por Alanis Matzembacher

Já imaginaram um mundo sem “bandido”? Acreditam que seja uma utopia, ou seja, algo que não existe na realidade? Ou, em outra realidade, paralela, adepta àqueles otimistas e “crentes” em um sistema linguístico, social e penal justo? Ou se apenas deixarmos de falar o termo “bandido”?
Vamos iniciar uma tentativa.
A palavra “bandido” origina-se do italiano bandito – banido, afastado do convívio dos outros – de bandire – proscrever, banir – do Latim bannire – deixar, abandonar – demonstrando que sua etimologia já delimita o afastamento da sociedade por parte daquele que recebe a alcunha.
Questiona-se, portanto, a índole, o dano iminente e o lugar social que o sujeito ocupa, quando se trata de bandido. Nesse sentido, dizem respeito à ausência de caráter, à crueldade, o posicionando como alguém banido, tal como remete a sua raiz etimológica.
Wittgenstein tem a linguagem como objeto de reflexão, em que “um jogo de linguagem é um contexto de ações e palavras no qual uma expressão pode ter significado”1 e, este se deduzirá de seu uso num dado contexto. Logo, o falar da linguagem é a expressão, a manifestação e forma de vida, da ação do homem, uma linguagem imediata do dia a dia.2 Aborda-se a linguagem enquanto atividade, enquanto forma de vida, na qual o conceito de significação das palavras envolve o uso prático da linguagem. Assim, o uso é a diretriz que orienta a compreensão e a demonstração da linguagem.
Além disso, as estruturas linguísticas ajudam a determinar o indivíduo em um posicionamento dentro da vida social, gerando, por conseguinte, a construção de fenômenos linguísticos, podendo a linguagem ter várias formas de manifestação e utilização pelos diferentes grupos sociais, isto é, possui uma dimensão de profundidade ligada ao contexto histórico-social concreto.
Quando Wittgenstein discorre que o significado da uma palavra é seu uso na linguagem, reporta-se também ao que afirma Bakhtin: “Para observar o fenômeno da linguagem, é preciso situar os sujeitos (emissor e receptor do som) bem como o próprio som, no meio social. […]. A unicidade do meio social e a do contexto social imediato são condições absolutamente indispensáveis para que o complexo físico-psíquico-fisiológico possa ser vinculado à língua, à fala, e possa tornar-se um fato de linguagem”. 3
As situações de uso como, por exemplo, a intenção, a circunstância, entonação da voz, sentimentos e necessidades constroem a significação das palavras, podendo ser compreendidas enquanto pertencentes a um jogo de linguagem específico, pois, todo signo sozinho parece morto; só no uso ele vive.
Posto isso, deixemos as expressões faciais de olhares preconceituosos, amenizemos o tom pejorativo e vulgar de nossas vozes, retiremos as intenções fajutas de diminuir alguém socialmente apenas para lhes atribuir um significado que não o pertence, tornando morta seu uso reiterado por aspectos desumanizados.
Compreender está ligado ao domínio de uma determinada técnica, em que para poder jogar é preciso conhecer as regras do jogo – e o jogo de linguagem é resultado da interação social – e tendo em vistas que estas se expressam através de uma prática pública, a mera interpretação de uma regra não garantirá a certeza de segui-la corretamente, pois o que garantirá essa certeza, mesmo que mínima, é o hábito de seguir uma regra, uma praxe.
Neste viés, parte-se da condição necessária em se observar determinados contextos, de forma que essa praxe torne-se inutilizada, por conta de conspirações políticas-ideológicas e discriminadoras de pronunciar o termo “bandido” para àquele que mora no morro, ou para aquele que ainda só foi indiciado ou nem investigado ainda, ou até mesmo para àquele que já saiu do sistema carcerário.
Além disso, como o preconceito é construído socialmente, lado a lado também se constrói uma figura única de “bandido”, o que vai contra a ideia de que um contexto muda o significado. Dessa forma, é melhor o termo não existir uma vez que aparentemente permanecerá imutável independente do sentido conotado.
Percebe-se que precisamos mudar as regras do jogo, e que os estereótipos e estigmas não devem auxiliar na apreensão de um traço mínimo de significado. O estigma era a marca de um corte ou queimadura no corpo e significava algo de mal para a convivência social, podendo simbolizar a categoria de escravos ou criminosos, por exemplo. Assim, a sociedade passa a catalogar as categorias que os indivíduos devem pertencer, bem como os seus atributos, o que significa que a sociedade determina um padrão externo ao indivíduo que permite prever a categoria e os atributos, a identidade social e as relações com o meio, contudo essa figura criada pode não corresponder à realidade – para Crochik4, a necessidade do estabelecimento do preconceito se faz porque a sociedade, ainda que implicitamente, ameaça de exclusão aqueles que não seguem suas regras e normas.
Ao passo que preenchemos um termo com estigma, passa-se a condenar um sujeito através da palavra que direcionamos a ele. Logo, basta! Basta chamarmos um sujeito de bandido pois caso contrário ele não será nada além disso, pois continuaremos reduzindo oportunidades e esforços, não lhe atribuiremos valor, e por conseguinte, esse sujeito perderá a identidade social.
Uma pesquisa feita em 2016 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta que cerca de 57% dos brasileiros concordam com a frase “bandido bom é bandido morto”5. Quando 57% da população repetia essa frase, se esquivavam de desejar a morte diretamente de alguém para desejar essa tragédia a um grupo já estigmatizado de minorias, as quais por, em alguns casos, aderirem a condutas diversas das deles, merecem menos que os demais. Esse menos não passa a ser algo irrelevante, e sim, a vida! O bem mais relevante de todos os ordenamentos jurídicos.
Ainda, se o termo bandido não existisse, essa frase perderia sentido, uma vez que restaria apenas as palavras “bom”, “é” e “morto”. Ademais, não seria mais repetida, considerando que ninguém nunca sabe o bendito nome daquele que, em tese, não tem identidade social e infringiu uma lei, a qual também todos “conhecem”, pois #somostodosadvogados.
Logo, deixemos esse termo de lado, pois para uma sociedade marcada por estigmas, bandido não tem vez, não tem mudança, vai ser sempre bandido e esse peso sempre irá acompanha-lo até fazê-lo ser apenas isso e nada mais do que isso. Reforço, não existe divisão “nós X eles”, “bandido X não bandido”, somo apenas “nós”, todos seres-humanos.
ALANIS MATZEMBACHER é acadêmica de Direito (FAE). Membro do grupo de estudos O mal estar no Direito (FAE). Membro do grupo de pesquisa: Modernas Tendências do Sistema Criminal. Membro do Núcleo de Estudos em Tribunal do Júri. Membro do Núcleo de Estudos em Ciências Criminais. Membro do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico
REFERÊNCIAS
[1] PENCO, Carlo. Introdução à filosofia da linguagem. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006, p. 135.
[2] OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. A filosofia na crise da modernidade. 2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1995, p. 99.
[3] BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 2004. p. 70.
[4] CROCHIK, J. L. Preconceito: indivíduo e cultura. São Paulo, Robe, 1997.
[5] Para 57% dos brasileiros, ‘bandido bom é bandido morto’, diz Datafolha. Disponível em:http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/11/para-57-dos-brasileiros-bandido-bom-e-bandido-morto-diz-datafolha.html.
[6] WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas.5 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
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