por Mauro Gaglietti

Sig, O Rato, costuma olhar as crianças com atenção, respeito e carinho. Em tempos nos quais muitas crianças se divertem com aparelhos eletrônicos, ele ficou relembrando de suas próprias vivências com brinquedos: a bola, o Forte Apache feito de ossos e galhos, o carrinho de rolemã, a bicicleta, a primeira conga azul marinho, o primeiro kichute. No caso, as crianças em todos os tempos precisam vivenciar o brincar das mais variadas formas: pintar o rosto, pegar o barro com as mãos, tomar chuva, escorregar, chutar bola, escalar obstáculos, pular, manusear brinquedos, imitar adultos, manipular areia, modelar, etc. A alegria, assim como a concentração, o esforço a seriedade, e até a tensão moderada podem revelar-se na expressão fisionômica da criança enquanto brinca. Desse modo, cada detalhe do comportamento, tais como mudanças na postura ou na expressão facial, podem ser o login e a senha para se acessar estados de sua alma. Sig, O Rato, de tanto observar as crianças humanas, de fora, percebeu que a criança ao brincar reproduz o mundo gigante e estranho dos adultos e o brinquedo se define como um objeto de alteridade à medida que o ato de brincar se amplia propiciando que a criança aprenda com o outro diferente dela. Cercadas por um mundo de gigantes, as crianças inventam, bolam, criam para si mesmas o seu pequeno mundo. Algo próximo à lâmpada de Aladim, o brinquedo reveste-se nas mãos da criança em uma diversidade mutante, incerta, incontável, imprevista e, por tudo isso, torna-se mágico, maravilhoso o ato de brincar. Nesses termos, a criança se agiganta ao reproduzir em seu micro mundo o macrocosmo ambiental ao repetir a vida material que vê normalizar-se em sua própria família. Na prática imagética, o brinquedo é uma ponte que se estende entre mundos distintos que precisam ser domesticados para que diminua o campo de infinitas incertezas, uma espaço povoado pelo enigmático estranhamento, propulsor de medo e temor ao desconhecido. Desse modo, a criança necessita muito que os adultos repitam história, jogos e brincadeiras. É por meio desse mecanismo de repetição que a criança reproduz – ao seu modo – as dificuldades e o encanto de estar viva, acompanhada e segura, lembrando do cheiro e do calor no útero da sua mãe. Portanto, é por intermédio dessa modalidade da repetição que a criança se apropria do brinquedo, sente que é a dona do pedaço.
Aqui, Sig, O Rato, chama a atenção, por um lado, acerca daquela criança que brinca, é a criança que teve uma boa elaboração do espaço potencial com sua mãe e que se teve uma razoável impressão com o primeiro outro, diferente de sua mãe: o pai (talvez em alguns casos quando o mesmo assume e está próximo). Essa, possivelmente, seja a criança que aprendeu a estar sozinha, é a criança que elaborou sua capacidade de criatividade, ou seja, é uma criança saudável. Por outro lado, precisamos prestar mais atenção nas situações nas quais presenciamos a brincadeira compulsiva, a brincadeira repetida, ou a busca exagerada de prazer na brincadeira, evidencia a ameaça de um excesso de angústia, indicando também um possível sofrimento psíquico. Podemos dizer que certas atividades aparentemente sem importância podem ter um significado especial para os que as vivenciam? É verdadeiramente complexo pensar que o desenho e o brinquedo surgem antes mesmo da palavra e a possibilidade de atribuir nome às coisas, surge antes da elaboração dos conflitos infantis. Tais conflitos têm origem, em certa medida, das dúvidas, ansiedades e fantasias que surgem nos primeiros anos de vida da criança. Desse modo, preste muita atenção aos significados que, muitas vezes, são apresentados de modo diferente do nosso habitual entendimento, revelam nossa relativa limitação em compreender as realizações do outro. Portanto, é preciso garantir algo da magia, do deixar-se envolver no processo de conhecer, porém é preciso assumir o compromisso de elevar o conhecimento, produzido a partir dessa interação, ao nível de conceito, sempre com consciência e abertura para novos possíveis. Assim, a responsabilidade social é de cada um e de todos nós. Por isso, essas atividades que continuam, apesar do novo, nos lançam o desafio de pesquisar, perseguir, de encontrar e de cultivar estas práticas e pensamentos em nós mesmos, no mundo que nos cerca, com as pessoas que conosco convivem, ainda que venha a constituir um caminho dissidente, que se recusa a aderir à tirania do novo pelo novo. Neste sentido, Sig, O Rato, convida você humano à não-adesão rápida sem reflexão. Não-adesão a qualquer forma de ver, conhecer, analisar e interpretar os “fenômenos” e, neste caso, separamos nesse texto a temática do jogo e do brinquedo justamente por estarmos na semana da criança.
