ARTIGOS

O peso do machismo vivo

por Paulo Ferrareze Filho e Paulo Silas Filho

O Peso do Pássaro Morto[1] é o primeiro livro da escritora Aline Bei. Vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018, a narrativa conta, em primeira pessoa, a história da vida de uma mulher desde a infância até a maturidade. Dos oito aos cinquenta e dois anos, a personagem sem nome de Aline Bei atravessa um itinerário em que as experiências da infância acabam maculando a vida toda. 

Nesse itinerário, a cena do estupro é marcante. O estupro é a conclusão do fim de um namoro entre adolescentes.

Pedro recebeu no celular uma foto da namorada beijando outras duas pessoas em uma festa. A foto viralizou, logo toda a escola sabia: “escreveram Pedro Corno, ocupando toda a lousa antes da professora chegar. Tentei apagar a lousa com a manga da blusa enquanto o povo da sala gritava: – Puta, Puta, Puta.” 

Ela tentou explicar a Pedro que o beijo tinha sido apenas uma brincadeira, que tinham se deixado levar pela música e pela bebida: “A gente tinha bebido um pouco mais do que o normal, aquela cerveja era muito vagabunda, subiu tão rápido, eu ia te contar, mas não assim. Não desse jeito Pedro…

O duplo luto fala da perda do namorado e da perda da dignidade. A identidade de mulher havia sido degenerada na escola ante toda a carga que ser “puta” implica a partir do espectro machista. 

Dias depois da ruptura, Pedro tocou a campainha, queria falar com ela. Da janela, ela o viu: “Meu ar fugiu do peito, tentei me arrumar rápida no espelho, joguei o cabelo pro lado, passando perfume em lugares estratégicos. Ele estava calmo, eu senti alívio. Pensei em argumentos como fiquei bêbada, ninguém trocou telefone, do cabeludo eu não sei […], e desci as escadas correndo num quase tropeço. Quando abri a porta o Pedro tinha uma faca que colocou no meu pescoço. Meu grito morreu no estômago, junto com o chute que ele me deu. Caí sem acreditar naquele Pedro que arrancou o meu vestido. O contato rente da faca queimava a pele e ardia enquanto Pedro mastigava meus peitos pronto pra arrancar o bico. Ele lambeu minhas coxas por dentro, a buceta, meu rosto, o cu e na língua um pau revirando. Entre a reza e o pulo escolhi ficar dura e estranhamente pronta pra morrer. Foi quando o xixi me escorreu as pernas.” Pedro disse: “– tá mijando em mim sua porca? Ele arrancou o pau pra fora e fez o mesmo na minha boca. O gosto morno, era azedo. Ele socou o pau até o fundo mais impossível da minha garganta. Vomitei. O Pedro ria, disse que arrombadas como eu prestam só pra dar, e olhe lá que tem muita putinha bem mais delícia do que eu em cada esquina. Ele abaixou as calças abriu minhas pernas e meteu com pressa, de olho fechado, a cara toda cerrada de gozo e nenhum ódio. O ódio agora era meu. Acabou. Eu melada no chão de ardósia. O Pedro subiu as calças, virou as costas e saiu.”[2]

O termo pornografia de vingança é usado para nomear a exposição e divulgação na internet de conteúdo sexualmente íntimo, sem o consentimento de pelo menos uma das pessoas expostas.

A literatura que trata do tema, com destaque para o trabalho de Vitória Buzzi[3],  é uníssona ao afirmar que a prática tem como principais vítimas as mulheres mais jovens[4], exatamente como mostra a metáfora literária de Aline Bei. No mesmo sentido, a organização internacional EndRevengePorn mostrou que 90% das vítimas de pornografia de vingança eram mulheres, sendo que, destas, 57% foram vítimas de ex-parceiros homens.

O trecho ora analisado não trata de uma violência realizada por ex-parceiro. No entanto, a banalidade tanto da viralização da foto quanto da cena nela contida (um beijo triplo de jovens bêbados em uma festa), fazem com que a apropriação violenta e machista da foto na escola acabe desdobrada na violência que Pedro pratica contra a namorada. A campanha de desmoralização experimentada na escola, lugar onde os primeiros laços afetivos e sociais são estabelecidos entre adolescentes, serve como metáfora literária de uma realidade socialmente cruel em que ataques morais e psíquicos são dirigidos contra meninas adolescentes.

