por Felipe Eduardo Lázaro Braga

A tramitação do processo criminal contra o Lula nasceu, engatinhou, desmamou, teve espinha, engravidou fora do casamento, escreveu um TCC, terminou Grey´s Anatomy, tudo em tempo suadamente recorde. Por coincidência, o tempo indispensável para que o resultado impactasse juridicamente o cenário eleitoral de 2018. A sentença, coassinada pela promotoria com a grife Sérgio Moro de antecipação penal, anulou a candidatura do líder nas pesquisas de intenção de voto – em todas as pesquisas, inclusive aquelas não encomendadas pela foice e o martelo da Folha de São Paulo.
O processo contra o Lula registrou trocas de mensagens absolutamente inaceitáveis entre magistratura e promotoria. O processo contra o Lula vazou escutas ilegais envolvendo autoridades protegidas pelo foro privilegiado, ameaçando a segurança e soberania nacionais. O processo contra o Lula derrubou cirurgicamente o sigilo de determinados conteúdos incendiários – tudo o que era chato, tudo que não virava Jornal Nacional no dia seguinte, ficou guardadinho no segredo de Justiça. O processo contra o Lula, não só isso, inaugurou uma hermenêutica jurídico-jacobina sem paciência pra poréns de legislação, toda ela baseada em um sergiomorismo criminal tocando pagode com a promotoria.
O processo contra o Lula, no caso do Triplex, foi uma fraude política cheio de lacunas jurídicas insustentáveis.
Tudo isso aí é verdade, e tudo isso aí já está exaustivamente dito, argumentado e gritado pela devoção lulo-xiita. Qualquer reparação histórico-jurídica, no entanto, passa necessariamente pela preservação da institucionalidade democrática – Lula é um personagem da democracia brasileira, e tem a obrigação moral de submeter seu esforço e sua projeção pública à defesa intransigente das nossas instituições.
Curiosamente, o PT ainda não entendeu o risco antidemocrático que a contaminação bolsonarista representa, em todos os âmbitos da vida pública – o jurídico é um deles, mas não é o único. A natureza do bolsonarismo exige um constante inimigo a ser combatido, exige que uma ameaça conspiratória nebline a racionalidade brasileira, essa ameaça iminente que há anos vai chegar amanhã sem falta, e que, via medo redobrado em aversão, constrói a solidariedade do ódio mútuo. Só há um “nós” de virtude, honestidade e correção (e com imenso potencial manipulativo-eleitoral), se houver a ferocidade de um “eles” inimigo, um “eles” sem humanidade, um “eles” que só existe na realidade de uma mentira bem calculada.
Diante desse inimigo corrompendo toda manifestação de vida decente e familiar, destruindo os valores que me são tão imediatamente caros e que estruturam a minha subjetividade e o meu lugar no mundo, diante desse inimigo cuidadosamente imaginado pela ambição populista, a agressividade, a violência, o autoritarismo, o desrespeito à lei, estão todos plenamente justificados – a agressividade, a violência e o autoritarismo se convertem em uma espécie de legítima defesa social que me protege contra esse inimigo sem CPF, sem endereço, sem rosto e que, não existindo em parte alguma, está em todo lugar, mememarteladamente.
Aí fica fácil escorregarmos a ladeira abaixo da arbitrariedade: contra a corrupção, o desrespeito reincidente à lei; contra o vandalismo vermelho, a desfossilização do AI-5; contra a bandidagem, o aplauso uníssono da tortura; contra a ideologia de gênero, a censura paleolítico-pentecostal; contra o outro, a massificação de um eu amedrontado, obediente e submisso.
O medo do outro, porém, é só um estágio preliminar que prepara a antipolítica do ódio, e o ódio está prontinho para aparecer na TV, já vestindo uma camiseta amarrotada do Palmeiras, cabelinho tingido de populismo castanho acaju repartido cuidadosamente na extrema direita da testa. À frente de si, a confortável vida dura do Palácio do Planalto, rodeado de flora e filhos. Ajusta o microfone benzido de Edir Macedo pra discursar sem interrupção jornalística, e discursa cada centímetro de medo que o fanatismo ideológico quer ouvir, suas vírgulas de desentendidos e soluções ineficientes arruinando o país em benefício próprio, a inescrupulosa destruição ao redor que o permite subir até o alto dos escombros nacionais. Tudo para salvar o Brasil de qualquer ameaça que ele próprio carrega no bolso, prontinha para ser usada no momento retórico mais oportuno.