Nesses termos, dentro da perspectiva da brincadeira, percebe-se que o brinquedo pode ser o que a criança desejar que ele seja: um castelo, um oceano povoado por criaturas estranhas, um acampamento da família à beira de um rio, uma caverna de monstros, uma gruta encantada. É nesse momento, que podemos notar que o brinquedo pode proporcionar o acolhimento, o alimento espiritual e a alegria para os nossos pequenos. Diante disso, nota-se que momentos de felicidade podem brotar empilhando peças para se montar e desmontar ou até mesmo jogando tampinhas de garrafa em uma bacia com água colorida. Construído de plástico, madeira, pedras, ossos, papel, cola, barro, o brinquedo é matéria prima por excelência para a edificação de pontes, para se alcançar o mundo que se encontra fora de casa, um espaço lançado ao totalmente desconhecido, estranhamente distante do alcance do compreensível: os amigos, os parentes, a escola, a igreja, a biblioteca, a praça e a livraria. No brincar a criança geralmente deixa-se impregnar, penetrar pela atividade, pelo objeto. Nesse caso, Sig, O Rato, ficou com mais vontade de reler Benjamin, Jung e Adorno, entre outros tantos gênios do pensamento para tentar captar – de forma mais abrangente – a importância do brincar para o desenvolvimento dos sujeitos. Para a criança, na verdade, o brinquedo e o brincar tornam-se uma coisa só. Parece que a criança fornece sopro ao objeto fornecendo-lhe vida inteligente e criativa ao deixar-se envolver por meio da escuta ativa da voz do objeto na medida em que não existe nem objeto e nem sujeito puros, há, portanto, somente uma relação entre ambos, esse é o endereço desse segredo.
Lembram do nosso primeiro telefone quando criança? O barbante amarrado em duas latinhas continua se tornando um telefone, as latas de alumínio sobrepostas se transformando em jogo de boliche, pneus, plásticos, madeiras, e muitos outros objetos, aparentemente sem importância, continuam atraindo as crianças, as quais os transformam em prazerosos brinquedos. Assim, as crianças sentem-se irresistivelmente atraídas pelas sobras e pelos destroços que surgem da construção, do trabalho no jardim ou em casa, da atividade do pedreiro, eletricista ou do marceneiro. Nesses restos que sobram elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas volta exatamente para elas, e só para elas deformado e/ou formado. Nessas sobras, restos e migalhas, as crianças estão menos empenhadas em imitar as obras dos adultos do que em estabelecer entre os mais diferentes materiais – por intermédio daquilo que criam em suas brincadeiras – uma nova e incoerente relação. Sig, O Rato, nem dorme só de pensar em tudo o que ocorre com as nossas crianças (viram a quantidade de gente que votou para o Conselho Tutelar no domingo? Ai, ai…). Visto tudo o que foi exposto, Sig, O Rato, indaga: desde quando brincamos? Creio que o nosso primeiro brinquedo tenha sido o cordão umbilical no ventre da nossa mãe na primeira morada que tivemos: o útero. Para quem já comprou (ou irá comprar nos próximos minutos) brinquedos para as crianças, lembre sempre que aquilo que elas mais desejam é nos ter como seres brincantes nas brincadeiras sugeridas por elas próprias. Somos parte integrante do brinquedo que estamos pensando em presenteá-las (essa informação não consta do manual, é o nosso segredinho de hoje).
