por Paula Yurie Abiko

O grande ditador é um clássico do cinema estrelado por Charlie Chaplin na década de 40. O filme foi lançado para satirizar o nazismo, o fascismo e seus maiores líderes, Hitler e Benito Mussolini. Na época do lançamento do filme, os Estados Unidos ainda não haviam entrado na Segunda Guerra Mundial, e o filme recebeu cinco indicações ao Oscar, tornando-se posteriormente um clássico do cinema.
Uma cena emblemática do filme (hoje disponível no YouTube), é a de Chaplin dançando com uma bola que possui o formato do globo terrestre, demonstrando a ambição de Hitler e a vontade exacerbada de dominar o mundo e os outros.
Fato é que, oitenta anos depois, não somente o filme como o tema do autoritarismo estão mais em voga que nunca. Afinal, quem não lembra da última fala do ex-Secretário Nacional da Cultura, Roberto Alvim, na qual elaborou um discurso usando frases semelhantes às utilizadas por Joseph Goebbles, Ministro da propaganda de Hitler no governo nazista.
Superar a mentalidade autoritária não é algo fácil em um país com uma ditadura militar que durou vinte e um anos, com oscilações de constituições outorgadas e promulgadas e com impeachments de Presidentes eleitos. Tudo isso representa a não superação da mentalidade autoritária em nossa sociedade.
Um dos livros mais vendidos em grandes plataformas como Saraiva e Amazon é “Como as democracias morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, best seller do The New York Times e um dos mais vendidos no Brasil em 2019.
O interesse pelo tema decorre sem dúvidas do momento político atual, no qual o ódio, o preconceito e a intolerância parecem ter se difundido rapidamente, legitimando atos extremamente autoritários e controversos. A obra não analisa o cenário político especificamente do Brasil, mas reflete sobre a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, e como ela gerou insegurança em um país que parecia ter uma democracia efetivamente consolidada.
Nesse sentido, ressaltam Levitsky e Ziblatt que “os políticos norte americanos agora tratam seus rivais como inimigos, intimidam a imprensa livre e ameaçam rejeitar o resultado das eleições. Eles tentam enfraquecer as salvaguardas institucionais de nossa democracia, incluindo tribunais, serviços de Inteligência, escritórios e comissões de ética’’[1].
Tal é a semelhança com o nosso momento político na atualidade, e certamente o interesse dos leitores brasileiros por essa obra reflete a preocupação com o cenário atual, bem como os discursos que temos ouvido diariamente na grande mídia e nas redes sociais.
Mesmo ante as necessárias críticas aos governos anteriores (pois os erros foram muitos), é importante reconhecer alguns passos importantes que foram dados em direção da equidade social, tais como os programas estudantis (ProUni e Fies), os intercâmbios pelo Ciências sem Fronteiras, os programas habitacionais (como o “Minha casa minha vida”), a bolsa família para famílias em situação de extrema pobreza e miséria, e outras conquistas sociais que foram de suma importância para o desenvolvimento da sociedade brasileira.
O ideal para governar é o intuito genuíno de transformar a sociedade por meio da política, garantindo uma vida digna à todos os cidadãos, afinal como enfatiza Jacques Rancière[2], “se há uma categoria que deve ser excluída da lista dos que estão aptos a governar, é a dos que intrigam para obter o poder’’. Contudo, infelizmente sabemos que não é assim…
Mesmo com os erros, ao menos parecia que estávamos caminhando para um país mais democrático, no qual a busca da igualdade social tornava-se aos poucos uma realidade e a voz dos movimentos sociais estavam sendo ouvida.
Até que nos deparamos, novamente, com o autoritarismo em sua face mais perversa. Por isso, obras como a de Levitsky e Ziblatta, além de outras como a do professor Jason Stanley da Yale University (“Como funciona o fascismo, a política do ‘’nós’’ e ‘’eles’’), estão sendo tão procuradas pelos leitores brasileiros.
Por meio dos discursos de combate à corrupção, observamos o monstro do autoritarismo surgir e justificar demasiados atos de abusos e arbitrariedades, em nome de um ‘’inimigo’’ declarado. Ressalta Jason Stanley[3]: “Assim como a política fascista ataca o Estado de direito em nome do combate à corrupção, ela também pretende proteger a liberdade e as liberdades individuais. Mas essas liberdades dependem da opressão de alguns grupos.”
