ARTIGOS

O que (não) aprendemos com o massacre do Carandiru

por Paula Yurie Abiko

O caso Carandiru é muito emblemático e foi amplamente divulgado pela mídia, demonstrando os problemas decorrentes da arbitrariedade e da violência policial no Brasil. Estima-se que ocorreram 255 mortes por execução naquele ano[1]. Em setembro de 2016, no julgamento interposto pela defesa dos policiais, a 4ª Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo anulou[2] as condenações, fundamentando que as mesmas foram manifestamente contrária à prova dos autos[3].

O Tribunal acatou a tese de legítima defesa na ação dos policiais, mesmo com cinco veredictos dos jurados alegando que havia ocorrido o massacre.

Conforme informações divulgadas no site da anistia internacional, os exames de balística demonstraram que 70% dos tiros foram dirigidos à cabeça e ao tórax dos presos, reforçando o entendimento de que ocorreu uma execução[4].

Esse caso é um dos maiores exemplos da legitimação da violência policial. Infelizmente, a mentalidade de muitos governantes parece ignorar tal realidade. A declaração dada pelo governador eleito no Rio de Janeiro Wilson Witzel (PSC) é ilustrativa: “a polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e… fogo! Para não ter erro”[5].

Boujikian ressalta que “a decisão do TJSP evidencia mais uma vez a gritante seletividade do poder Judiciário. De um lado, condena sem provas todos os dias pessoas como Rafael Braga e Barbara Querino. Do outro, ignora as evidências da violência praticadas pelo Estado, consagrando a letalidade policial contra aqueles que deveriam estar sob sua tutela e proteção. O diagnóstico de Caetano Veloso se mantém atual, e assim segue “o silêncio sorridente de São Paulo diante da chacina”[6].

Após 28 anos do massacre do Carandiru, nenhuma autoridade foi responsabilizada, uma decisão que contrariou a conclusão dos laudos periciais realizados na época.

‘’Os laudos serviram de base para o parecer médico legal realizado pelo Departamento de Medicina Legal da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, requisitado por Paulo Sérgio Pinheiro. Esse documento foi juntado ao processo posteriormente e traz dados importantes para a aferição da violência da ação policial. Ao analisar os laudos do IML, o parecer conclui que grande parte dos presos mortos foi atingida por mais de cinco projéteis e que quase todas as vítimas que receberam tiros morreram’’.[7]

O entendimento sobre o caso no tocante ao julgamento realizado pelo Tribunal do Júri, é de que a anulação realizada pelo Tribunal foi contra a decisão dos jurados. “…a resposta dos jurados aos quesitos seguintes implicou o reconhecimento de excesso doloso de Ubiratan na operação. Ao serem perguntados se “o réu excedeu dolosamente os limites do estrito cumprimento de dever legal”, os jurados responderam que sim. Ou seja, os jurados entenderam que, embora tivesse agido em estrito cumprimento de dever legal, Ubiratan agiu, voluntariamente, de forma excessiva’’.[8]:

Os depoimentos prestados pelos presos presentes e policiais foram conflitantes. Os depoimentos prestados pelos policiais estão em conflito com o que foi apresentado nos laudos do IML, no qual foram demonstrados o excesso de tiros em direção aos presos naquelas circunstâncias.

Observa-se que a ação durou menos de 30 minutos, com a participação de aproximadamente 320 policiais, aduzindo que muitos apenados foram mortos sem motivação alguma. No júri realizado, os policiais foram condenados a penas que variaram de 48 a 624 anos de reclusão, em 5 júris distintos.[9]

A defesa recorreu à época, e no ano de 2016 o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo anulou a ação que condenava os policiais, contrariando a decisão proferida pelos jurados no tribunal do júri, e desrespeitando a soberania dos vereditos. Até hoje não fora realizado novo julgamento pelo conselho de sentença.

Em abril de 2000, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA elaborou um relatório final sobre o caso Carandiru, afirmando que o Brasil é responsável pela falta de investigação, processamento e punição efetiva aos responsáveis no caso Carandiru[10].

Esse caso é emblemático e representa uma preocupação com os recorrentes casos no país de violência e ilegalidades policiais, sendo fundamental que os representantes e sociedade civil reconheçam a importância de averiguação desses abusos e arbitrariedades.