Em um contexto de machismo arraigado, mesmo a banalidade de um extravasamento juvenil, uma vez divulgado, é capaz de gerar dor, angústia e sofrimento por toda a vida de alguém. A banalidade da foto ganha ares de notícia, de tabloide, de informação bombástica. E é esse exagero na dimensão do significado que faz com que a violência passe ao ato final com a cena de estupro.

Pedro, ainda que diretamente seja o violador, com essa mirada, constitui-se também como uma vítima do social, dessa psicopatologia social que é o machismo. Isso porque é tentando restituir a masculinidade, maculada pelo coro escolar, que Pedro comente o crime de estupro. O corno transforma-se na vítima e ocupa a posição não-explícita do bem, na medida em que é o outro da puta, que é a má. 

A afirmação dessa masculinidade, como símbolo de um poder vazio dado pela tradição, ganha importância suprema em relação ao sentimento amoroso de Pedro pela namorada. É isso que está em evidência na metáfora tão certeira que o livro faz da vida: o valor masculinidade, e todo o caudal que o acompanha, sempre são priorizados em uma sociedade maculada pela psicopatologia social do machismo.

Por isso Pedro não cogita o diálogo, não escuta quaisquer explicações. Deve reagir como reagem os animais a um perigo real de morte: com violência feroz e mortífera. Isso fica claro quando Pedro mastiga os peitos daquela que amava mas que, no entanto, tinha que estuprar para sobrepor-se à indignidade do corno. Nesse cenário, a autoridade masculina sobre o corpo e a autonomia da mulher torna-se um dado cruelmente naturalizado.

Temos na cena do estupro a prova radical da incapacidade de nossas sociedades, ditas civilizadas(?), de problematizar a fajutice ética que sustenta o patriarcado, e o machismo que dele decorre. 

Sabemos que a ética da tradição patriarcalista exige das mulheres docilidade, submissão, retidão moral e cumprimento fiel das obrigações com filhos, marido e casa.[5] Se isso pode parecer antiquado a alguns, no plano social, basta lembrar que no recente ano de 2018, o então presidente da república Michel Temer, falando sem roteiro em um pronunciamento, invocou os elementos essenciais dessa mulher protótipo da ética patriarcal: bela, recatada e do lar. Certamente, para meninos heterossexuais formados a partir desse modelo, um beijo triplo de uma namorada em uma festa de adolescentes bêbados representa uma afronta punível com (algum tipo de) morte.

Isso também explica a passividade daquela que é estuprada na narrativa de Bei, que parece aceitar placidamente tanto o rótulo de puta quanto a própria violência do estupro. Eis aqui uma certeza: dado o caráter coletivo, as psicopatologias sociais irradiam efeitos tanto em vítimas quanto em carrascos, personagens aparentes desse nó patológico, transformando, por isso mesmo, todos em vítimas, ainda que alguns não o saibam. 

Como aponta a literatura da pornografia de vingança, entre os sintomas das vítimas estão estresse emocional, depressão, prejuízos na vida social e profissional, assédio e perseguição na internet, medo de perda do emprego, falta de concentração e pensamentos suicidas. Todos esses sintomas aparecem, ainda que indiretamente, na narrativa de Aline Bei, que evolui contornando as minúcias da vida subjetiva de uma personagem deprimida, desesperançada, com evidentes prejuízos em diferentes aspectos da vida e uma relação com a maternidade de absoluto estranhamento. 

Não se pode deixar de ver no livro de Aline Bei uma metáfora da violência de gênero. Temos na obra apenas mais uma, entra tantas, histórias de violência contra o feminino e contra as mulheres. Se alguns mecanismos jurídicos hoje tentam coibir tais violências, como é o caso da tipificação acrescida ao Código Penal a partir da Lei n.º 13.718/2018[6], é a saúde psíquica e a subjetividade que, incapazes de se refazer com indenizações ou condenações, acabam padecendo.