Outro discurso que ganhou voz nos últimos meses, além do combate à corrupção, é a necessidade de punir de forma mais efetiva os indivíduos que cometem crimes. A justificativa é aumentar a segurança. No entanto, o que não se percebe é como o discurso populista do direito penal, que visa aumentar penas e o encarceramento, não atenta para as condições de possibilidade de ressocialização e não reincidência.
Ressalta Angela Davis, nesse sentido[4], que “a prisão funciona ideologicamente como um local abstrato no qual os indesejáveis são depositados, livrando-nos da responsabilidade de pensar sobre as verdadeiras questões que afligem essas comunidades das quais os prisioneiros são oriundos em números tão desproporcionais’’.
Portanto, não há a menor intenção na busca efetiva pela ressocialização desses indivíduos, mas apenas de retirá-los do convívio social, não contribuindo para a redução da violência, eis que não tutela os problemas sociais em sua integralidade.
Outra excelente obra que reflete a manutenção da violência no sistema prisional, além da cultura do medo e da influência da mídia nos casos penais, é a do professor Airto Chaves Jr.[5], que ressalta que os “medos são potencializados por meio de imagens midiáticas que contribuem para a naturalização da expansão da resposta penal, tanto sob a perspectiva do senso comum cotidiano das pessoas quanto na formação do senso comum teórico dos agentes que atuam no Sistema de Justiça Criminal’’.
E é através desses discursos ‘’salvadores da pátria’’ que observamos um autoritarismo cada vez mais exacerbado com aqueles indivíduos considerados inimigos da sociedade. Hoje, em decorrência da economia neoliberal, boa parte dos indivíduos “não tem valor de uso”, conforme aponta professor Rubens Casara.
Esse cenário converte-se naquilo que foi denominado de Estado pós-democrático de direito, no qual o poder político e o poder econômico se mesclam para a obtenção de seus interesses. Ressalta Casara[6] que “por pós-democrático, na ausência de um termo melhor, entende-se um Estado sem limites rígidos ao exercício do poder, isso em um momento em que o poder econômico e o poder político se aproximam, e quase voltam a se identificar, sem pudor. No Estado pós democrático a democracia permanece, não mais com um conteúdo substancial e vinculante, mas como um mero simulacro, um elemento apaziguador’’.
Em uma sociedade guiada pelos princípios econômicos, no qual os indivíduos valem pelo que tem, não pelo que são, é preocupante a ascensão desses discursos autoritários, cada vez mais aceitos e normalizados pela sociedade.
Sem sombra de dúvidas, precisamos estar atentos, afinal, grandes líderes fascistas e autoritários do passado foram eleitos democraticamente e, só posteriormente, governaram a partir de condutas extremamente arbitrárias.
Uma das características do autoritarismo é o que Jason Stanley denomina de anti-intelectualismo, já que tais governos desvalorizam a educação e o senso crítico. Afinal, quem não lembra de frases do governo atual sobre os livros didáticos como: “É necessário reformular os materiais didáticos, isso aí tem um monte de coisa escrita, tem que suavizar isso aí’’, ou ‘’jovens não precisam ter senso crítico”. “É que os jovens de hoje tem tara por curso superior, no meu tempo com cursos técnicos para consertar geladeira e fogão dava para ganhar até R$ 12.000, 00 doze mil reais por mês’, entre outros. Ressalta Staley nesse sentido[9]: ‘’ a política fascista procura minar o discurso público atacando e desvalorizando a educação, a especialização, e a linguagem’’.
E os reflexos dessas posturas são demasiado drásticas para milhares de jovens que possuem o sonho de formar-se, trabalhar e possuir uma vida digna. Inclusive este ano, em decorrência de auditorias que serão realizadas no ENEM (o Exame Nacional do Ensino Médio), diversas instituições não irão escolher alunos pelo sistema SISU, apenas aceitando candidatos que tenham realizados os respectivos vestibulares, não considerando a nota do ENEM. Vale lembrar que o referido exame também foi alvo de críticas pelo governo atual por elaborar questões ‘’progressistas demais’’, com temas de gênero e direitos LGBT por exemplo.
