ARTIGOS

O vírus olha dentro de nós

por Bernardo G. B. Nogueira

ATO 1

Já não há mais tempo. Ao contrário. Só há o tempo. Leve e pesado feito uma placa de metal invisível sob nossos ombros. Só resta o que vem. Na exata dimensão da alteridade. Isso que nos move e ao mesmo tempo escapa aos nossos ouvidos tão determinados a ouvir a razão. Nada há nada que possamos fazer. Com nossas agendas, todas elas agora deslocadas. Nossa tão amorosa propriedade do outro. Nossa carência alimentada pelo consumo que nos deixa mais obesos e menos astrais. Nossa forma tão careta, tão covarde de dizer do amor como se isso fosse algo menos que jazz etropicalismo. É o fim do binarismo moderno. Da era moderna que inventou fronteiras mil e se esqueceu que as cores quando tocam o céu derretem em faces inauditas. O vírus te olha por dentro, e não respeita divisas. Assola um terreno desconhecido porque esquecido. Se esgueira pelo inconsciente e traz o medo! Ele se mostra escondido no corpo. Violenta-o. E é necessário mais para ver que ele denuncia a própria violência muda, límpida, do soberano, que é besta, que precisa normalizar, que dita regras, que impede o gozo, que teme o gozo. Doentes, embotamos o gozo em palavras claras, regras de escrever, regras de viver, transitamos pelo outro com uma cartilha prescrita por uma fórmula científica. E é o phármakon, ciência por demais, mata, ciência de menos, resulta no mesmo fato. O vírus torna clara a violência objetiva, que permite a ordem, que atua como ordem; ela, como podemos ver já em Brecht, mas mais claramente em Zizeck, nos mostra como a manutenção da ordem é exatamente o ponto a ser revolvido. Não. The end. Não há saída nessa fórmula, o vírus agora inverteu a ordem teórica e a violência objetiva, essa força invisível que controla sem se mostrar, ela, agora, também está a vista. 

O vírus invisível é preciso em mostrar as entranhas que invade, onde habita de maneira nada sorrateira; avisa, quase como Gitã de Raul Seixas, que ele é quem traz a face que talvez estivesse a querer se esconder ou o que é mais comum, escamotear. Como num rap cantado por Renan Inquérito que ouvi em uma aula de Boaventura de Sousa Santos, os monstros que nos habitam precisam ser postos em perspectiva para que possamos vê-los vir: “Nós ‘tamo’ dentro dos monstros e eles, dentro da gente, somos problema e solução simultaneamente, o monstro parece grande, de perto é ainda maior, mas quando a gente se afasta, vai ficando menor, menor, menor, menor, menor, menor, menor, menor, menor, menor, menor, menor, menor, menor, menor, enorme […]”.    

O vírus é um vilão que captura a força ao mesmo tempo que põe abaixo a imaginação, a vida. A torrente que nos move é emperrada quando o vírus se impõe e como uma metáfora do momento presente, quedamos em face dele, vitimados, corremos para a salvação: deus, o capital, a cura, o phármakon que não vem. O vírus é a face do capitalismo que vive da doença criada, que serpenteia silencioso, e faz com que qualquer chance de alteridade seja computada como mais uma fórmula que logo será precificada e colocada na rede do consumo. E a rede, outra metáfora, nos entretece, pondo véus em nossa face humana: consumimos para nos salvar do vírus, que é, em seu outro lado, aquilo que nos faz consumir. Doentes, procuramos a cura! E ela custa caro, sobretudo, pois sabemos apenas pensar em sair dessa com a fórmula do fim da história. 