Como psicopatologia social, o machismo enfraquece a democracia, já que mantém oportunidades de trabalho, posições de liderança e espaços públicos desequilibrados entre homens e mulheres. Preconceitos ligados a tarefas que são supostamente exclusivas de homens como dirigir carros, ou a restrição de acesso em sociedades oligárquicas como a maçonaria, são apenas exemplos privilegiados que comprovam o diagnóstico psicossocial do machismo.

Os sintomas da cultura patológica do machismo no Brasil podem ser verificados nos esforços da sociedade e suas instituições para arrefecer seus efeitos, combatendo a cultura do estupro, legislando sobre feminicídios e sobre a pornografia de vingança, permitindo a igualdade de tratamento jurídico para uniões homoafetivas e buscando incentivar a participação das mulheres em todas dimensões da vida pública. 

Como aponta Calligaris[8], o machismo decorre de um ambiente em que o ódio e a raiva são afetos dominantes. Essa constatação vale sob todos os céus do ocidente, incluindo o Brasil: à primeira vista, hoje, o ar de nossos tempos se apresenta como um clima de raiva e ódio, sem sequer o desejo de debater sobre as diferenças.” 

É passando a observar o fenômeno do machismo como psicopatologia social que será possível não apenas condená-lo, mas também trata-lo. E essa tarefa passa não apenas pela instauração de políticas públicas, mas também por meio de um discurso que saiba ser tão denunciativo quanto propositivo. A obra de Aline Bei insere-se nessa importante senda denunciativa, encorpa a força desse rio cada vez mais urrante que tenta, com legítima força, desintoxicar a todos nós das chagas daninhas do machismo.

“Cuidem das nossas crianças”. Eis o desejo derradeiro e impositivo do suicídio brasileiro. Comecem fazendo nossas crianças aprenderem a respeitar a diferença, já que todos nós, adultos, não aprendemos. Que os mais atentos espalhem a notícia de que essa lição não trata apenas sobre homens e mulheres.

PAULO FERRAREZE FILHO é professor universitário, pós-doutorando em psicologia social (USP) e psicanalista em formação

PAULO SILAS FILHO é professor de Direito na Universidade do Contestado (UnC) e na UNINTER, mestre em Direito e advogado


[1] BEI, Aline. O peso do pássaro morto. São Paulo: Editora Nós, Edith, 2017. 

[2] BEI, Aline. O peso do pássaro morto. São Paulo: Editora Nós, Edith, 2017, p. 57-60.

[3] BUZZI, Vitória de Macedo. Pornografia de vingança: contexto histórico-social e abordagem no direito brasileiro. Florianópolis, Empório do Direito, 2017. 

[4] BANQUERI, Poliana. Nova lei representa avanço no combate à pornografia de vingança. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-out-01/poliana-banqueri-lei-avanco-pornografia-vinganca. Acesso em: 28/04/2020.

[5] MOURA, Suellen. Ética da alteridade e desconstrução: para além da “essência feminina”. In: GOSTINSKI, Aline; MARTINS, Fernanda (orgs.). Estudos Feministas por um Direito menos Machista. 1ª Ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 179.

[6] Artigo 218-C do Código Penal: “Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, vender ou expor à venda, distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio – inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática -, fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de estupro ou de estupro de vulnerável ou que faça apologia ou induza a sua prática, ou, sem o consentimento da vítima, cena de sexo, nudez ou pornografia”.

[7] CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. Tradução Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 2006. 

[8] CALLIGARIS, Contardo. Qual é o ar dos tempos? Coluna publicada na Folha de S. Paulo no dia 21 de março de 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/2019/03/qual-e-o-ar-dos-tempos.shtml

[9] Conforme BELINASO, Camila. Na sociedade feminista…. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/na-sociedade-feminista. ISSN: 2446-7405. Acesso em: 28/04/2020. 

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1 resposta »

  1. Nossa fiquei sem reação, e ao mesmo tempo fiquei chocado pois muitas vezes contribuímos para este machismo que vem da tradição, mais o mais legal é que podemos nos desconstruir se permitimos e melhorar como pessoas ,
    Ótimo texto .Parabéns

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