A seletividade no sistema prisional e a estigmatização social

Outro aspecto preocupante na análise dos dados sobre o sistema prisional, é a seletividade penal. Observado os dados do INFOPEN, resta demonstrado que o encarceramento ocorre para os indivíduos de baixo poder aquisitivo, baixa escolaridade (mais de 60% sem o ensino fundamental concluso), sendo a maioria composta por jovens entre 18 a 29 anos de idade[11].

Realizando uma análise com recorte racial, observa-se que mais de 50% do sistema prisional é composto por jovens negros, com pequenas diferenças quantitativas em alguns Estados do país.

Infelizmente, o racismo estrutural ainda é algo muito presente na sociedade atual, e não restam casos para exemplificar os tratamentos diferenciados e desumanos dados aos jovens negros na periferia primordialmente.

Essa diferença pode ser inclusive observada na divulgação pela mídia, na qual indivíduos brancos que cometeram delitos, como exemplo no tráfico de drogas, são declarados suspeitos, em contrapartida a divulgação da mídia destinada aos negros, são retratados cotidianamente como traficantes, exemplo do caso que gerou repercussão nacional de Rafael Braga, jovem, negro e da periferia, condenado por tráfico de drogas por possuir 0,5 gramas de maconha, e o único condenado pela lei antiterrorismo na época das manifestações de 2013, por carregar um pinho sol e um alvejante[12].

Ainda, o mesmo fora condenado apenas com base no testemunho dos policiais presentes, o que é extremamente delicado em um país com altos índices de abusos e arbitrariedades policiais como o Brasil. Segundo relatório da ONU, realizado pelo Relator Juan E. Méndez, os presos brasileiros relatam cotidianamente casos de tortura e maus tratos, tanto na prisão como nos interrogatórios policiais[13].

A seletividade penal impacta diretamente na tentativa de ressocialização desses indivíduos no sistema prisional, tentativa pois os dados já demonstraram que a busca efetiva pela reinserção no mercado de trabalho e na sociedade após as práticas delitivas é demasiado difícil para os egressos do sistema prisional, não só pelo preconceito, mas primordialmente pela estigmatização dos egressos do sistema prisional.

Essas questões ensejam a discussão sobre a ineficácia e falência do sistema prisional, que dificilmente cumpre sua função social de ressocialização aos egressos do sistema penal.

Da mesma forma que a prisão é considerada por muitos como algo natural e inevitável, muitos se negam a refletir de forma crítica sobre os motivos e circunstâncias que se escondem por trás das prisões, as reais razões do encarceramento de milhares de pessoas, sendo em sua demasia pessoas com baixo poder aquisitivo e baixa escolaridade. 

Ressalta Angela Davis, portanto, que: ‘’a prisão funciona ideologicamente como um local abstrato no qual os indesejáveis são depositados, livrando-nos da responsabilidade de pensar sobre as verdadeiras questões que afligem essas comunidades das quais os prisioneiros são oriundos em números tão desproporcionais’’[14].

Completando este ano 28 anos do Massacre do Carandiru, e observado o momento de pandemia global do COVID 19, fica a reflexão para que mais omissões estatais e arbitrariedades não sejam legitimadas pelo estado, de modo a garantir os direitos individuais inerentes à todos os cidadãos.

PAULA YURIE ABIKO é pós graduanda em direito penal e processual penal – ABDCONST. Pós graduanda em direito digital (CERS). Graduada em direito – Centro Universitário Franciscano do Paraná (FAE). Membro do Grupo de Pesquisa: Modernas Tendências do Sistema Criminal. Membro do grupo de pesquisas: Trial By Jury e Literatura Shakesperiana. Membro do GEA – grupo de estudos avançados – teoria do delito, (IBCCRIM). Membro do Neurolaw (grupo de pesquisas de Direito Penal e Neurociências – Cnpq). Integrante da comissão de criminologia crítica do canal ciências criminais. Integrante da comissão de Direito & literatura do Canal ciências criminais.

REFERÊNCIAS:

BAYER, Diego Augusto; JANSEN, Bruno Henrique, O MASSACRE DO CARANDIRU: DE UM PRESÍDIO MODELO PARA UM DOS MAIORES MASSACRES NO SISTEMA PRISIONAL, Julgamentos históricos: casos que marcaram época no Brasil e no mundo, Organização:Diego Augusto Bayer, 2ª edição, São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019.