E o que o PT quer fazer nessa quadra histórica de refração democrática e ameaça institucional, e que exige, sem tergiversação, um uníssono pró-civilidade? O PT quer polarizar com o Bolsonaro, quer brincar de PT versus PSDB com o Bolsonaro, Lula versus FHC com o Bolsonaro, esse sujeito que despreza, sem a menor cerimônia, todos os limites institucionais que o Estado de Direito risca. O PT quer jogar o jogo de ódio mútuo que Bolsonaro trapaceou para si, num subterrâneo encarluxado de mentiras.
A ingenuidade, porém, é uma delicadeza de vidro: num segundo atrás, ela é um ornamento na sala de estar decorando pra todos sua frágil tranquilidade, sem risco e sem iminência; no segundo desastrado adiante, ela já é um espalhado de cacos afiados no chão, sangrando quem a desdenhou por inocência. A ingenuidade do PT acredita que, polarizando contra o Bolsonaro, conseguirá manter para si o monopólio eleitoral da centro-esquerda. Acredita, por extensão, que o novo populismo de direita, diferentemente da direita limpinha de extinção tucana, aceitará a disputa pela sucessão com deferência constitucional, observando liturgicamente as regras da Democracia, ainda que isso implique em derrota eleitoral, na perigosa fronteira que separa o Planalto do Queiroz.
A realidade, contudo, vai sussurrando sua intransigência: não há um só dia em que a Democracia brasileira não sofra uma nova facada de autoritarismo afiado, numa et cetera miliciana, militar e neopentecostal formando fila de abusos cada vez mais flagrantes. Existe sim o momento de jogar pra ganhar, disputar o sufrágio e vencer a urna – é o momento da normalidade institucional. O nosso agora brasileiro, porém, é outro: devemos garantir as regras do jogo funcionando constitucionalmente, construindo no caminho uma maioria democrática que constranja as tendências claramente abusivas do atual governo.
A burocracia do Partido dos Trabalhadores, se apostar tudo em si mesma nesse fla-flu altamente arriscado, mostrará sua pior face (a de burocracia do Partido dos Trabalhadores), uma escolha política que em português se chama erro.
A verdade é que o ex-presidente, líder Luís Catorze do PT, cometeu erros, erros de vaidade que diminuíram sensivelmente sua estatura histórica: ao deixar a presidência do Brasil com 87% de aprovação popular e com imenso trânsito internacional, Lula, mesmo descendo unânime e sorridente a rampa sucessória do Palácio do Planalto, ainda tinha diante de si um degrau político a subir, o degrau político definitivo que só raríssimas biografias conseguem alcançar; sua obrigação de grandeza era subir no alto da tribuna global, e discursar para os problemas da humanidade, denunciando nordestinamente a aridez da fome e da desigualdade, denunciando a exploração inescrupulosa do trabalho que, não raro, atualiza suas raízes de escravidão, denunciando a falta de acesso à água que colhe e à terra que irriga, esses problemas distributivos que sufocam a criatividade humana na miséria cotada a lucro, impunemente.
Lula conquistou esse lugar porque, vestido com a faixa presidencial e exercendo suas metáforas esportivas, fez uma aposta muito bem sucedida no estado de bem estar social brasileiro, assegurando um colchão de proteção universal contra a extrema pobreza. O sucesso econômico e social do Bolsa Família converteu a influência lulista em ideia global de justiça e equidade, mas mais do que isso: justiça e equidade como obrigações indispensáveis e urgentes do Estado. Lula tinha trajetória de vida, tinha carisma retórico, e tinha resultados sociais pra ser um Mandela metalúrgico, uma liderança global discursando o sotaque do Hemisfério Sul – ele chegou muito próximo da grandeza última, aquela cuja voz política pronuncia a empatia de milhões e milhões de sofrimentos, uma grandeza que pertence a todos em conjunto no entusiasmo da sua liderança.
Para que o ex-presidente subisse esse degrau de consagração, contudo, era absolutamente necessário manter-se a uma distância segura da vida imediatamente partidária, se afastar do dia a dia pequeno-brasiliense com estatura de baixo clero, a única forma de preservar a si próprio, e seu imenso capital de legitimidade, das miudezas políticas que sobrevivem de cochichos, cargos, comissões, e carros oficiais. O mundo queria que Lula habitasse a estratosfera das grandes ideias, mas Lula é um homem do embate eleitoral, um homem da máquina partidária, um homem da irremediável militância “nós contra eles”, um homem que vai pra TV no país vizinho pedir voto pro Nicolás Maduro favorito, um homem que é amigo-atibaia de todos, inclusive de Odebrecht e OAS e outras irrepublicanices empreiteiras. Entre a grandeza e o PT, Lula escolheu a estreiteza da eleição seguinte, escolheu a burocracia da própria popularidade.
