por Paulo Ferrareze Filho

Todos somos canalhas em alguma medida. A diferença para mensurar a canalhice pode estar no quanto se quer ou não ocultá-la. Minha hipótese aqui é a de que quem usa gravata é mais potencialmente canalha que os outros. Justamente porque quer esconder suas calhordices atrás do símbolo de retidão moral que supostamente envolve os trajes engravatados.
Assim, quem usa gravata é um canalha prestes à eclodir. Claro que há casos em que a canalhice fica latente, submersa como um monstro marinho adormecido.
Essa conclusão antecipada percorre um trajeto teórico e empírico. Ou seja, assim como a teoria pode justificá-la, confirmada por um rol de gente com café no bule como Luis Alberto Warat, Jorge Ben Jor, Guilherme Boulos, Eduardo Moreira e Sigmund Freud; também a vida já me fez trombar com uma quantidade considerável de canalhas engravatados.
Em 2008 conheci pessoalmente uma figura mítica do direito brasileiro. Luis Alberto Warat viria a morrer dois anos depois, em 2010. Assim é que escutei os últimos fôlegos teóricos de Warat, um jurista dissidente que navegava, logo antes de morrer, as ondas subversivas da psicanálise, certo de que o direito, tradicionalmente normatizador, não tinha capacidade de lidar com os afetos humanos, verdadeira fonte de quase todos os conflitos judiciais. Warat criticou os juristas engravatados dizendo que eram pinguins fantasiados de gente. Para ele a gravata era o símbolo de juristas inábeis no terreno dos afetos. Pessoas sempre mais ocupadas com suas agendas cheias de exatidão e suas máscaras prontas para a ação.
Em 2010 comecei a prestar atenção nas músicas místicas de Jorge Ben. A canção O homem da gravata florida tem uma letra certeira que diz: “com gravata no pescoço, qualquer homem vira príncipe”. Com uma gravata “ele é esperado, é bem chegado, é adorado e, em qualquer lugar por onde passa, nascerão flores e amores”. A música retrata a gravata como um símbolo da elite ocidental. Assim, os modos de constituição das elites participam do histórico por trás da simbologia que envolve a gravata. No Brasil, a história dos engravatados se confunde com a história de corruptores e de autoritários. A composição das elites brasileiras engravatadas pertence à gente que, desde o início, se mancomunou ilícita ou imoralmente entre si. Essas formações, conluios, arranjos e consensos, feitos à base de tapinhas nas costas entre poderosos, é uma cena histórica constituída por personagens empolados, exatamente como são os engravatados de hoje e de sempre.
Em 2018 não votei em Boulos porque sabia que ele não tinha chance. Mesmo assim, subversivo e pedagógico, Boulos foi ao debate da Globo sem gravata, simbolicamente dizendo não àquele regurgitar histórico de canalhice à brasileira. Entre os empolados, majoritariamente sobraram pastores, barões da política, milicos prescritos, banqueiros e economistas.
Agora em 2020, cheguei ao livro do Eduardo Moreira “O que os donos do poder não querem que você saiba”, que fala sobre os engodos do mercado de investimentos e dos bancos, e da ignorância dos investidores e da massa de clientes. Eduardo demonstra como a gravata age simbolicamente nesse mercado que é o sintoma mais expressivo da psicopatologia social do neoliberalismo. Bancos e financeiras, desde sempre, acreditaram que a imagem daqueles que os representam deve ser necessariamente a de alguém alinhado e engravatado.
Diz Eduardo que “a receita é simples e sofisticada. E começa já pela vestimenta de quem te atende. Gerentes, consultores e corretores vestem-se com terno e gravata para se colocarem em um patamar de superioridade em relação a seus clientes. Para fazer com que você tenha medo e vergonha de fazer uma pergunta, de demonstrar seu desconhecimento em relação a assuntos financeiros. O terno cumpre a função de afastar, distanciar, ameaçar e amedrontar. O engraçado é que as pessoas que vestem terno acabam acreditando nessa mentira. Incorporam o personagem e falam com seus clientes num tom que sempre flerta com a prepotência.”
Freud concebeu, muito antes de Warat, Jorge Ben, Boulos e Moreira, o conceito de “dupla moral”. Grosso modo ela significa que atribuímos dois pesos e duas medidas para os julgamentos morais que fizemos dos outros. Tende-se a ser tolerante com os próprios erros e rígido com os erros alheios. Ou, em outro aspecto, como diz Dunker “julgamos aqueles a quem consideramos pertencer a nosso grupo, família ou classe de modo diferente da forma através da qual julgamos os outros a quem não atribuímos esse pertencimento. Mas além disso criamos justificativas morais para essa diferença de racionalidade em nosso julgamento.”
O engravatado é um duplo moral encarnado. As podridões humanas e sociais nunca são apenas éticas, mas também estéticas. Por isso a gravata é um sinal de canalhice que funciona como escudo objetivo de retidão que canalhas usam pra compensar a má-fé subjetiva que carregam.
“Onde há fumaça, há fogo”, diz a sabedoria popular. A gravata é a fumaça da canalhice. Por isso não esqueça: quando você estiver na frente de um engravatado, desconfie. Mais ou menos, trata-se de um salafrário em potencial.
PAULO FERRAREZE FILHO é professor de psicologia jurídica (UNIAVAN), psicanalista em formação e pós-doutorando em psicologia social (USP)
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