por Veyzon Campos Muniz

Em 1968, Martin Luther King, ativista laureado com o Nobel da Paz de 1964, pretendia realizar novo movimento de desobediência civil não violenta para pressionar o governo norte-americano a atender as demandas sociais de justiça econômica e de combate à pobreza. Em 04 de abril daquele ano, porém, teve a sua vida ceifada com um tiro. O seu legado, contudo, não morreu. O racismo por ele atacado segue vivo e o seu enfrentamento emergiu vívido na sociedade estadunidense nos últimos dias.
Seis meses após o passamento do referido líder, George Romero, cineasta então estreante, lançava o filme de terror independente “A Noite dos Mortos-Vivos” (Night of the Living Dead). Trazendo Duane L. Jones, ator negro, como Ben, a obra ocupava-se de sua jornada por sobrevivência em meio a uma reanimação pandêmica de pessoas recentemente mortas, que as tornava famintas por carne humana. O protagonista, com esforços próprios, sobrevive ao ataque zumbi, todavia, em um desfecho brutal, é alvejado fatalmente por policiais brancos, aqueles que deveriam ser responsáveis pelo salvamento de eventuais sobreviventes.
Tanto a personalidade histórica, quanto o personagem fictício revelam que o racismo nunca deve ser compreendido como uma ação ou conduta intangível e merecedora de atenção individualizada. Ele, em verdade, forja as sociedades, sendo um mecanismo complexo de criação e retroalimentação de desigualdades estruturais exclusivamente postas com base na cor ou etnia das pessoas. Trata-se de um modo de compreensão das relações interpessoais em ambientes determinados: uma racionalidade que se expressa no domínio sistêmico sobre o acesso a bens e serviços públicos e privados, a gestão de espaços de poder, a construção de narrativas e subjetividades e a normatização de regras, que vai de encontro nevralgicamente aos princípios e direitos mais básicos.
A letalidade do racismo estrutural brasileiro, exemplificativamente, pode ser observada de modo empírico. 75% das vítimas de homicídio no país são negras, como revela o Altas da Violência 2019 – dentre tais vidas perdidas está a do adolescente João Pedro Pinto, morto por tiros a queima roupa em 18/05/2020 pela ação policial em São Gonçalo. A mesma fonte indica que, entre 2012 e 2018, a violência fatal causada por operações policiais subiu 166,7%.
Essa dramática realidade no contexto da pandemia causada pela disseminação do novo coronavírus não se alterou, pelo contrário, agravou-se. Em meio ao presente estado crítico, em que medidas de asseguração da vida das pessoas deveriam ser as tarefas estatais prioritárias, vê-se uma intensificação das mortes de jovens negros e da truculência contra as manifestações públicas de protesto à elas – o que pôde ser visto quando das manifestações antifascistas ocorridas em 31/05/2020.
O Brasil, com aproximadamente 40 mil mortes por Covid-19, tem em sua população negra o grupo de maior vulnerabilidade. De acordo com dados da Agência Pública, compilados a partir de informações disponibilizadas pelo Ministério da Saúde, constatou-se que, entre 11 e 26/04/2020, negras e negros mortos pela doença representavam montante 5,5 vezes maior do que os de óbitos da população branca. A pandemia desnuda como as desigualdades sociais e econômicas entre brancos e negros tornam-se determinantes para maior risco de infecção e morte pela aludida doença.
Achile Mbembe, filósofo, historiador e professor camaronês, ao refletir sobre um direito universal à respiração, oportunamente, questiona: “Seremos capazes de redescobrir a nossa pertença à mesma espécie e o nosso inquebrável vínculo à totalidade do vivo?” O questionamento-chave proposto remete, de modo contundente, à necessidade urgente de erradicação de práticas institucionais nocivas aos direitos humanos de negras e negros e de garantia indisponível à própria existência, de um lado, por via de prestações estatais médico-sanitárias efetivas e, de outro, por abstenções estatais violentas e atentatórias à sua integridade e dignidade. Só nesses termos, pode-se afirmar que negros e não-negros são pertencentes a mesma espécie e que os vínculos e compromissos com o direito humano à vida estão disseminados nas sociedades.
A realidade brasileira, nos dois aspectos nocivos destacados, assemelha-se com a experiência norte-americana. A letalidade do coronavírus e também a policial são maiores na população negra. Percebe-se sensivelmente que o racismo estrutural atua patologicamente nas estruturas sociais associando-se à Covid-19 e à violência policial. Foi, assim, que, em 25/05/2020, George Floyd faleceu após perder a consciência em decorrência de ter seu pescoço pressionado contra o chão por um agente policial em Minneapolis. A revoltante cena, filmada pela população, que remete ao terror de Romero, desencadeou uma onda de protestos como aqueles idealizados por King. O povo, mesmo ciente da importância do isolamento social como boa prática contra a Covid-19, passou a sair às ruas exigindo justiça para Floyd e para toda a população negra cotidianamente exposta à toda sorte de mazela estruturada pelo racismo.
Por conseguinte, o direito à respiração pode ser entendido como expressão do direito à existência – pressuposto para a assunção do ser como ser humano vivo. O grito do homem que lutava pela sobrevivência no momento em que um agente do Estado o sufocava: “Eu não consigo respirar!”, tornou-se palavra de ordem. Fato é que sistemas racistas, como os experenciados pelo Brasil e pelos EUA, estão selecionando vivos e mortos nas sociedades e, assim, subvertendo a universalidade do direito à vida em uma perpetuação pandêmica do privilégio branco. As vozes antirracistas que ecoam pelas ruas, desde então, correspondem, assim, ao brado pelo direito de viver e existir como sujeitos de direitos.
VEYZON CAMPOS MUNIZ é doutorando em direito (Universidade de Coimbra) e mestre em direito (PUC/RS)
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