Qual democracia nos salvará? Senão, esse arremedo movido pelo próximo tratado de direito internacional, que vale tanto quanto oferecer banquete a quem já perdeu os sentidos pela dureza diária da existência.  É o fim, baby! Nada de promessas anunciadas em declarações. O fim saboreia nossa ânsia. E nós, os modernos e sabedores, tão hierárquicos, tão digitais, modernos e medicados, saboreamos o ar do rumo perdido. Se achas que isso é uma elegia, enganas! Restam kantismos e contratualistas pelo caminho. Veja o pergaminho de Rousseau rasurado por Agamben – não há contrato social, esse documento restou escrito em peles negras, corpos subjugados – pela nudez dos corpos, o vírus manifesta sua verdade que não tem nada de invisível. Cantam aos ventos os que anunciam uma ausência de distinção de classes por parte do vírus. Ora, ora, senhoras e senhores da sala de jantar, o anverso do vírus é a clareza com que ele evidencia as entranhas invisíveis da sociedade patriarcal, colonial e capitalista do Brasil. 

Haverá esperança, não para nós! Nós, os modernos, não nos salvaremos. Hey you. Onde foi parar sua fantasia? A separação que visa ao saber, dita por Descartes, não percebe que nas migalhas, das migalhas, nos pedaços, nos restos, por vezes esquecidos, talvez haja a réstia de vida. Uma que carece ser inventada, diria até, embriagada, feito um poema, feito um ensaio, que de um jato só, ensinam que o conhecimento nasce para transformar e transportar e transconhecer, pois, aquilo que sabe, se sabe, requer em suas mãos, o outro, esse que agora lança súplicas ante a devastação. Há que trans-por o limite da razão, ela é a própria limitação. 

Não vês: apenas o cego evidencia a nossa prisão. Estamos aprisionados na necessidade de ver tudo, claro, límpido, mas, de outro lado, lembra-nos o cego:  o olho serve antes de tudo para chorar; a razão ensina a ver, dividir, hierarquizar. Acreditar em Sócrates nunca foi tão perigoso, pois, quando, cegos, doentes, acometidos pelo vírus, tateamos em busca de luz, outra vez esquecemos os sentidos outros. Logo, não é mais possível, the end camarada, essa lanterna não mostra a trilha. Onde foi parar sua vontade de ir ao Nepal guiado pelo magic bus? Você que acerta tanto, que é moral e que até sabe do imperativo categórico: quanto de suas páginas, de nossas páginas criam vida? Mais um relatório preenchido e outra cegueira é legitimada. 

Não lidamos bem com nossos corpos, que enchemos de produtos fáceis só para não lidar com a explosão. Negamos o sol. Negligenciamos as estações. E a arquitetura da alma restou enclausurada em iluminismos tão claros quanto a cegueira de Saramago. Nos armadilhamos de coisas para não olhar a liberdade de frente, e o que nos forma, se perde, o poema. Agora, hey you, ela bate à porta, sai correndo e te obriga a lidar: presos, nunca estivemos tão livres. Mas e agora? O agora é recheado de hipóteses, e como não cuidamos de nós, sentimos que a corrida chega ao fim e, evidente, não há recompensa, senão cansaço e uma gota de esperança, talvez. Não podemos mais estudar sem sentir. Não dá mais para alimentar plataformas e não saber o que fazer com o que produzimos. Não podemos mais não abraçar. Não conseguiremos sem nos socorrermos às uti’s emocionais. Agora, temos remédios tão perigosos como salvadores – amargos, dizem que a cura vem. Só um espaço para a próxima dose. Mas não podemos sair para comprar. Aliás, comprar pra quê se não podemos mais exibir. Exibir! Exibir! Esse ato que revelou a duras penas como estamos sem nada a dizer, senão, cifras que nos distanciam, que servem para alimentar uma onda sem graça que é a não divisão, que é a mãe da nossa decadência, nossa indolente forma de ver o rosto do outro.