Pois é assim que funciona a economia da grandeza: enquanto o tempo, oscilando suas arbitrariedades inevitáveis, vai desgastando aos poucos o homem político, ele, por outro lado, recompensa a tranquilidade cívica e empenhada do Estadista que abandonou a vida eleitoral em benefício dos grandes consensos humanos. A psicologia da grande figura pública, portanto, enfrenta o seguinte dilema: atrás de si, o piso imediato e sedutor da política, com seu poder afrodisíaco de cargos, homenagens e holofotes, todos sorrindo subserviência no calcanhar da própria vaidade – esse piso é, no curto prazo, muito mais elevado que as aspirações de futuro que o estadismo promete. Mas o teto de grandeza do estadismo, assustadoramente à frente de si, cresce com a envergadura do século, sua ação civilizatória inaugura a normalidade das próximas décadas, seu nome sobrevivendo ao tempo no progresso das gerações. Alguns dão o passo de grandeza adiante; outros, já no presente convertidos em nostalgia de si próprio, retrocedem às tentações bajuladoras da política eleitoral.
Saindo do Planalto, Lula era uma unanimidade eufórica e internacional. Ao manter-se no insaciável do agora político, Lula diminuiu de tamanho e voltou a ser slogan centro-acadêmico de esquerda. Hoje, sua contínua insistência em canibalizar o continente progressista, impedindo que outras lideranças ameacem uma independência de protagonismo, pode fazer com que Lula despenque outro andar de influência e, de popstar da esquerda estampando a hegemonia vermelha dos broches de mochila, ser de novo o velho cacique de partido, apenas um quadro pendurado de remorso no silêncio de São Bernardo.
Lula e o PT sabem perfeitamente bem que a polarização, esse habitat por excelência do bolsonarismo selvagem, só aumenta o teto eleitoral da extrema-direita, engordando-a com aquela fração do centro que, embora deteste essa cólica renal batizada Jair, consegue detestar o PT treze vezes mais. Polarizar com o Bolsonaro significa, isso sim, evitar que outra liderança de oposição reúna em torno de si um pacto de gravidade democrática capaz de organizar a defesa institucional do país contra a crescente arbitrariedade presidencial, destronando Lula do patriarcado da esquerda.
Tudo isso é a mais pura verdade, mas é na rachadura do que ainda pode ser, e não no lamento do que poderia ter sido, que moram as nossas melhores utopias. O país precisa derrotar Bolsonaro em 2022, derrotá-lo junto com todo o esculacho lunático-ideológico que ele tão milicianamente representa. A configuração eleitoral que mais aumenta suas probabilidades de reeleição é um embate direto com o PT, aumenta suas chances até o desesperador limite do incontornável.
Por quê? Porque o PT de Schrödinger consegue ser, ao mesmo tempo, a maior força política da oposição, e a maior força política do atual governo, unindo o Brasil em duas metades separadas, a tribo do pró, e a tribo do anti. Sem a fração absolutamente indispensável do centro ideológico que o PT empurrou pra Bolsonaro no precipício dos próprios erros, a oposição democrática não cumprimenta os 51% dos votos válidos. O partido representa, portanto, a barreira eleitoral que inviabiliza o surgimento de um terceiro lugar competitivo com trânsito razoável junto ao eleitorado de centro-direita, de sorte que o PT nem vence, nem deixa vencer, vence direto pra derrota, naquela circunstância eleitoral que a ciência política de Harvard convencionou chamar de “nem fode nem sai de cima”.
O Partido dos Trabalhadores tem a oportunidade histórica de ser o fiador da nossa Democracia: se disputar uma eleição de militância hidrófoba contra Bolsonaro, a burocracia pró-próprio umbigo do partido vai estender o tapete vermelho-PT direto para a reeleição do nosso naufrágio; se escolher ampliar o teto potencial da oposição e se resguardar nas disputas legislativas e infrafederais, o Partido dos Trabalhadores vai protagonizar o sacrifício pró-democracia que não tem outro nome senão grandeza.
FELIPE EDUARDO LÁZARO BRAGA é mestre em Ciências Sociais (USP), graduando em Filosofia e pesquisador
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