BOUJIKIAN, Mariana. <http://ittc.org.br/anulacao-julgamento-carandiru/&gt;, acesso em 07 de setembro de 2020.

DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? Tradução: Marina Vargas, 2. ed. Rio de Janeiro, Difel, 2018.

FERREIRA, Luisa Moraes Abreu; MACHADO, Marta Rodriguez; MACHADO, Maíra Rocha. < http://www.scielo.br/pdf/nec/n94/n94a01.pdf&gt;, acesso em 07 de setembro de 2020., p. 24.

<https://nacoesunidas.org/relator-da-onu-condena-pratica-de-tortura-e-racismo-institucional-nos-presidios-brasileiros/&gt;, acesso em 07 de setembro de 2020.

<http://www.justificando.com/2018/06/27/rafael-braga-5-anos-de-injustica/&gt;, acesso em 07 de setembro de 2020.


[1] <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/01/opinion/1538418889_678885.html&gt;, acesso em 07 de setembro de 2020.

[2] NOVAES, Marina. <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/09/27/politica/1475004354_366390.html&gt;, acesso em 07 de setembro de 2020., ‘’ O Carandiru era o exato retrato da superlotação das cadeias brasileiras (que, aliás, ainda persiste): tinha capacidade para 3.300 pessoas, mas havia 7.257 presos no local naquele dia, sendo 2.070 somente no pavilhão 9 para onde eram levados os detentos recém-chegados (em sua maioria, réus primários). Não à toa, a maioria das vítimas era jovem. Dos 111 mortos, 89 ainda aguardavam julgamento pelos crimes dos quais eles eram acusados’’.

[3] <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/09/27/politica/1475004354_366390.html&gt;, acesso em 07 de setembro de 2020.

[4] <https://anistia.org.br/noticias/massacre-carandiru-25-anos-depois/&gt;, acesso em 29 de maio de 2019.

[5] BOUJIKIAN, Mariana. <http://ittc.org.br/anulacao-julgamento-carandiru/&gt;, acesso em 07 de setembro de 2020.

[6] BOUJIKIAN, Mariana. <http://ittc.org.br/anulacao-julgamento-carandiru/&gt;, acesso em 07 de setembro de 2020.

[7] FERREIRA, Luisa Moraes Abreu; MACHADO, Marta Rodriguez; MACHADO, Maíra Rocha. < http://www.scielo.br/pdf/nec/n94/n94a01.pdf&gt;, acesso em 07 de setembro de 2020., p.6.

[8] FERREIRA, Luisa Moraes Abreu; MACHADO, Marta Rodriguez; MACHADO, Maíra Rocha. < http://www.scielo.br/pdf/nec/n94/n94a01.pdf>, 07 de setembro de 2020, p. 16.

[9] BAYER, Diego Augusto; JANSEN, Bruno Henrique, O MASSACRE DO CARANDIRU: DE UM PRESÍDIO MODELO PARA UM DOS MAIORES MASSACRES NO SISTEMA PRISIONAL, Julgamentos históricos : casos que marcaram época no Brasil e no mundo, Organização:Diego Augusto Bayer, 2ª edição, São Paulo : Tirant lo Blanch, 2019.

[10] FERREIRA, Luisa Moraes Abreu; MACHADO, Marta Rodriguez; MACHADO, Maíra Rocha. < http://www.scielo.br/pdf/nec/n94/n94a01.pdf&gt;, acesso em 07 de setembro de 2020., p. 24.

[11] <http://depen.gov.br/DEPEN/depen/espen/Aseletividadedosistemaprisionalbrasileiro.pdf&gt;, acesso em07 de setembro de 2020, p. 13.

[12] <http://www.justificando.com/2018/06/27/rafael-braga-5-anos-de-injustica/&gt;, acesso em 07 de setembro de 2020.

[13] <https://nacoesunidas.org/relator-da-onu-condena-pratica-de-tortura-e-racismo-institucional-nos-presidios-brasileiros/&gt;, acesso em 07 de setembro de 2020.

[14] DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? Tradução: Marina Vargas, 2. ed. Rio de Janeiro, Difel, 2018, p. 16.

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