por Cláudia de Marchi

Meu irmão, ninguém engana Deus
Antes de tudo a questão é que a gente se acostuma.
Até com o que não deve o ser humano se acostuma.
Por exemplo: eu me acostumei a ser “ofendida” em comentários na internet, em postagens, em matérias a meu respeito.
Após 2016 isso é um corolário básico pra mim: meu nome “saiu” na mídia ou em qualquer outro lugar? Logo surgem enxovalhos, críticas sórdidas e etc..
Simples, comum, previsível!
Que solução há que não acostumar-se com isso?
Posso mudar tal fato?
Não, não posso.
Talvez possa evitar, mas não sei se quero.
Prefiro ser a pessoa achincalhada a fazer parte do abjeto grupo de covardes que dormem tranquilos no berço do anonimato, prefiro ser aquela cuja aparência e conduta mulheres e homens desocupados insistem em menosprezar a ser uma dessas pessoas insossas e previsíveis que não incomodam e nem tocam o âmago de ninguém neste mundo repleto de idiotas. Prefiro ser aquela que recebe as pedras a ser uma dessas infelizes criaturas que se incomodam com tudo que contraria o seu ideal tosco de “normalidade”.
A gente pode e deve se acostumar com muita coisa no mundo, porque se a gente não o fizer, vamos pirar e morrer: de estresse ou de fome.
Sim, de fome.
O capitalismo nos obriga a muitas coisas que não queremos, ele é o nosso cafetão e a profissão, seja ela qual for, a nossa prostituição: alguns humanos gozam com ela, outros se rendem a ela, porque precisam.
Literalmente, tudo ocorre como no ramo das prostitutas onde algumas escolhem fazer sexo remunerado por vontade e desejo, enquanto outras se dizem “sem opções” e se prostituem.
Para comer, morar e viver o ser humano se sujeita e se acostuma com muita coisa.
Logo, a questão agora muda: com o que, afinal, não deveria a criatura racional e senciente se acostumar?
Ora, com tudo que castra a sua dignidade, com tudo que avilta o seu autorrespeito.
Não, não, não só a “sua” dignidade de classe média que quer ir pra Disney levar os filhos!
Há de se ter empatia, irmão!
Não podemos nos acostumar com a fome.
Não podemos nos acostumar com a miséria.
Não podemos nos acostumar com a desigualdade gritante, com a criança que dorme na rua e termina se viciando para sobreviver com menos dor.
Não podemos nos acostumar com a injustiça que mata.
Mata negros, mata pobres, mata favelados e dá salvo conduto para pobres armados e fardados matarem em nome da elite com a qual eles nunca irão confraternizar.
Eles matam índios.
Eles matam florestas e o ecossistema e seguem ilesos!
Não podemos nos acostumar com a frustração, com a falta de paixão, com a falta de tesão.
Não podemos nos acostumar com o desânimo, com a depressão dolorosa e com a disritmia ansiosa.
Não podemos nos acostumar com o engano, com as ilusões.
Podemos nos iludir, assim como podemos tropeçar. Podemos ser induzidos a erro, mas não podemos criar apego pela pedra ou pela mentira doce e conveniente.
Não podemos nos acostumar com mentiras.
Não podemos nos acostumar com ninguém que mente!
A gente não pode ter medo da dor do rompimento e até da verdade, mas é preciso amadurecer, criatura!
Você não pode ficar aí, cabisbaixa, pensando em como seria “se” isso ou aquilo ocorresse. Você tem que fazer algo enquanto pode e, claro, quando pode, afinal a sorte não protege os temerários.
Rompa com o amigo que abusa da sua boa vontade.
Rompa com o parente que não respeita as suas opções.
Rompa com o patrão que lhe humilha, mas nunca esqueça que o capitalismo grita e que você precisa comer!
Há de se ter cuidado, parceiro! Muito cuidado na hora de fazer a sua revolução, o que não significa que você deva desistir da mudança!
Rompa esse seu casamento onde o amor virou amizade e você fica aí, acomodado, esperando a velhice pra dizer que durou “pra sempre” quando, você mesmo sabe que acabou faz tempo.
Você tem sangue quente nas veias, garota!
Seu corpo tem vida.
Acostumar-se com o tédio de uma relação falida?
Pra quê?
Por quê?
Falta de amor próprio?
Medo?
Você não deve se acostumar nem com você mesma se você não se acha um arraso!
Evolua, estude, leia, se olhe no espelho, descubra seu poder, sua força e sua beleza. Se ame e nunca se contente com nada além do que lhe enternece, do que faz sorrir e faz seu corpo tremer!
Você pode e deve se acostumar com inconvenientes que não dependem do ser arbítrio.
Você pode e deve se acostumar com o fato de que existem muitos idiotas no universo e que você não pode fazer nada quanto a isso sob pena se se transformar numa assassina em série ou terrorista.
Você pode e deve se acostumar com o fato de que a vida não é justa, linear, ordenada e perfeita.
Todavia, você não pode se acostumar a ser um indivíduo morto-vivo.
Um zumbi resignado à infelicidade.
Um zumbi entediado repetindo velhas fórmulas.
Um zumbi que tira fotos bonitas, publica no Instagram, ganha likes, algum dinheiro e segue a rotina esperando a derradeira morte.
Você está vivo e como tal deve viver!
Deve amar!
Deve confiar mais!
Deve errar!
Deve sentir adrenalina, deve sentir prazer em estar vivo e na sua própria pele!
Deve e pode, inclusive, se arrepender de algumas atitudes e comprometer-se a não repeti-las.
Você está vivo e deve ter um baita orgulho do reflexo que você vê no espelho e de tudo que lhe ronda a mente quando ninguém está por perto e você fica absorto em pensamentos.
Felicidade é quando o orgulho de ser quem se é se junta ao prazer de estar no seu corpo vivendo essa vida: a única que você conhece!
Amar o próprio corpo é importante, sim!
Mas amar as curvas do seu cérebro e cada livrinho que você leu para hipertrofia-lo, bem como cada experiência, resvalos, tombos, erros e reconstrução que viveu é mais, muito mais importante!
Se ame por inteiro.
Seja amor.
Dê amor!
Você é um universo em si.
Você é nada e tudo ao mesmo tempo.
Você é um ninguém e um Deus em si.
Faça por merecer estar vivo e permanecer aqui, porque, superar os pesares da existência, sobreviver a fases ruins, vivenciar, encarar e lutar contra injustiças com as suas simplórias e humildes armas, encontrar um pouco de paz em meio ao caos e, apesar de tudo, estar vivo por vontade própria é algo que merece respeito!
A vida não é fácil, não!
Então, ao menos uma vez por dia, sobretudo ao fim dele, reconheça que você é forte e que você merece se parabenizar por não ter entregado os pontos!
Um dia de cada vez e a vida segue e pode seguir lindamente se você souber se acostumar com as coisas certas, manter uma dose de indignação, tremer frente à injustiças e se irresignar contra tudo o que não faz o seu coração e corpo vibrarem, porque quanto a isso, você tem arbítrio.
CLÁUDIA DE MARCHI é advogada e acompanhante de luxo
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