por Eduardo Newton

Mesmo tendo diversos locais como sede, uma cadeia pública acabou sendo a minha casa nos últimos anos, pois foi lá que se consolidou a Central de Audiência de Custódia da capital/RJ. Um direito subjetivo não possui um pai, seria muita pretensão minha querer invocar esse status, mas sei que, de alguma forma, participei da luta pela efetivação desse direito e é por essa razão que escrevo essas linhas em tom de despedida.
Aliás, esse é o primeiro aprendizado que levo nessa despedida. Em um país tão desigual, direitos não são dádivas ou mercês; ao contrário, são conquistados com muita luta, muita dor e sacrifício.
Não estive preso, mas sofri meus reveses por ter encarado essa briga. Sou pai de dois meninos e espero que eles possam um dia entender que não foi por vaidade que briguei, mas pela vergonha que não gostaria que eles carregassem de ter um pai que entrou pela porta dos fundos da história.
Tal como os cabeçalhos das petições enunciavam, tentei lutar de forma intransigente pelos direitos dos necessitados. Em uma lógica de resultados que encanta os embriagados por números, fui um fracassado, pois perdi muito mais que ganhei. Prefiro a derrota que a participação no contínuo – e vergonhoso – processo de sabotagem de normas previstas no ordenamento jurídico brasileiro.
Algumas vitórias estarão para sempre gravadas. O primeiro habeas corpus[i] em que foi relaxada a prisão por falta de audiência de custódia. A primeira reclamação coletiva que impôs a observância do sistema de audiência de custódia para os casos envolvendo a Lei Maria da Penha[ii]. A observância do prazo de 24h para apresentação dos policiais militares e bombeiros militares à autoridade judicial[iii]. A realização de audiências de custódia nos dias 31 de dezembro e 1° de janeiro[iv]. Essas “vitórias” contêm minha assinatura, mas são vitórias da Defensoria Pública do estado do Rio Janeiro.
Todavia, e ainda que se considere a sustentação oral no Plenário do Supremo Tribunal Federal no Agravo Regimental na Reclamação Constitucional nº 29303 que versa sobre a indevida limitação da audiência de custódia aos casos de flagrante, nenhuma dessas “vitórias” se compara ao ver o olho do defendido brilhar por saber que, em meio aquele caos, tentei restabelecer minimamente sua dignidade. E isso ficava muito claro nos agradecimentos pela defesa – imerecidos, pois realizava as funções do cargo – nos casos em que o cárcere era o destino definido após a audiência. O verdadeiro êxito era percebido, quando após um dia exaustivo, me dirigia ao portão da cadeia junto com algum estagiário e atendia parte dos familiares. É claro que muitos não acreditavam que era o “doutor” que estava ali, pois aquela vestimenta não se mostrava adequada para os veículos de luxo das autoridades que saiam correndo e escoltados.
Trabalhar na Central de Audiência de Custódia foi importante por ter me concedido lições importantes. O direito da pessoa privada de liberdade não é meu e, por mais tentador que seja ficar em uma zona de conforto, não poderia como Defensor Público transigir com direitos alheios. Por “incomodar” se paga um preço, não me arrependo nenhum pouco dele, ainda mais quando essa conta veio acompanhada do péssimo uso da língua portuguesa ou de uma postura serviçal assumida por quem deveria ser resistência. Não se trata de repudiar uma visão messiânica, mas sim de entender o meu lugar: servir para a ampla defesa. A fé do preso foi algo que me tocou. Muitas vezes já no início da noite, fumando um charuto, ouvi cantos religiosos daqueles que pernoitavam naquela masmorra. Até hoje me pergunto de onde era extraída essa crença, pois a revolta seria, para mim, o caminho natural de responder ao Estado de Coisas Inconstitucional. Esse conceito, ademais, é a prova concreta da dissonância entre a realidade fática e a solução – simbólica – jurídica. Não vi qualquer mudança na deturpação rotineira do estado de inocência, pois a política de encarceramento em massa persiste. Afinal, conclui que o que foi decidido no Planalto Central ainda não chegou na Guanabara.
