trata de uma brincadeira de Miller, uma transposição estrutural do discurso de Preciado. É uma crítica ao Comandante Preciado que se coloca como lider de uma guerra fantasiosa dos sexos. Releia o texto de Miller, é uma resposta irônica e inteligente ao discurso falacioso de Preciado, já que o mesmo foi acolhido nas 49 Jornadas da ECF.
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Num comentário anterior, aqui mesmo, o Ricardo Goldenberg já tinha alertado o articulista sobre isto.
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É uma ironia do Miller. Fica claro quando você contextualiza o texto em meio às várias discussões no Campo Freudiano em torno da provocação de Preciado em 2019.
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