por Luiz Eduardo Cani

Por meio da Lei 13.964/19, o tempo máximo de cumprimento de pena privativa de liberdade (a modalidade mais gravosa prevista na legislação brasileira para tempos de paz) foi incrementado de 30 para 40 anos[i]. Esse prazo máximo reacendeu alguns debates em torno da vedação constitucional de penas de caráter cruel, perpétuo, de banimento, de trabalho forçado e de morte em tempos de paz, prevista no art. 5º, XLVII, da Constituição[ii], que constitui o princípio da humanidade da pena.
Neste texto interessam duas das facetas desse princípio: vedação de pena cruel e vedação de pena perpétua.
A situação do sistema prisional brasileiro é conhecida por todos que adentraram a algum dos estabelecimentos que o compõem. Por si só, em muitos casos, a estrutura putrefata e a carência de condições mínimas de sobrevivência nesses estabelecimentos, tornam as penas cruéis. Mas não é desse tipo de crueldade (da submissão dos presos às condições precárias e degradantes dos presídios) que se trata.
Trata-se aqui, tanto desde a perspectiva da perpetuidade, quanto da crueldade, do tempo máximo de pena privativa de liberdade a cumprir. Para que se compreenda melhor o caráter cruel ou perpétuo e cruel da pena privativa de liberdade por até 40 anos é necessário ir à base: a expectativa de vida do apenado.
Dados estatísticos do IBGE indicam que, no ano 2018, a expectativa média de vida dos brasileiros chegou a 79,9 anos para as mulheres e a 72,8 anos para os homens, com média geral de 76,3 anos[iii].
Mas esses dados são insuficientes. Basta saber como é feita uma estatística para perceber que os casos devem ser analisados individualmente, considerando patologias pré-existentes, condições de vida e estado de saúde. Dito de outro modo, a expectativa de vida de 79,9 anos para as mulheres é fruto da média entre uma idosa que morreu de causas naturais aos 110 anos e uma mulher que morreu de inanição aos 49,8 anos: a primeira, residente em um dos territórios ricos do país; a segunda, em um dos territórios pobres.
Daí exsurgem três problemas.
O primeiro problema é que, assim como na reforma da previdência foram desconsideradas as desigualdades sociais e regionais, a reforma da legislação penal ignorou essas desigualdades.
O segundo, decorrente das distorções produzidas por essa tábula rasa, se apresentará nos casos individuais. Por um lado, condenar alguém com 18 anos a cumprir pena privativa de liberdade por 40 anos se apresentará, no mínimo, como pena cruel, na medida em que impedirá o planejamento e a condução da própria vida – mas isso é o mínimo, pois não se pode garantir que alguém sobreviverá por 40 anos nas teias do sistema prisional, ainda que em livramento condicional. Por outro lado, condenar uma mulher de 40 anos ao cumprimento da mesma pena terá tanto o caráter cruel, quanto o caráter perpétuo.
O terceiro, as condições ambientais das unidades prisionais não são levadas em consideração para a fixação do tempo máximo de pena, o que possibilita a punição em condições distintas de duas pessoas que praticam os mesmos crimes, de modo a prejudicar a expectativa de vida de uma ou, pelo menos, a favorecer a expectativa de vida de outra. Um exemplo simples ilustra isso: uma unidade sem atendimento de saúde para os presos pode reduzir a expectativa de vida dos presos, além de as patologias reduzirem o interesse por atividades que permitam às pessoas o gozo do próprio tempo de vida.
O resultado desses três problemas é a inconstitucionalidade do art. 75 do Código Penal por possibilitar a aplicação de penas perpétuas e cruéis ou, no mínimo, cruéis. O remédio constitucional cabível é a declaração de inconstitucionalidade em sede de ação direta de inconstitucionalidade ou ação declaratória de constitucionalidade, para que o Senado Federal suspenda a execução desse texto, nos termos do art. 52, X, da Constituição[iv]. O Congresso Nacional deverá, posteriormente, legislar novamente sobre a matéria.
Caso a inconstitucionalidade da medida não seja reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, pode, mesmo assim, o Congresso Nacional alterar o art. 75 do Código Penal por meio de nova lei. O que talvez seja até mais fácil.
De todo modo, sem que alguma dessas soluções jurídicas seja adotada, restará sempre ao Judiciário a tarefa de decidir casuisticamente. Isso, sabe-se bem, permite a criação de critérios na jurisprudência ou, dito de outro modo, serve de autorização para que o Judiciário perpetue as tentativas de legislar indiretamente.
Melhor seria que o Congresso Nacional cunhasse critérios objetivos para reduzir o tempo máximo de cumprimento de pena privativa de liberdade de acordo com as desigualdades sociais e regionais, bem como que utilizasse alguns desses critérios para permitir a redução da quantidade de pena, na dosimetria, para atender à individualização da pena.
LUIZ EDUARDO CANI é doutorando em Ciências Criminais (PUCRS), bolsista da CAPES, Professor e Advogado.
[i] Art. 75 do Código Penal. O tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a 40 (quarenta) anos.
[ii] Art. 5º, XLVII – não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis.
[iii] BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Agência IBGE. Expectativa de vida dos brasileiros aumenta para 76,3 anos em 2018. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/26103-expectativa-de-vida-dos-brasileiros-aumenta-para-76-3-anos-em-2018>.
[iv] Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal: X – suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal;
Categorias:ARTIGOS