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Lao Tsé, a melhor vacina anti coaching

por Juan Manuel Domínguez

Nos últimos anos assistimos ao crescimento exponencial  de uma cultura educacional pautada em critérios de conquistas econômicas, fama, padronização da imagem e em uma ideia de “boa autoestima” ou “auto estima positiva”, como valores absolutos e inerentes a qualquer tipo de consciência humana.

O mito de um triunfo indiscutível do capitalismo sobre o socialismo, com a queda do Muro de Berlim e o “Fim da História” pregado por Fukuyama, abriu as portas de um tipo de “apocalipse político” no qual os especialistas do empreendedorismo nos ajudariam a encontrar uma saída do inferno seguindo a cultura do esforço individual, a auto imposição de metas e um rígido pragmatismo de ação empresarial. De nada valeriam as discussões sociais sobre a miséria e o subdesenvolvimento de enormes proporções de territórios e civilizações que nunca sucumbiram a quaisquer tipo de influência socialista, ou comunista, embora sim tenham sido epicentros de experimentação liberal e neoliberal. Os visionários do neoliberalismo oferecem uma salvação individual. Na nave que nos levaria longe dessa catástrofe só tem espaço para um de nós, talvez tenha umas poltronas para nossos seres queridos mais próximos, mas nada mais do que isso.  

De todo nosso continente americano, somente a minúscula Cuba experimentou, e ainda experimenta, uma plena experiência socialista, embora ela não sirva de referência para fazer qualquer julgamento sobre esse tipo de modelo econômico, considerando que o país é refém de um boicote e bloqueio econômico desde as primeiras horas da revolução. A Venezuela também não pode ser uma referência concreta, considerando o bloqueio econômico e o saque das suas contas por parte dos Estados Unidos desde a assunção do atual presidente Maduro. Registre-se que na Venezuela não existe um governo socialista e sim uma guerra entre uma poderosa oligarquia e um governo popular que se aliou a uma massa militante e a um importante conglomerado de movimentos sociais. De resto, Chile, Argentina, Colômbia, Brasil, Perú, Equador e México continuam a ser vítimas do colonialismo neoliberal, tendo como consequência a devastação das suas economias e a criação de sociedades escandalosamente desiguais, com setores sociais afogados em uma miséria vergonhosa, que teria de ser argumento suficiente para pôr em discussão, de forma massiva e atingindo todas as esferas sociais, o modelo que tantos governos conservadores ainda insistem em instaurar em esses nossos territórios.

Nada poderia ser menos  propício para o sucesso do neoliberalismo que o  fenômeno do coaching, ou a psicologia do empreendedorismo. Essa ideia de auto superação que tem como alvo uma noção bem materialista de “sucesso”. O sucesso, para o coach (um perfeitamente camuflado agente do capitalismo neoliberal) se restringe a alcançar aquelas metas materiais como a  de uma padronização sofisticada da imagem, a conquista de uma posição econômica muito elevada (conquiste seu primeiro milhão!) e fama (nas redes sociais, na televisão, ou onde for). Esta ideia de sucesso, é preciso mencionar, tem também contaminado uma considerável massa de pessoas de esquerda, que, de alguma forma ou outra acreditam na conquista de objetivos, como ter uma formação acadêmica elevada, ser canonizado por círculos intelectuais, ou até ter uma influência considerável nas redes sociais. Fora de tudo o falso moralismo  que alguém poderia achar em essas recentes linhas escritas, é preciso entender que ante qualquer ideia de sucesso ( a que for) se contrapõe uma ideia de fracasso, e pregar ou supervalorizar a formação académica, ou a visibilidade nas redes, por exemplo, conleva à ideia de que não realizar esses objetivos torna automaticamente a pessoa em um ser com um enorme vazio a preencher, o qual, naturalmente, é passível de se tornar o disparador de uma latente frustração social ou individual. Todos carregamos um pouco de neoliberalismo no interior, porque o neoliberalismo é de fato de fabricação humana, é um projeção, indesejável para muitos, de algo que é inerente a todos nós.

Coaching e neoliberalismo são fenômenos indissociáveis. O neoliberalismo persiste, em grande medida, como consequência de uma aceitação generalizada do conceito de “sucesso individual”, e para o coaching, o único cenário possível é um mundo colonizado pelo pensamento neoliberal, como uma besta que nasce, se prolifera e somente consegue sobreviver em um ecossistema bem específico e determinado. O coaching é uma justaposição absoluta à ideia de trabalho coletivo, às lutas sociais por igualdade, às disputas coletivas por empoderamento. O coaching é um aliado insubornável do setor empresarial e do capital transnacional. É uma disciplina normatizante que empurra qualquer sujeito ante uma radical adaptação ao modelo capitalista. Se para Deleuze e Guattari, a psicologia e a psiquiatria corriam o risco de funcionar como ferramentas redutoras do sujeito, tornando-o um ente desprovisto de potência revolucionária, poderíamos dizer que o coaching não faz outra coisa do que criar um verdadeiro exército de defensores ideológicos da cultura e de toda prática neoliberal. 

