ARTIGOS

Racismo estrutural e o caso Decotteli

por Djeff Amadeus

É incompleto dizer que o racismo estrutural impede o sujeito negro de errar. Na verdade, como bem disse uma das maiores intelectuais do Brasil, Jurema Werneck, o racismo impede o sujeito negro. Em suas palavras: “o racismo estrutural é a impossibilidade do sujeito negro”.[1] E ponto! Por isso eu digo que, diante do racismo estrutural, o acerto nos mantém na suspeita; e o erro nos cancela. Errar ou acertar, portanto, serve apenas para saber se o sujeito negro apanhará mais, menos ou se simplesmente tentarão nos cancelar.

Por isso Decotteli, o ministro que não chegou a ser ministro, foi ingênuo. Faltou-lhe consciência racial. Afinal, se a tivesse, entenderia que o negro, como diz Fanon, não é um homem: “El negro es um hombre negro.”[2]

Se isto é assim, então, por mais genial que fosse Decotteli, de nada adiantaria. Fanon explicar-lhe-ia com um bom exemplo: “se te amam, dirão que é apesar da sua cor; e se te odeiam, dirão que não é pela cor da pele.”[3] Aqui ou ali tu serás prisioneiro desse círculo infernal.[4]

O racismo estrutural, portanto, faz com que tudo – críticas ou elogios – seja sempre apesar da nossa cor.

Daí a razão pela qual a consciência racial, segundo o maior intelectual do Brasil na atualidade, Silvio Almeida, acaba sendo uma forma de autodefesa, porque ela faz com que “jamais entremos num lugar sem olhar a porta de saída”.[5] Por isso, e ainda parafraseando o filósofo e jurista Sílvio Almeida: é muita ingenuidade achar que dentro de uma estrutura racista você – enquanto pessoa negra – poderá fazer as mesmas coisas que o branco faz, tendo as mesmas conseqüências. Ledo engano.

Ora, ora e ora. Se o branco pode ser analisado em sua individualidade, tendo até distinções dentro da sua própria brancura (branquíssimo, branco e o encardido, conforme belíssima análise feita por Lia Vainer Schucman) o negro, por sua vez, é sempre o negro.

Daí se explica por que o erro de um negro acaba sendo sempre o erro de todos os negros, como diria Fanon, porque o homem negro não é um homem, mas sim um homem negro.”  Num contexto de racismo estrutural, portanto, enquanto a branquitude possui subjetividade individual, que a faz poder ser analisada individualmente, o negro é sempre visto coletivamente, fazendo com que todos sejam julgados pela atitude de um e, não raro, atitudes que visam sempre colocar em xeque nossa intelectualidade, o famoso: “eu avisei, viram?!”

Isto acontece principalmente pelo fato de que a filosofia ocidental falou do homem, e não dos homens, como disse o maior filósofo do México, Leopoldo Zea. Em suas palavras: “a filosofia ocidental tratou o homem como abstração que, contendo todos os homens, não continha nenhum. Grupos de homens que se consideravam agentes do humano e em seu nome esmagavam toda expressão de humanidade que não fosse a que eles representavam.”[6]

A importância de intelectuais como Guerreiro Ramos, Silvio Almeida, Lelia Gonzalez, Sueli Carneiro, Djamila Ribeiro e tantos outros e outras decorre do fato de que eles, ao contrário da intelectualidade tradicional, perceberam que não adianta falar do homem, achando que, assim, estarão falando de todos. Isto não significa, contudo, que estar-se-ia, aqui, a propor que não estudemos a doutrina ocidental.

Pelo contrário: há que se ler Heidegger, Platão, Aristóteles, Kant, Descartes, Marx, entre outros e outras, até porque, para que critiquemos os paradigmas filosóficos existentes, precisamos conhecê-los para, então, “destruí-los”, como se costuma dizer em termos heideggerianos, a fim de que assim possamos nos abrir à filosofia mais original possível.

A título de encerramento do texto fica a seguinte lição: jamais embarque numa nau cheia com estranhos porque, se precisarem esvaziá-lo, você será o primeiro a ser lançado ao mar. Tu fostes lançado ao mar para que os tubarões o comessem, mas eu, diversamente dos tubarões que o atacam, não farei como estes, sabe por quê? Porque eu, sabendo que todo excesso denuncia uma falta, como ensinou Lacan, sei que a maioria dos que o atacam o fazem como uma forma de super a ignorância pessoal que carregam consigo.

Por isso, o excesso de críticas lançadas a você vai além do racismo, porque, em termos psicanalíticos, foi a maneira que a maioria dessas pessoas, que não leem nada – ou pouco leem – encontraram para se sentirem inteligentes, isto é: em vez de sentarem a bunda na cadeira para estudar, buscam a “inteligência” fácil, aquela que os faz se sentirem sábios por intermédio do menosprezo alheio. Coitados! A vocês o meu silêncio e a minha pena em saber que convivem com a pior companhia: vocês mesmos!

DJEFF AMADEUS é advogado criminalista, mestre em direito e hermenêutica filosófica, pós-graduado em filosofia pela PUC-Rio, pós-graduado em processo penal pela ABDCONS-RJ, membro do MNU, IANB e FEJUNN


[1] WERNECK, Jurema. https://www.youtube.com/watch?v=kSWl7CPtwbk&t=3806s

[2] FANON, Frantz. Escucha, Blanco! Traducido de la ultima edición francesa (1965) por Angel Abad. Barcelona, Síntesis, 1996, p. 19.

[3] FANON, Frantz. Escucha, Blanco! Traducido de la ultima edición francesa (1965) por Angel Abad. Barcelona, Síntesis, 1996, p. 10.

[4] FANON, Frantz. Pele Negra Máscaras Brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008, p.109

[5] ALMEIDA, Sílvio. https://www.youtube.com/watch?v=kSWl7CPtwbk&t=3806s

[6] ZEA, Leopoldo. A Filosofia Americana como Filosofia. Traduzido por Werner Altmann. São Paulo: Pansieri, 1993, p. 57

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