por Gabriel Teixeira Santos

Indiscutivelmente, o avanço da pandemia em escala global promoveu mudanças inimagináveis sobre a rotina individual e coletiva. A rotina desgastante, padronizada e irracional – retratada por Chaplin em seu famigerado filme “Tempos Modernos”, com as respectivas modernizações – deu espaço aos “home offices”, teletrabalhos e afins.
Os “empresários de si”[1] nunca ficaram tanto tempo em casa (e olha que para alguns, entre os quais me incluo, esta tarefa é mais do que árdua – sim, o tom de pessoalidade foi presente em alguns trechos) e foram obrigados a lutar para transformar este período em algo “útil” e “produtivo”. Cambaleando, o mundo deve seguir. A roda de economia tem que girar.
Claro que o ócio, pouco a pouco, deu azo à criação de inúmeras teorias conspiratórias sobre a pandemia: de golpe de estado chinês até o fiasco do “comunavirus” [2]. Nem os precisos diagnósticos de István Mészáros [3] sobre a falência do atual modelo econômico puderam antever este cenário (talvez, se vivo estivesse, teria conseguido).
Adianto, desde já, que não pretendo me ater a uma explicação minuciosa sobre o que seria o neoliberalismo (e a captura dos corpos), sua mentalidade bélico-binária sufocante [4] e o seu declínio. Outros autores o fizeram, de forma magnífica e neste mesmo espaço, destacando aqui os escritos de Luiz Eduardo Cani [5], Rubens Casara [6] e Paula Abiko [7], respectivamente. De igual forma ocorrerá com a debatida falência sobre o atual modelo democrático (real e representativo) enquanto poder do povo [8].
Partindo das perguntas formuladas por Giorgio Agamben, em recente artigo [9], e as premissas acima para a abordagem pretendida do cenário atual (que deve ser repensado diante da sua notória insuficiência para enfrentar o horizonte global estabelecido pela pandemia) perpassa a obra de Guy Debord: “Sociedade do Espetáculo” [10].
Em referida obra, há um avanço (que pode ser tido como um passo seguinte) dos estudos sobre a dialética e a relação da luta de classes anteriormente preconizada por Marx, de modo que a alienação passa a ser elemento fundamental na disputa [11]. A concepção de espetáculo ultrapassa uma simples ideia de representação momentânea. É um discurso performático social em que as pessoas, dentro de um modelo capitalista ultrajante, vivem de imagens, signos e representações controlados pelos grandes conglomerados econômicos que estimulam (in)diretamente o consumo.
Por trás deste discurso, há um poder de “docilização dos corpos”, parecido com aquele diagnosticado por Foucault [12], que molda a forma com que cada imagem é transmitida, influenciando diretamente nos meios de produção e na forma com que há essa relação entre classes.
A propaganda vende emoções e as direções que devem ser seguidas – e passivamente, todas as imagens (editadas e que fogem ao controle do espectador), o protagonismo da própria vida é deixado de lado, substituído pelo potencial de consumo individual. Quem consome mais, pode mais [13]. A vida é representada e não vivida em uma sucessão de mentiras (em que a posterior desvenda o falseamento da anterior).
Assemelhando-se a um jogo, este discurso de uma sociedade do espetáculo cujas regras foram pré-estipuladas e apenas são mutáveis conforme a vontade e necessidade de manutenção do poder monetário, encaixa-se na definição de Galeano (ainda que sobre a conjectura do futebol) ao dizer que “o jogo se transformou em espetáculo, com poucos protagonistas e muitos espectadores, futebol para olhar, e o espetáculo se transformou num dos negócios mais lucrativos do mundo, que não é organizado para ser jogado, mas para impedir que se jogue” [14].
Neste momento, não está sendo diferente – ainda que Debord tenha escrito esta obra 53 anos atrás. Diariamente há um bombardeio de informações sobre a crise sanitária e, para alguns de forma indiferente, a contagem e exibição dos cadáveres são televisionadas como parte de um espetáculo macabro que, obviamente, é vendido (desde comerciais sobre álcool em gel ou sabonetes, bem como a própria audiência lucrativa).
Amontoam-se as “lives” (o termo em inglês é para tornar o “ao vivo” mais chique e comercial) de entretenimento musical (claro que as grandes cervejarias não poderiam deixar de participar do evento) e as empresas de radiodifusão transferem o valioso tempo que era destinado ao futebol, retirando o esporte da grade de programação, aos “jornais”/noticiários (que as vezes, diante do desgaste enfadonho que é falar sobre a mesma coisa o tempo todo, alternam com “flashes” de ocorrências criminais – afinal o medo sempre foi um negócio rentável).