Porém, existe uma vacina letal para o coaching, e ela se chama Lao Tsé. E existe particularmente um encontro entre Lao Tsé e Confúcio que esclarece ainda mais o caráter antagonista desse singular filósofo chinês.

Lao Tsé morava às margens do Rio Lo. Tinha a ideia de que uma verdadeira sabedoria não precisa ser manifestada. Um verdadeiro sábio não precisa usufruir, de forma nenhuma, do seu conhecimento e quem assim o fizer estaria mostrando automaticamente a sua fragilidade e sua vaidade. Por essa razão, optou pela reclusão permanente. Para Lao Tsé, o ser humano era o mais torpe de todas as espécies por causa da sua ambição e do seu caráter autodestrutivo. O resto das espécies, confundem-se facilmente com seu entorno, criando uma linguagem comum, uma harmonia única com o resto da natureza, coisa que o ser humano é incapaz de realizar.  Lao Tsé, diz a lenda, recusou-se a escrever seus ensinamentos e só o fez obrigado por um guarda imperial que não teria aberto as portas do reino, permitindo-lhe fugir de uma sociedade que ele achava demasiado corrupta, se não o fizesse. Mesmo sendo um homem de uma profunda vocação espiritual, Lao Tsé sempre rejeitou a ideia de se tornar uma voz representativa da divindade, já que entendia que ninguém é capaz de manifestar a vontade divina.

Também para Lao Tsé é bem importante o conceito de “não ação”, as maravilhas da natureza, que nenhuma outra inteligência é capaz de realizar, surgem sem precisar intervenção nenhuma. Para Lao Tsé, o melhor dos líderes é aquele que menos precisa dar ordens aos seus subditos. O mais brilhante dos sábios é aquele que menos precisa falar para fazer entender sua doutrina. 

Mas a filosofia e os ensinamentos de Lao Tsé eram estranhos e incompreendidos pelo povo. Por esta razão, o soberano do Estado de Lu decidiu solicitar o concurso de Confúcio, que deveria procurar “o Velho”(assim era o apelido que tinha, devido ao fato de seus cabelos serem brancos desde a juventude) e dele receber conselhos e, se possível, alguns dos segredos que tornavam mais poderosos os membros da dinastia Chou. 

Confúcio era na época um filósofo renomado, admirado por multidões, e próximo às castas mais poderosas da aristocracia. Ou seja, ele era  o perfeito oposto a Lao Tsé. Ao receber o pedido, não conseguiu ocultar o desprezo que sentia por aquele que preferia a solidão do bosque ao reconhecimento, à fama e o poder.

Levando presentes e companheiros, Confúcio, depois de longa viagem, chegou ao bosque em que residia “o Velho”.

Confúcio: – Meus olhos estão turvos e não posso confiar-me neles. Vejo-te como uma árvore seca, abandonada de todos e a viver solitária”.

Lao Tsé: – “Sim; abandono meu corpo enquanto viajo sem parar pelas origens das coisas. Mas que desejas?”.

Confúcio:- “Venho em busca de uma doutrina que possa melhorar a sorte dos seres humanos; um método para instruí-los e transformá-los.

“” O Velho”sorriu e adjuntou:

Os animais que se alimentam de ervas procuram por acaso melhorá-las? Os seres que vivem na água se preocupam em que ela seja melhor? E falas-me em melhorar os seres humanos.

“- Eles sofrem e eu queria fazê-los felizes.

“- “Se a alegria e os pesares, se o descontentamento e a satisfação não perturbassem o espírito dos homens, estes se pareceriam então com o universo. A fronteira entre a felicidade e a desgraça desapareceria. Quando os homens compreenderem que o seu bem maior é serem semelhantes a todos os outros seres vivos serão felizes e não poderão perder esse bem : transformar-se-ão sem procurar fixar-se.”

Confúcio objetou :

-“Por tua virtude, unirias Céu e Terra. Mas a palavra, pela qual se modifica o espírito, e a nós transmitida pelos sábios antigos, é possível despojar-nos dela?.

“Quando se trata do homem, com efeito, há que considerar que sua carne e seus ossos perecerão e se dissolverão, ao passo que suas palavras podem ser transmitidas enquanto existirem seres humanos.

“Lao Tsë refletiu e continuou :

“-Mas sem desembaraçar-nos da palavra, basta praticar o Não-Agir para que nossos verdadeiros talentos por si mesmos se revelem. Se o homem jamais procurasse modificar as coisas, estas não se alterariam por si mesmas; a terra é compacta por sua própria natureza; o sol e a lua, que brilham por si, pretendes modificá-los também?

