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Você e seus ressentimentos

por Maíra Marchi Gomes

Nada neste mundo consome mais rapidamente um homem que a paixão do ressentimento.

Friedrich Nietzsche

Com a temática do ressentimento é deveras fácil nos identificar. Por outro lado, é-nos deveras custoso problematizar a respeito. Em parte, talvez, pela própria natureza da posição inerente ao ressentimento: uma posição na qual o sujeito não se arrepende, mas acusa. O ressentido é aquele que se queixa, ainda que via de regra não especifique sua reivindicação; até porque o que está em questão não é propriamente a busca pela restauração do que supostamente foi perdido, mas a busca de que o outro reconheça que lhe causou mal. Melhor dizendo, anseia-se por vingança (Kehl, 2004). “Etimologicamente, o ressentimento faz referência aos afetos de rancor, ódio, mágoa e de culpabilidade dirigida ao outro. Trata-se, portanto, da ação do sujeito de endereçar ao outro sentimentos de hostilidade, bem como lhe atribuir a autoria dos males que o afligem” (Carneiro, Mapurunga, Silva & Costa, 2006, p.453). Assim sendo, é-nos árduo reconhecer que somos ressentidos, porque isto implicaria reconhecer que há um campo no qual não reconhecemos nossas responsabilidades.

Ainda que a configuração afetiva típica do ressentimento possa se apresentar em várias configurações psicopatológicas, um comparativo com a melancolia é significativamente ilustrativo e também nos auxilia a caminhar pela discussão iniciada acima. Deste comparativo, destacarei apenas aquilo que também foi apontado por Kehl (2004): que no ressentimento o empobrecimento do amor próprio dá lugar a um pedido de reconhecimento. E, mais além, a uma expectativa de que não se precise conquistar o reconhecimento, posto que ele supostamente seria evidente por si mesmo. Mais especificamente, evidente a depender do olhar do outro.

É uma esperança, portanto, de que não se precise vender-se. Como se nosso valor pudesse ser tamanho ao ponto de inclusive nos tornar dispensáveis. Ora, não somos produtos/objetos. Assim, seremos ou não interessantes a partir do que façamos ou não de nós. Nosso valor não está apenas no que o outro enxerga, cheira, saboreia, toca ou escuta de nós; está, a começar, no valor que cobramos daqueles que se convidam a nos acessar. E, ainda, na escolha de quem devemos convidar a nos acessar. Considerando-nos valorosos, não é o preço pago pelo outro que nos comprará. É o pagamento do valor (seja ele qual for) que o outro descobre que temos.

Para nos acompanhar neste debate, pode-se remeter a outros autores que dialogam o ressentimento e a melancolia. Segundo Carneiro, Mapurunga, Silva e Costa (2006), o ressentido se ausenta de pagar a dívida que contraímos ao nos inserir na cultura. Uma dívida, sim, não passível de quitação, mas que o ressentido atribui a outrem numa tentativa de manter-se imaculado. O melancólico, por sua vez, auto recrimina-se para suportar a impossibilidade de quitar sua dívida, podendo chegar ao ponto do suicídio. “Aqui [no ressentimento], o sujeito pode – como no caso do melancólico – se auto-recriminar, mas não de forma a desvalorizar seu próprio eu, mas, sim, pelo que pode ter deixado de fazer ou ter feito para que este outro lhe causasse esse sofrimento” (Carneiro, Mapurunga, Silva & Costa, 2006, p.464-465).

A dívida que contraímos pode ser resumida no fato de que tudo o que construirmos terá se fundado em algo anterior. Numa linguagem psicanalítica lacaniana, é a dívida perante o Outro. É este Outro que nos fornece o universo simbólico a partir do qual constituirá sua subjetividade. Pode-se pensar que, no caso do ressentido, há um lamento das (im)possibilidades ofertadas pelo Outro. Um lamento tamanho que não deixa lugar para que o sujeito indague-se sobre as (im)possibilidades de ser que criou a partir do que lhe foi disponibilizado. Quanto ao melancólico, lamenta-se justamente pela maneira com que (não)se apropriou do universo simbólico.

Perceba-se que há uma diferença em termos de autoria a qual o melancólico e o ressentido atribuem seu sofrimento. No caso do melancólico, parece haver uma preservação ética, posto que ele não abandona a autoria de sua vida.

O ressentimento traz afetos como rancor, desejo de vingança, raiva, maldade, ciúmes, inveja, malícia. Há um desejo de vingança que predomina, mas que não é posta em ato, pois, se isso acontecer, o sentimento de raiva é aplacado. O ofendido não pode responder à altura a ofensa recebida. Há uma espécie de envenenamento psicológico, em que há uma reorientação para o eu dos impulsos agressivos impedidos de ser descarregado, e isso é o que gera queixa e acusação (Carneiro, Mapurunga, Silva & Costa, 2006, p.462)

Pode-se pensar que esta abdicação de si feita pelo ressentido não só o impede de reconhecer sua responsabilidade perante o próprio sofrimento, por meio da projeção maciça na culpa no objeto, mas inclusive o impede de atuar estes afetos vingativos, odiosos, violentos em relação ao objeto. É o sujeito que, além de confundir justiça com vingança, anseia pela justiça feita pelas alheias mãos.

