ARTIGOS

O povo contra a democracia

por Gabriela Tessitore

A vitória de Trump e o referendo do Brexit em 2016 acenderam a luz vermelha em relação à estabilidade das democracias ocidentais. De lá para cá, a ascensão de um populismo de extrema direita e sua relação com as redes sociais se tornaram fenômenos para os quais até agora temos mais perguntas do que respostas. O cientista político americano Yascha Mounk, em seu The People Vs. Democracy analisa a emergência de regime populistas onde até recentemente a Democracia Liberal parecia ser “the only game in town” (“o único jogo na cidade”).

Por democracia Mounk entende um regime que seja capaz de traduzir a vontade popular em politicas públicas; por liberalismo, um governo que tenha como base as chamadas garantias e liberdades individuais, tais como liberdade de expressão, de imprensa, de associação e culto.

O fenômeno do populismo contemporâneo se desdobra para ele em duas tendências diferentes: um liberalismo não democrático (iliberal democracy), a exemplo das Organizações Internacionais (caso da OMC) e Agências Independentes (do tipo da Comissão da União Europeia), e uma democracia não liberal (undemocratic liberalism), baseada no sufrágio universal, mas carente de garantias individuais, como na Polônia, Hungria e Turquia.  

Do ponto de vista histórico, foi no início do pós-guerra que houve uma expansão dos regimes democráticos. Porém, sua consolidação se deu sobretudo no final dos anos 80, com a queda do muro de Berlim e o “Fim da História”. A partir daí a estabilidade da Democracia Liberal ocorreu, para Mounk, em decorrência de uma série de compromissos assumidos pelos Estados nos níveis econômico e cultural, e por uma imprensa cuja centralização permitia a exclusão dos discursos de ódio e teorias da conspiração da gramática política.

O argumento de Mounk não dá predominância a uma só causa para o fenômeno, mas leva em consideração “modos sutis e indiretos” em que a “ansiedade econômica e o animus racial” paulatinamente começam a se manifestar na politica, culminando no surgimento de afetos sabiamente canalizados por líderes populistas.

No plano econômico, o otimismo dos anos de crescimento, a rápida melhoria nos padrões de vida que se seguiram nos anos pós-guerra dá lugar, a partir dos anos 1990, à estagnação econômica. A isso soma-se uma má distribuição dos frutos da globalização, uma economia de serviços e um processo de automação para os quais os sintomas correspondentes são uma ansiedade em relação ao futuro de si e um ceticismo em relação à possiblidade de melhora de vida das futuras gerações. 

Com relação à cultura, embora as democracias fomentem o pluralismo, Mounk acredita que até os anos 1990 muitas delas – sobretudo na Europa Ocidental – tivessem bases monoéticas mais ou menos homogêneas, ou fossem, como nos EUA, desiguais por conta do racismo (com a predominância da cultura do americano branco). Anos de imigração massiva e ativismo social alteraram o cenário. Como resultado, uma rebelião contra o pluralismo ético-cultural.

As redes sociais foram a faísca no barril de pólvora. Ao democratizarem os meios de informação, inseriram uma massa de novos atores, outrora situados nas franjas do sistema, para a ágora pós-moderna. Ao mesmo tempo, as redes sociais na política trouxeram à tona os desafios que teremos que enfrentar em relação à inteligência artificial, algoritmos, machine learning, traduzidas no impacto que as fake news tiveram nos processos eleitorais.

Existem remédios?

Sim. Para cada uma das origens citadas, Mounk aponta remédios. Domesticar nacionalismos, melhorar a economia e estimular a cidadania ativa como forma de contenção para os males das redes sociais são alguns deles. Mas o que fica das lições que devemos saber tirar dos populismos atuais estão para além dos seus pontos nevrálgicos. Se quiserem fazer a democracia sobreviver, as elites econômicas e culturais terão que aprender a lidar com os afetos políticos dos eleitores e apresentar um projeto que, aos olhos dos cidadãos, não pareça compactuar com o “status quo”.

GABRIELA TESSITORE é psicanalista, mestre em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês (USP) e professora na FAAP/SP

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