Convivi com bons e maus profissionais. Aos bons agradeço, pelo convívio. Aos péssimos, por me servirem de alerta, não gostaria de me tornar o que são. Até mesmo porque lidei com gente humilde todos os dias enquanto existiu a custódia, sempre tive em mente que usar palavras difíceis aliadas a erros crassos somente demonstra o bacharelismo presente em nossa sociedade. Agradeço por mais essa lição.
Não me orgulho de ter ajuizado mais de 500 habeas corpus no ano de 2019. Porém, aos que considerem um exagero, Frei Betto me fornece a melhor resposta: “não se guarda culpa por transgressão, e sim por omissão”[v].
Ao rumar para minha despedida, não posso deixar de mencionar Marcelo Gleiser: “ser livre, essencialmente, é poder escolher ao que se prender”[vi]. A minha liberdade decorre do meu voluntário aprisionamento a um conjunto de ideias consideradas em harmonia. Encontro-me acorrentado ao Texto Constitucional e isso não é qualquer mérito, é meu dever. E não é porque encararei novas trilhas que me livrarei desses grilhões, que nem a Súmula Vinculante nº 11 – em Benfica, a sigla sempre foi compreendida como Súmula Vacilante – se mostra capaz de arrebatar.
Sim. É hora de dizer o adeus. Não foi programado. O atual quadro sanitário me impede de abraçar as pessoas que foram tão importantes nessa jornada. Aos meus estagiários, o futuro do direito, peço desculpas se não pude participar mais do processo pedagógico de vocês, mas se uma dica pode ser dada, eu aproveito o momento: guardem tudo de ruim que passaram nesse período e não repitam no exercício profissional. Aos servidores da Defensoria Pública, apesar de não valorizados, nos limites da minha incapacidade, sempre tentei ajudá-los. Lembre-se: enquanto não respeitados, essa condição deve ser vista como transitória, não se acomodem; lutem por aquilo que lhes é devido. Paula, minha irmã, o que vai ser um sem ver o outro ou ligar para tirar uma dúvida? Não tenho como te agradecer por não ter feito com que perdesse minha humanidade. Denise, abelhão, cuidadora de mim, sempre responsável por me expulsar da sala com meu charuto e uma das maiores projetistas do que poderia ser feito em Benfica. Angélica, a bibliotecária, a responsável por me manter atualizado. Castro, o genérico, o homem revoltado que competia tom de voz comigo. Bleinier, o Tolstoi, uma máquina de conhecimento. Dani, a pessoa com o melhor humor que já trabalhei.
Agora, existem algumas certezas. Benfica é passado, pois a última amarra não se encontra mais presa em nenhum ponto do porto. Ainda com erros, vejo que esse navio, que é composto por uma única pessoa em sua tripulação, encara o mar com satisfação. O cheiro da maresia que quase foi esquecido já é vivenciado, a vida será em cada porto, mas com uma alegria enorme porque a faina foi feita, apesar das limitações pessoais, em Benfica com esmero. Quem sabe um dia, eu volto a atracar nesse porto, quem sabe…
EDUARDO NEWTON é mestre em direito pela UNESA e Defensor Público no estado do Rio de Janeiro/RJ
[i] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Habeas Corpus nº 0064910-46.2014.8.19.0000.
[ii] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Reclamação Constitucional nº 27.206.
[iii] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Reclamação Constitucional nº 33.963.
[iv] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Reclamação Constitucional nº 38729.
[v] BETTO, Frei. O que a vida me ensinou. O desafio é sempre imprimir sentido à existência. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 50.
[vi] GLEISER, Marcelo. O caldeirão azul. O universo, o homem e seu espírito. 4. ed. São Paulo: Record, 2019. p. 61.
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