Como mencionam Gilles Deleuze e Felix Guatari [15] a linguagem expressada é para obedecer e fazer obedecer, de tal sorte que os espectadores pouco se preocupam com a procedência e veracidade do discurso (que impõe a conduta/código moral, selecionando o que deve ou não fazer parte do cotidiano), tratando-o com indiferença.
Os corpos amontoados nas ruas de Guayaquil [16] tornam-se imagens para serem veiculadas em campanhas publicitárias governamentais, saciando os olhos atentos pelos próximos desdobramentos, em uma política de “nós e (seremos como) eles”.
Sem embargo, o “depois” não é animador: Byung-Chul Han, em seu prognóstico [17], prevê um recrudescimento do “estado de vigilância” que se instaurou na China e, possivelmente, será reproduzido ao redor do globo – com a normalização do estado de exceção (na concepção trazida por Giorgio Agamben [18]).
Caso esteja correto em suas previsões, haverá a mutação e manutenção do neoliberalismo. Ganhará fôlego a sociedade do espetáculo, o autoritarismo e seu consumismo desenfreado.
Se assim for, no controle permanecerão os mesmos (com suas máscaras) em seu modelo insustentável – que sacrifica vidas para a manutenção econômica (ainda que com o brado de aversão de instituições como a Defensoria Pública e o Ministério Público). Quem será o próximo a morrer para a economia ser mantida? (afinal a dignidade preconizada no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal e os demais direitos sociais só são válidos quando há algum argumento escuso).
Contudo, essa é a hora de repensarmos o atual modelo de consumo nocivo e desenfreado e, de uma vez por todas, virar o jogo na sociedade de consumo, rompendo o exercício de alienação e sacrifício das massas (principalmente dos vulneráveis). Que os deuses escutem Slavoj Žižek ao anunciar que o coronavírus é o golpe fatal a este modelo [20].
Todavia, os primeiros e fundamentais passos a serem dados são aqueles em direção à empatia e ao senso de coletividade que, indiscutivelmente, têm sido colocados a prova dia após dia de quarentena (talvez, só por meio desse período, nos lembramos que existem pessoas fora dos smartphones).
Necessária, pois, a consciência de que a antiga mentalidade abjeta de lucro a qualquer custo não resiste a qualquer contratempo de seus subservientes – e que, portanto, as vidas valem mais!
Ficam os ensinamentos de Menocchio perante seu inquisidor: “Acho que amar o próximo é um preceito mais importante do que amar a Deus” [20]. Que assim seja.
GABRIEL TEIXEIRA SANTOS é pós-graduando em Direito Penal e Criminologia pela PUC-RS, pós-graduando em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC-MG e advogado.
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[1] DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal; tradução de Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2016.
[3] MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição – tradução Paulo Cezar Castanheira, Sérgio Lessa. – 1.ed. revista. – São Paulo: Boitempo, 2011.
[4] CASARA, Rubens R R. Sociedade sem lei: pós-democracia, personalidade autoritária, idiotização e barbárie – 1ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018, p. 90.
[5] https://caosfilosofico.com/2020/04/17/%cf%83i-repeticoes-do-capitalismo/
[6] https://caosfilosofico.com/2020/04/12/o-largo-espectro-do-odio-da-esquerda-a-direita/
[7] https://caosfilosofico.com/2020/04/22/o-neoliberalismo-fracassou/
[8] Sobre o tema conferir: RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento – política e filosofia; tradução de Ângela Leite Lopes. — São Paulo: Ed. 34, 1996, p. 99 e ss.
[10] DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo; tradução Estela dos Santos Abreu – Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
[11] Há também um filme homônimo produzido pelo próprio autor (em 1973), legendado e disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=q0AJ66Rb-1o
[12] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 1987.
[13] SENNET, Richard. A cultura do novo capitalismo – tradução: Clóvis Marques – Rio de Janeiro: Record, 2006, p. 123 e ss.
[14] GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra – tradução por Eric Neponucemo e Maria do Carmo Brito; Digitalização e formatação: Lamps; Revisão: Argo – São Paulo: Editora: L± Edição de Bolso, 2015, p. 13.
[15] DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995, v. 2 (Coleção TRANS).
[18] AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção – tradução de Iraci D. Poleti. – São Paulo: Boitempo, 2004.
[20] GINZBURG, Cario. O queijo e os vermes: O cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição – tradução Maria Betânia Amoroso; tradução dos poemas José Paulo Paes, revisão técnica Hilário Franco Jr – São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 77
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