Outro diálogo também interessante é aquele entre ressentimento e má vontade. Fernandes (2007) nos diz, a este respeito, que se deveria identificar e trabalhar ambas as posições subjetivas ao invés das habituais medicalizações de suas manifestações como depressão e pânico. Para o autor, o único beneficiário desta resposta química ao ressentimento e à má vontade é a indústria farmacêutica, haja vista que os sujeitos em questão não amadurecem mentalmente.

Outro destaque fundamental feito por Fernandes (2007) é da importância de pensar o ressentimento e a má vontade a partir dos espaços intrasubjetivo, intersubjetivo e transubjetivo do vínculo. Assim, não individualizando a análise de nenhuma destas duas vivências subjetivas. Neste momento, sinalizo o espaço transubjetivo, enquanto as leis, os mitos, a cultura, as instituições. Conforme o autor, neste espaço, há situações em que imperam os ressentimentos e mal-entendidos, nas quais exclui-se o outro e se pretende ter razão. “…os países passam por fases assim, seja nas ditaduras, seja em regimes democráticos em que os políticos passam a ser vistos como totalmente corruptos e a população perde a esperança de viver bem e de ter um futuro com desenvolvimento” (Fernandes, 2007, p.47). Esta noção nos convida a pensar nos elementos culturais, institucionais, políticos, legais, que possam contribuir para nosso ressentimento.

Por fim, destaca-se que, para o mesmo autor, a alternativa ao ressentimento é o amor, o que implicaria conviver com frustração e boa vontade. Ora, o amor também é a saída para a melancolia (Freud, 1917/1996). E, igualmente na melancolia e no ressentimento, o amor é o que permite viver menos frustrado. O que talvez seja a diferença é que o melancólico pode ter boa vontade; já o ressentido, não. Daí é que conviver com o ressentido pode ser mais danoso a terceiros que a convivência com o melancólico.

Um destes danos são as ações de dano moral. A ideia de dano moral parece equivocada em si mesma, porque pressupõe uma moral universal e, portanto, passível de ser previamente conceituada. Neste raciocínio, por exemplo, alguém xingar uma mulher de puta e um homem de brocha ou corno sempre será ofensivo. De fato, tais expressões só incomodariam homens e mulheres alienados a modelos hegemônicos de masculinidade e feminilidade. A única possibilidade de operar este tipo de pleito no âmbito jurídico seria a nomeação peritos oficiais padres, pastores ou quaisquer outros especialistas em moral. Mas não, por exemplo, psicólogos. Psicólogos podem avaliar dano psicológico e construir, junto ao sujeito singular, perspectivas de reparação de sua dor.

Para além de quem poderia atestar danos morais, a tradução da demanda de restituição moral  em demanda monetária é, no mínimo, perversa. Conforme nos explica Kehl (2004), há uma função do ressentimento para o homem contemporâneo. Entre as configurações imaginárias próprias do individualismo e as exigências da cultura, o ressentimento parece ser um interessante mecanismo de defesa do eu a serviço do narcisismo. Eu destacaria que o ressentimento é quase que uma resposta certa numa cultura que elogia, mais que o individualismo e a competitividade, o consumo. E, ainda, numa cultura que elogia a vingança e a terceirização dos acalentos das próprias dores.

Peguemo-nos no colo. Pode ser um bom lugar. Não é ao acaso que o desenvolvimento humano passa pela capacidade da criança de sanar seus próprios anseios. Em boas condições, gradativamente, conforme explica Winnicott (1983), os cuidadores (que exercem a função de realidade, de exterioridade) deixam de se apresentar como detentores daquilo que aplacaria nossos desejos. Começamos pela alucinação do ato de mamar quando nos falta alguém que nos dê alimento. Aos poucos, somos convidados a fazer algo com nossas frustrações. É a base da criatividade. É o início da mente. É o início da autonomia. É o rascunho da resposta ética frente ao mundo.

MAÍRA MARCHI GOMES é é psicóloga na Polícia Civil de Santa Catarina e doutora em Psicologia pela UFSC

REFERÊNCIAS

Carneiro, Henrique Figueiredo, Mapurunga, Juçara Rocha Soares, Silva, Janaína Sousa Bezerra da, & Costa, Raul Max Lucas da. (2006). Melancolia, ressentimento e laço social: repercussões na clínica psicanalítica. Revista Mal Estar e Subjetividade, 6(2), 450-471. Recuperado em 08 de outubro de 2019, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1518-61482006000200009&lng=pt&tlng=pt.

Fernandes, Waldemar José. (2007). A má vontade e as possibilidades de crescimento mental a partir do fortalecimento dos vínculos amorosos. Revista da SPAGESP, 8(2), 00. Recuperado em 08 de outubro de 2019, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-29702007000200006&lng=pt&tlng=pt.

Freud, S. (1917/1996). Luto e melancolia. In Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.

Kehl, Maria Rita (2004). Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Winnicott, Donald. W. (1983). O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre: Artes Médicas.

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