por Mariana Anconi

Recentemente saiu a notícia(1) de que o prefeito de Belém-PA assinou um decreto de lockdowm em que consta um inciso que classifica o serviço doméstico como essencial com a justificativa de que, por exemplo, os médicos, trabalhadores na linha de frente, precisam de alguém para ajudar com as tarefas domésticas.
A notícia causa certo estranhamento. Mais uma vez, nos deparamos com a cultura de servidão no Brasil. Classificar como serviço essencial em meio a pandemia revela o um projeto político que busca promover rupturas do Brasil com seu passado. O fato lança luz a uma questão que ainda permanece no cerne sobre as decisões relacionadas às empregadas domésticas. Alguns anos atrás a decisão de formalizar o trabalho com carteira assinada causou grande impacto nos empregadores, dificultando a informalidade neste tipo de trabalho.
Bem, o fato é que essa notícia despertou um interesse no filme de Anna Muylaert Que horas ela volta? (2015). Val, empregada doméstica, mora com os patrões. Limpa, cozinha e cuida de Fabinho, por quem tem um grande carinho. Não à toa a tradução do título para inglês ficou como “segunda mãe” que escancara de forma muito mais direta os vários papéis exercidos por estas mulheres.
“Você é quase da família” diz a patroa a Val. Soaria como elogio se não fosse algo esquisito de se dizer a alguém. Essa frase mantém muitas trabalhadoras no limbo, furtando-as de qualquer chance em ter acesso, por exemplo, aos direitos trabalhistas. Dizer que é “quase da família” desvela o sem-lugar. Val nao é nem funcionária, nem da família.
Val é quase familiar, é uma estranha, in-familiar. É o resto de sua própria história ignorada pelos patrões e quase esquecida por ela. Neste espaço, na casa dos patrões, circula a ideia de que “você é bem vinda, mas sua história, não” promovendo a ruptura com as narrativas, os afetos e os laços primordiais.
Sua filha, Jéssica, surge como possibilidade de historicizar seus acontecimentos, produzindo um corte, uma descontinuidade na manutenção da lógica reforçada por Val, pelos patrões e por uma política que corrobora uma informalidade e ruptura com o passado. Jéssica vem como o elo que “causa”.
“Eu durmo no trabalho” diz Val para a filha. Não raro, ainda hoje, há apartamentos com o quarto de empregada. Ele representa, entre tantas coisas, o buraco deixado pelas leis trabalhistas e pela reatulização de um histórico segregacionista. Menciono aqui o artigo da arquiteta Luísa Brandão(2) que faz um resgate histórico importante sobre o tema e afirma que “ao analisar os ambientes domésticos, constata-se que a lógica formal de organização da vida privada colonial perdurou.”
O decreto assinado é mais uma forma de conciliação com o inconciliável no Brasil como diz Tales Ab’saber(3): “A conciliação à brasileira é de fato um movimento de conservação do arcaico nacional, e até o presente convive com traços acentuados da exclusão e da violência escravocratas originais brasileiras.”
A relação “in-familiar” entre Val e os patrões produz afetos ambivalentes, inclusive representados na forma em que se transita e vive dentro da casa. Peço licença a Freud para pensar o infamiliar neste contexto a partir da ideia de que “o que deveria ficar oculto se manifestou”.
Jéssica reaparece na vida de Val. A partir de seu retorno põe em questão a manutenção da lógica repetida por Val que “já se nasce sabendo” sobre saber o seu lugar na casa dos patrões e, também, na sociedade.
A presença de Jéssica na casa causa mal-estar revelando as raízes podres dessa relação “quase familiar” produzindo uma ruptura de Val com sua própria história. Uma violência que reverbera inclusive no assédio do patrão a Jéssica.
Vejam, não saber a resposta para a pergunta Que horas ela volta? tem a ver com um não-saber sobre o próprio futuro sob a ameaça do passado desaparecer. O decreto classifica as empregadas domésticas como serviço essencial em meio a pandemia impedindo que estas cuidem de seus filhos. Ou que sonhem com o futuro.
O sonho de Jéssica em cursar Arquitetura aponta para seu desejo de construção e planejamento da vida que ganha forma na cena em que as duas tomam um café juntas sonhando com o futuro que, inclusive, já tem nome.
MARIANA ANCONI é psicóloga, psicanalista e mestre pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP)
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(2)https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/pixo/article/viewFile/17458/10632
(3)Tales Ab’saber. Conciliação, cidade e regressão. Coleção Outras palavras: Volume 3, 2015.
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