ARTIGOS

A alma brasileira do carnaval em Jorge Amado

por João Batista Ericeira

Jorge Amado estreou em 1931 com o romance “País do Carnaval”. Posteriormente, ingressou no Partido Comunista e produziu obra ficcional de denúncia social, apontando as mazelas do capitalismo. Integram esse período títulos adaptados pela dramaturgia televisiva como Jubiabá, Mar Morto, Cacau, Capitães da Areia.

Posteriormente, iniciou a saga do romance feminino, com narrativas que desenvolvem-se em torno de mulheres como personagens principais: Gabriela, Teresa Batista, Dona Flor. Tipos sempre marcantes e representativos das qualidades do povo brasileiro em oposição aos defeitos de suas elites.

O escritor baiano rompeu com o estilo machadiano de escrever. Deixou de lado a língua das elites e procurou reproduzir falas do povo. Chegou, por isso, a ser acusado de violar a gramática. Mesmo assim, preferiu falar do Brasil e dos brasileiros a partir da ficção, sem se deter em tipos explicativos daquilo que os sociólogos chamam de “alma nacional”.

Forneceu farto material para antropólogos e cientistas sociais decifrarem o Brasil e seu povo. Um dos trabalhos preferidos para esse fim é “Dona Flor e seus dois maridos”.

Roberto Da Matta, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, visitante em universidades americanas, é autor do trabalho “Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro”, nele, dedicou-se a estudar Dona Flor como o romance-síntese de explicação do Brasil.

Vadinho, o malandro, boêmio, folião, morre em pleno tríduo carnavalesco, deixa a viúva dona Flor desolada, pois apesar do desregramento, o desaparecido marido lhe completava. Se ela era a ordem, o dever, Vado era a transgressão, a sensualidade, mas um completava o outro.

Flor cumpre o ciclo da viuvez, e depois se casa com o doutor Teodoro Madureira, o farmacêutico certinho, outro como ela, representante da lei e da ordem. Aí começa a fase de enorme sofrimento para a heroína, entediada com a previsibilidade e certezas da vida marital.

De repente, Vadinho começa a lhe aparecer, e Flor passa a conviver com os dois maridos: o primeiro criativo, sensual, carnavalesco, transgressor; o segundo, repetitivo, ordeiro, cumpridor dos deveres.

Para a análise antropológica, Flor é o Brasil, convivendo de forma relacional com as duas vertentes: a formal, racional, e a emocional e carnavalesca.

No trabalho “A Casa & A Rua” Da Matta explica a brasilidade a partir desse polo relacional, sugerido à página 136:

“O Brasil é o país do carnaval e é também e simultaneamente a sociedade do “sério”, do “legal”, das comemorações cívicas e das leis que têm exceções para os bem- nascidos e relacionados. Tudo indica que fazemos como fez Dona Flor, buscando juntar sistematicamente esses pólos.

Nessa perspectiva, não teríamos uma essência brasileira: raças, religião, racionalidades, tristezas ou cordialidades. Teríamos, isso sim, uma configuração especifica, historicamente dada, em que se combinou legalismo formalista ecentralizador com relações pessoais instrumentalizadas e imperativas”.

As ideologias, os esquemas tradicionais de interpretação, não estão aptos a desvendar o Brasil e os brasileiros, e sim, as suas festas populares, dentre elas, a maior de todas, o carnaval, esclarecido à página 116:

“É que o carnaval estabelece nas sociedades hierarquizadas um “continuum” marcado pelo diálogo e pela comunicação explosiva, sensual e concreta de todas as categorias e grupos sociais. As distâncias são eliminadas e isto precisamente porque o mundo está de cabeça para baixo, perdendo temporariamente a sociedade os seus centros regulares de poder e hierarquização que se fundam num controle jurídico- religioso-politico ancorado no Estado”.

A cultura brasileira convive com a ambigüidade relacional, em que se é pessoa em casa, e indivíduo na rua, em que as instituições e o Estado não são grande coisa, mas a amizade é uma “instituição” sólida, séria. O Carnaval explica assim a alma nacional.

JOÃO BATISTA ERICEIRA é advogado e mestre em direito pela Universidade de Brasília

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