Enfim, demasiadas questões podem ser destacadas sobre posturas autoritárias, ensejando muitos questionamentos, angústias e discussões. Isso pois, em parcela da sociedade, primordialmente os jovens de baixo poder aquisitivo e escolaridade que acabam cometendo algum delito, mesmo sem nenhuma chance anterior de ascensão social, a única porta apresentada é o direito penal e o cárcere, impossibilitando a garantia de uma vida digna com os mínimos direitos possíveis.
No tocante a influência da economia na sociedade atual e os indivíduos em situação de vulnerabilidade social, ressalta Casara[10]: ‘’sem compreender que os direitos fundamentais foram relativizados no Estado Pós Democrático porque são percebidos como obstáculos tanto ao mercado quanto à eficiência punitiva necessária ao controle das pessoas ‘sem valor de uso’ na racionalidade neoliberal, é impossível reagir ao avanço do autoritarismo’’.
E preocupante é pensar que diversos seguimentos sociais agem de forma similar para simplesmente aniquilar esses indivíduos do convívio social, eis que considerados inimigos e danosos a sociedade, como ressalta Zaffaroni[11]: ‘’a essência do tratamento diferenciado que se atribui ao inimigo consiste em que o direito lhe nega sua condição de pessoa. Ele só é considerado sob o aspecto de ente perigoso ou daninho’’.
Fato é que a ascensão do pensamento autoritário legitima arbitrariedades em todas as esferas sociais, no cotidiano, no sistema de justiça e na sociedade em sua totalidade. Algo que recentemente causou-me perplexidade, foi a leitura de um recurso de agravo no âmbito da Execução Penal.
A Magistrada no caso concreto deixou de regredir o apenado liminarmente, com base no princípio da presunção de inocência, eis que a ação penal do apenado ainda está em curso e não houve trânsito em julgado sequer em primeiro grau. Eis que organizando as contrarrazões, observo o seguinte trecho do referido Promotor no recurso interposto: ‘’ Infelizmente, o princípio da presunção de inocência, antes pouco falado, nos últimos anos foi convertido em um manto sagrado utilizado para acobertar a escória da sociedade’’.
Assim, com essas palavras, referindo-se aos apenados defendidos pela Defensoria Pública. Sem nenhuma vergonha, empatia ou que seja bom senso. Por isso precisamos estar atentos ao avanço do autoritarismo, para que não percamos nunca a capacidade de nos indignarmos com as arbitrariedades e as injustiças.
Infelizmente, nobre Promotor, não posso fazer o Senhor ter empatia ao próximo, ou fazê-lo se colocar no lugar do outro para entender suas dores, só almejo que o pensamento de Vossa Senhoria não seja o da maioria quando trata-se de indivíduos nessa condição de vulnerabilidade social, afinal, eles sabem que erraram, estão cumprindo as penas, e merecem o mínimo de dignidade dentro do complexo sistema de (in)justiça criminal. Resistiremos!
PAULA YURIE ABIKO é graduanda em Direito e integrante da Comissão de Criminologia Crítica do Canal Ciências Criminais
[1] LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem, tradução de Renato Aguiar, 1ª edição, Rio de Janeiro, Zahar, 2018. p. 13.
[2] RANCIÈRE, JACQUES, O ódio à democracia, tradução: Mariana Echalar, 1ª edição, São Paulo, Boitempo, 2014, p. 59.
[3] STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo, a política do ‘’nós’’ e ‘’eles’’, tradução: Bruno Alexander, 1ª edição, Porto Alegre, LP&M, 2018, p. 41.
[4] DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? Tradução: Marina Vargas, 2. ed. Rio de Janeiro, Difel, 2018, p. 16.
[5] CHAVES Jr, Airto. Além das grades, a paralaxe da violência nas prisões brasileiras. 1. ed. Florianópolis, Tirant lo blach, 2018, p. 73.
[6] CASARA, Rubens. Estado pós democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. 1. ed. Rio de Janeiro. Civilização brasileira, 2017, p. 23.
[11] ZAFFARONI, Eugênio Raul. O inimigo no direito penal, Tradução Sérgio Laramão. 2. ed. Rio de Janeiro, Revan, 2007, p. 18.
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