ARTIGOS

O jogo jurídico e o contexto inquisitorial brasileiro

por Bianca Coelho

O processo penal não é para amadores. Encarar o processo apenas como um conjunto de regras ou como uma racionalidade instrumental é ingenuidade.

O processo é jogo. Uma guerra em que a justiça é somente um pretexto para que determinados interesses prevaleçam. Juristas inadequados a esse cenário, tendem a permanecer ludibriados com a falsa percepção de um terreno também falsamente seguro, regido por uma porção de normas falsamente coerentes.

A defesa precisa ter inteligência (inclusive emocional) para driblar problemas extra normativos como a falsa equivalência entre os sujeitos do processo e a cultura inquisitorial presente no Judiciário brasileiro.

Até os mais desatentos olhos percebem uma tensão contrária entre “eles” (réu e advogado) e “nós” (magistratura e Ministério Público). A promíscua relação entre Moro e Dallagnol confirma esse diagnóstico. Curioso observar que essa tensão está simbolicamente retratada na disposição estrutural dos Tribunais do Júri: MP ao lado do juiz, enquanto a defesa fica à distância.

Por outro lado, a cultura inquisitorial do processo penal no Brasil faz com que a  opinião popular invada o terreno técnico jurídico. Assim, anseios políticos atropelam a consciência e a responsabilidade técnica que deve prevalecer no manejo do processo por seus atores. Com um pouco de inteligência é possível concluir que, ao relativizar (ou suprimir) as garantias de um cidadão qualquer, abre-se precedente para que a insegurança jurídica paire sobre todos.

Dentro desse cenário, a defesa deve ter cartas na manga.

Já que o jogo tende sempre a ser desigual, o advogado de defesa precisa tomar a dianteira. A investigação defensiva – para ficar apenas nesse exemplo – é sempre uma boa estratégia, afinal, não há dúvidas que a investigação policial serve à acusação.

Deve-se anotar que o excesso de confiança pode ser um inimigo oculto, na medida em que pode sacrificar estratégias e reputações. Não subestimar o adversário é sempre um bom caminho a seguir, afinal, como afirma Alexandre Morais da Rosa, um dos precursores da inserção da teoria dos jogos no processo penal, “aquilo que você desconhece, você não sabe que desconhece”.

Nesse passo, em um sistema em que se relativizam garantias constitucionais, um advogado não pode se insurgir alegando que a estratégia do oponente não estava prevista nas regras. Ora, mesmo sem previsão, o golpe do oponente sempre pode atingir. Assim, só será surpreendido quem se deixa surpreender. Daí porque acreditar demais na própria jogada ou na falha do adversário pode ter um preço caro.

Da mesma forma, é ingenuidade crer que os poderosos, ao mapear as táticas da defesa, irão rechaçá-las tão somente por meio do processo. Infelizmente, na atual dinâmica social e política, não é exagero esperar que estratégias da defesa sejam até criminalizadas.

Para a defesa, o processo penal no Brasil é parecido com um apocalipse zumbi: na névoa densa, o advogado de defesa, ainda que tenha que apontar seu farol para o destino onde pretende chegar, deve ficar atento a todos os zumbis que podem atacar pelos lados.

BIANCA COELHO é advogada criminalista em São Paulo

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3 respostas »

  1. Texto que desnuda um dos mitos da Justiça: os olhos não estão vendados e a balança autoritária de se dar, de antemão, ao inquisitor é parte da própria estrutura operacional do processo penal. Que a nova geração de juristas que Dra. Bianca representa nos traga o processo no efetivo contraditório como instrumento mais civilizado de distribuição de justiça

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  2. Texto que desnuda um dos mitos da Justiça: os olhos não estão vendados e a balança autoritária que da razão, de antemão, ao inquisitor é parte da própria estrutura operacional do processo penal. Que a nova geração de juristas que Dra. Bianca representa nos traga o processo no efetivo contraditório como instrumento mais civilizado de distribuição de justiça

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  3. O texto de Bianca Coelho clama por uma real justiça, que urge transparência, em um cenário que – segundo o filósofo Guy Debord – é um grande espetáculo, porém macabro, hediondo e assutador. Desnuda, com certeza, com veemência a verdade sobre a teatralidade que cerca o processo penal , como afirma a autora, “um jogo”, marcado, muitas vezes, pela sordidez, que se desenvolve em meio a um silêncio compactuado.

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