por Eduardo Newton

O revisionismo está na moda em alguns setores da sociedade. De acordo com seus adeptos, vários eventos se tornaram objeto de leituras heterodoxas.
Alguns exemplos podem ser destacados. O dia 1º de abril de 1964 não representou uma quartelada que garroteou a democracia brasileira. O planeta é plano. A devastação da Amazônia não é real…
Pois bem, já que a Amazônia também está em questão para essas leituras, é relevante ter em mente como uma árvore perece naturalmente, a saber: quando deixa de buscar nutrientes no solo, quando não realiza fotossíntese e quando acaba por ser tornar rígida, inflexível.
As transformações ocorridas nos últimos anos alcançaram os processos de aprendizagem. Minha metodologia da escrita, à base do papel e caneta, é diferente da empregada pelo meu filho Guilherme, que já consegue escrever diretamente nos mais diferentes e modernos aparelhos.
Contudo, apesar de todo o avanço tecnológico, é certo que o processo de aprendizagem não conseguiu romper com um modelo que foi objeto de dura crítica por parte de Paulo Freire, isto é, a chamada educação bancária. Assim, muito se aposta numa forma simplória de transmissão de informações em que o aluno é mero depositário desse “saber”, bem como é mantida uma crença inabalável de que o conhecimento pode ser possuído.
Nos anos 70, Erich Fromm, apesar de adotar referencial teórico distinto de Paulo Freire, já tecia críticas a essa forma de conceber o conhecimento:
“O conhecimento ideal no modo de ser é o conhecer mais profundamente. No modo de ter é ter mais conhecimento. Nosso processo educativo, em geral, tenta adestrar as pessoas a terem conhecimento como uma posse, geralmente comensurável com a quantidade de propriedade ou prestígio social que ele deve proporcionar mais tarde. O mínimo que recebem é a quantidade necessária a fim de funcionar adequadamente em seu trabalho. Além disso, dá-se-lhes uma ‘embalagem de conhecimento de luxo’ para fortalecer seu sentimento de valor, sendo o tamanho da embalagem de acordo com o provável prestígio social da pessoa. As escolas são as fábricas em que a embalagem desse conhecimento completo é produzida (…)”[i]
A partir da concepção sobre o que é o conhecimento, a educação pode adquirir um perfil emancipatório, transformador e revolucionário, o que se torna imprescindível para um país que confessadamente, e em nível constitucional, reconhece ser desigual. Aliás, a partir de sua própria experiência vivida em uma sociedade notoriamente racista, Bell Hooks aponta para essa dualidade antagônica que pode assumir o processo pedagógico:
“Essa transição das queridas escolas exclusivamente negras para escolas brancas onde os alunos negros eram sempre vistos como penetras, como gente que não deveria estar ali, me ensinou a diferença entre a educação como prática de liberdade e a educação que só trabalha para reforçar a dominação. Os raros professores brancos que ousavam resistir, que não permitiam que as parcialidades racistas determinassem seu modo de ensinar, mantinham viva a crença de que o aprendizado, em sua forma mais poderosa, tem de fato um potencial libertador.” [ii]
O ensino jurídico e as carreiras no Direito não ficam imunes à isso. Desde o momento da seleção dos atores jurídicos – o que inclui, portanto, os magistrados -, se privilegia um conhecimento voltado unicamente para a manutenção do status quo. Caso o candidato se mostre devidamente adestrado, poderá então usufruir de todas as benesses de um cargo – ainda que de duvidosa constitucionalidade (vide os mais diversos auxílios etc.).
Além do adestramento a que foi submetido para ingressar na carreira, o desenvolvimento dela não é acompanhado de um processamento e análise da postura dos concursados em relação ao Texto Constitucional. Isso justifica, por exemplo, a resistência de parcela da magistratura ao juiz de garantias. Essa aversão, que se afasta da técnica, aponta para a dificuldade de nossa magistratura de superar a mentalidade autoritária na persecução penal.
Esse fenômeno se dá pelo fato de que parte da magistratura não confere o valor devido à doutrina, optando pelos meros comentadores de decisões judiciais, que nada mais são que compiladores de informações, ou seja, adeptos de uma vertente de que o conhecimento pode ser possuído. Não por outra razão que Lenio Streck critica tais posturas a partir do que chama de constrangimento epistemológico, ação de resistência da doutrina para a proteção do Direito e da Constituição:
“É papel precípuo da doutrina criticar os equívocos dos que detém o poder de dizer e construir o Direito. Na medida em que a própria Constituição Federal estabelece, no artigo 93, IX, que as decisões mal fundamentadas são nulas, o Supremo Tribunal Federal, por exemplo, não tem o direito de errar por último. E, por isso, uma doutrina jurídica crítica pode impedir más decisões, compreendidas como fruto de uma racionalidade ideológica subjetivista/discricionária (ambas são faces da mesma moeda), se repitam.”[iii]
Se a Justiça Criminal fosse ilustrada por uma floresta, certamente seria composta por muitas árvores secas e mortas. Se a Justiça Criminal não busca no “solo doutrinário” os elementos que a permitam refletir sobre o direito posto, nada poderá oferecer ao meio social, salvo simulacro de decisões, já que pautadas pela moral ou por argumentos sensacionalistas que mais se aproximam daqueles utilizados em programas televisivos de duvidosa qualidade.
A árvore que perece ao menos tem seu corpo a oferecer ao meio ambiente, que poderá servir de alimento para o restante da mata. Com a Justiça Criminal que perece diante de nós, não há alimento que sobre. Isso porque, ao se negar a realizar um diálogo crítico com a doutrina, além de geralmente descumprir a Constituição, antes de alimento, nossa Justiça Criminal sabe produzir dor. Apenas dor.
EDUARDO NEWTON é mestre em direito pela UNESA e Defensor Público no estado do Rio de Janeiro/RJ
[i] FROMM, Erich. Ter ou ser? Rio de Janeiro: Zahar, 1977. p. 57.
[ii] hooks, bell. Ensinando a transgredir. A educação como prática da liberdade. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017. pp. 12-13
[iii] STRECK, Lenio. Dicionário de hermenêutica. Quarenta temas fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Casa do direito, 2017. p. 43.
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