Ë acrescentou :

– “Para conservar-se branca, a cegonha não precisa lavar-se; nem o corvo, tingir se de negro. Por que os homens teriam necessidade de estudar e inventar para penosamente modificar-se? De que lhes serviria isto?. Seria o mesmo que tocar o tambor para fazer ressuscitar um carneiro.

“Lao Tsé mudou o assunto e perguntou a Confúcio quais as tradições que estudara.

Respondendo que havia dedicado horas ao estudo de “ I tsing “ e o “Laço das Mutações”, que ancestrais sagrados haviam estudado, Lao Tsé afirmou:

“Esses princípios são a Eqüidade e a Reciprocidade, admiráveis regras sem dúvida.

“_ “Certo. Em minha opinião, porém, esses princípios, não são admiráveis. Do mesmo modo que os mosquitos, que durante a noite não nos deixam dormir e nos picam, Eqüidade e Reciprocidade não servem senão para conturbar e irritar o coração do homem. Com esses princípios, transtorna-se o caráter do povo, eis tudo. Não se mudará em nada o seu infortúnio.

“Indagou, Lao Tsé, se Confúcio havia elaborado alguma doutrina e este declarou :

– “Desde os vinte e sete anos estou em busca de uma e ainda a não encontrei.

” O Velho “ disse então :

– “Vou dar-te quatro que são universalmente seguidas. A primeira : deixar-se tomar, e os homens deixam tomar-se; é a doutrina que os senhores ensinam. A segunda ordena deixar-se importunar e todos os homens deixam importunar-se; é a doutrina ensinada pela família. A terceira manda acusar-se mutuamente e brigar uns com os outros, e todos os homens acusam-se uns aos outros; é a doutrina da fraternidade. Finalmente, a quarta determina trabalhar sem proveito para transmitir uma instrução vã e transmite a instrução; é a doutrina dos letrados. Não se pode delas escapar nem encontrar outras.

“- “Apesar disto, os sábios elaboraram doutrinas e tu mesmo”…

Interrompeu-lo Lao Tsé :

-“Quando um Sábio chega ao momento de triunfar, ele triunfa. Até que lhe surja a ocasião, permanece sem influência. Da mesma maneira que a melhor semente, quando ainda não germinou, fica escondida debaixo da terra que parece nua.

Levantando-se cortesmente para acompanhar o visitante, “o Velho” finalizou :

“- Sempre ouço dizer que as pessoas ricas ou poderosas ao despedir-se dos hóspedes lhes oferecem objetos de valor; aquelas que têm apenas ciência proferem palavras preciosas. Não sou rico nem poderoso e roubaria o renome de sábio. Não obstante, posso dizer-te isto : os homens inteligentes, os dotados de visão profunda das coisas, e mesmo aqueles que se avizinham do fim da vida gostam de criticar tudo e todos. Desse modo, porém, colocam em perigo o próprio corpo e atraem sobre si o ócio dos demais. Nada ganha o Sábio que se mistura no meio dos homens, mas pode tudo perder o ministro que o faz.

“Confúcio despediu-se e partiu para Lu, na manhã seguinte e durante três dias não disse palavra. Intrigado com o prolongado silêncio cheio de meditação, um discípulo dirigiu-se com perguntas ao Mestre. E ele reportou :

– “Acabo de ver um homem que alça a grandes alturas os seus pensamentos, que mais se assemelham ao voar de pássaros no azul. De minha parte, gosto de lançar os meus, um a um, como dardos de alabarda, sem errar jamais o alvo. Gosto que meus pensamentos fiéis sigam um caminho sempre rasteado e alcancem sempre a presa. Acabo de ver um homem cujas idéias são tão misteriosas e inacessíveis como um abismo. Gosto que minhas idéias possam ser pescadas na ponta de uma linha e satisfaçam. Dos pássaros, sei que podem voar: é o que os distingue. Os peixes, sei, podem nadar; os quadrúpedes , galopar. Mas, sei também que posso pegar com uma armadilha o que galopa; com rede o que nada e, com flechas, o que voa. Com referência aos dragões, se eles voam com a tempestade ou cavalgam as nuvens na imensa pureza do céu. Vi Lao Tsé como quem contempla um dragão. O queixo caiu-me e não pude respirar. Meu espírito, extraviado, não sabia onde pousar.

Assim finaliza o episódio do encontro de Confúcio e Lao Tsé.

JUAN MANUEL DOMÍNGUEZ é militante, professor, escritor, jornalista, roteirista, produtor e diretor de cinema. É colunista da Mídia Ninja e do Brasil 247, além de fotógrafo de documentários que fazem a defesa dos direitos humanos

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