por Mariana Anconi

Tudo acontece em uma ilha, num lugar remoto, lá no fim do mundo, onde Thomas Wake e Winslow precisam ficar quatro semanas na companhia do mar, do farol, das gaivotas e de seus corpos.⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
Passamos do tédio inicial da narrativa à fúria dos diálogos. Sempre regados a álcool, risadas, olhares, danças e lutas corporais. Se trata do universo masculino de fluidos corporais, agressões e flatulências? Ou do feminino e místico que, na figura da sereia, captura com seu canto aquele que se deixa ouvir?⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
Através da interação entre os dois personagens da trama, revisitamos uma construção frágil do masculino e do feminino do século 19, que tem em seus mitos a construção de uma fraqueza que vela e revela suas rachaduras no decorrer do enredo.⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
Nesse espaço entre-dois, testemunhamos a produção de um lugar íntimo, marcado pela tônica do escravo e do mestre ao melhor estilo hegeliano, em que um não existe sem o outro, como faces da mesma moeda. Alternam amor e ódio, assim como alternam-se a brutalidade e o olhar de desejo.⠀⠀⠀⠀⠀⠀
O horror do filme consiste no horror ao corpo. O corpo invadido pelo outro. Uma proximidade que confunde e ultrapassa o espaço íntimo entre-dois a ponto de um deles não se reconhecer no mar de identificações construídas ao longo da vida e, ainda, quem sabe, dizer em algum ponto “me tornei quem eu mais temia…”⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
A obsessão de Winslow pela luz refletida no olhar de Thomas (afinal, o desejo é sempre o desejo do Outro) o fez ir até as últimas consequências: capturar o objeto de desejo que lhe havia sido proibido. A proibição não evitou o pior. A profecia se cumpriu e seu corpo acabou devorado pelas gaivotas.⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀⠀
A luz na torre tem função importante para os que olham com certa distância, mas se torna letal para os que se aproximam demais.
MARIANA ANCONI é psicóloga, psicanalista e mestre pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP)
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