Certa vez, no Rio de Janeiro, em uma mesa de debates (há oito anos aproximadamente) tive um momento ímpar: dialogar com o psicanalista Rubem Alves, grande referência de adulto que nunca deixou de ser criança. Ele lembrou do que disse Nietzsche: “o Diabo nos faz graves, solenes, pesados; faz-nos afundar. Deus, ao contrário, dá leveza e nos faz flutuar”. Talvez possamos extrair de tal perspectiva, então, que o balanço é um brinquedo divino, por aquilo que ele faz com a gente. Balançar em um balanço é um forma de rezar, de estar em comunhão com as divindades. Os brinquedos podem propiciar muito prazer sobretudo quando os mesmos vêm acompanhados de desafios que incitam a imaginação e o pensamento. Sig, O Rato, quer ver como isso tudo acontece! Você sabe que, sem ter ninguém que o empurre, você pode fazer o balanço balançar alto, até fazer o pé tocar na folha do galho, pela simples alternância da posição das pernas, prá frente e prá trás. Sig, O Rato, pergunta: por que é que essa alternância na posição das pernas, sem encostar em nada, produz o movimento do balanço? E o ioiô? Sig, O Rato, olha para àquelas cenas de guerra, de atos terroristas, para aquelas duas mil crianças venezuelanas sozinhas atravessando a fronteira com o Brasil, inclusive nesses momentos difíceis, as crianças sempre encontram momentos para brincar entre destroços e estilhaços. É o riso diante da cara amarrada e sisuda dos podres poderes, sejam de direita ou de esquerda ou sem sinal!! Sig, O Rato, chega à seguinte conclusão: as crianças de qualquer parte do mundo podem se entender porque os brinquedos, como a música, são uma linguagem universal que não necessita de palavras. Os jogadores de xadrez, por sua vez, jogam xadrez mesmo falando línguas diferentes. Crianças de países distintos podem, juntas, armar quebra-cabeças, jogar pião, empinar pipas (pandorgas/papagaios), pular corda, construir um carrinho de rolemã. Sig, O Rato, é, no fundo, no fundo, uma eterna criança humana, por ter a necessidade de fazer excessivamente perguntas: o que há nas nuvens? Por que as unhas crescem? Por que o fogo queima? O que é que faz com que o ioiô vá para baixo e para cima? Por que a água quente deixa a cenoura mole e o ovo duro? Por que a chuva cai em gotas e não toda ao mesmo tempo? Por que o céu é azul? E o que dizer do lego e dos quebra-cabeças? Quantas funções intelectuais altamente abstratas entram em jogo enquanto se monta um quebra-cabeças! E as bolhas de sabão! Explique, por favor: por que é que elas são tão redondinhas? Quem joga sinuca aprende, intuitivamente, as leis da composição de forças. E os piões: por que é que se equilibram sobre um prego? Todo brinquedo bom é um criador de desafios. A melhor marca de um brinquedo leva o nome de desafio. Brinquedo bom tem de fazer pensar, sentir e gerar novas formas de expressão para as crianças. Assim, parabenizo, em primeiro lugar, as pessoas adultas que não deixaram apagar a criança que habita em suas peles. Em segundo lugar, o nosso mais profundo respeito a todos(as) que cuidam de crianças como uma manifestação sensível de amor. Por fim, quando estiver brincado com uma criança lembre-se de sentar em seu carrinho de rolimã, abrir os braços como se estivesse voando e deixar que ela lhe conduza. Sig, O Rato, deseja a você, nesse “Dia das Crianças”, que redescubra a delícia e a alegria que é ser criança. Porque, como disse Fernando Pessoa, “Grande é a poesia, a bondade e as danças… Mas o melhor do mundo são as crianças”. Bom dia, boa semana e até breve!!
MAURO GAGLIETTI é professor universitário, mediador de conflitos e doutor em história pela PUC/RS
REFERÊNCIAS
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