É o fim. Nada de magic bus. Tudo está explicado. Tudo está catalogado. Dez formas disso, dez daquilo, e porque não seriam nove ou oito, ou coito. É o fim, essas fórmulas deram tão certo como sair às ruas hoje. A morte de um paradigma dói. Sobretudo para quem se serve dele para surfar na posição de hierarquia superior ante os demais. São poucos. Eles estão expostos agora. Tem que ser o fim, sob pena, de não vermos o invisível mais uma vez, ele está a avisar: o paradigma moderno acabou e ele deu errado, o capitalismo, o patriarcalismo, o machismo, o racismo, eles todos filhos do mesmo tom, devem deixar seus postos. Invisível, o vírus mostra: os animais não humanos não são afetados. Veja, isso não é possível não ser visto! Ou vemos agora, ou nos entregamos. Isso é tão apocalíptico quanto fugaz, nem é nada. É só o fim, saibamos vê-lo vir, ele não refugará.

ATO 2

Talvez o vírus mostre as nossas entranhas. Talvez esse vírus, ao matar, mostre o monstro em nós, esse que calamos ao calar a poesia, que vem na face exposta, espoliada, esquecida, nua, medicada, normalizada do Outro. Talvez eu precisasse retomar um pouco duas questões. Duas que se misturam e formam esse mar. E a primeira questão é sobre poesia. Heidegger em um texto no qual comentava um poema de Holderlin lá pelas tantas traz o seguinte verso: poeticamente o homem habita. Daí, veja: parece que ante o tempo que vivemos, com o fim apocalítico de um mundo moderno, fundado em dimensões liberais e lastreado pelo capital, talvez pareça que nada de poético há. Porém, a leitura heideggeriana nos ensina o inverso disso. Ora, a chance de falarmos que não vivemos poeticamente é dada exatamente pelo fato de que antes, ou seja, naquilo que nos constitui, somos poesia. Acho isso bem interessante. Logo, vive-se sem poesia pela simples percepção de que nosso estado seria poético. Escute o Chico César te contar disso. Algo como dizer que vivemos sem amor ou amando de jeito errado, seria apenas a confirmação de que há amor. E essa percepção carreia também a ideia de que o estado de direito só existe para confirmar a exceção que vivem muitos. Penso em Benjamin e Agamben agora. Por isso, quando queremos transpor as amarras modernas e conceituais, um pleonasmo, reconheço, estamos a afirmar que o que diz do humano é infinito e diversidade. 

A ideia de querer encerrar a existência em um modus binário nos mostra o seu inverso: somos diversos. Mas no poder, como já cantava o Belchior, reside a diminuição do amor. Talvez aí uma boa prosa. Então, esse seria o primeiro ponto: só somos maus ou bons amantes, ou sem amor, pois nossa constituição é amor. 

O segundo ponto, o do cego, mire: um acontecimento precisa revelar nossa cegueira, ou seja, se algo acontece como um evento, como um acontecimento que irrompe e desconstrói a previsão, isso precisamente necessita não possuir um horizonte de vinda, quer dizer, não podemos ver para que algo possa ocorrer – só o impossível acontece nessa medida. E esse impossível, como tudo que vem, o Outro, a ideia do comunismo, tudo isso que aguarda uma subjetividade para se inserir na história, isso requer um desconhecimento. Veja, estou a dizer, sem a arrogância socrática, é preciso não saber para saber. Isso indica uma hospitalidade, isso indica até uma certa maneira humilde de se portar; e a humildade, untada de poesia e diversidade talvez nos liberte desse aprisionamento moderno e totalizante que tudo sabe e de tudo diz. 

Mire: o cego, por certo, não possui a visão, que serve para medir, para calcular, para decidir, porém, o cego ainda chora. Assim, os olhos, vistos sob essa dimensão, indicam que aquilo que diz do humano não estaria encerrado em sua capacidade descrita por uma racionalidade inventada por uma europa que se quer universal. A categoria da empatia vem do choro, pois, ali vemos rolar a lágrima sem chance de segurar a vinda do outro. Que traz amor, mas também e, por conseguinte, choro. 

O estrangeiro, o vírus, ao vir, abala nosso horizonte de apreensão. Não temos armas contra aquilo que não domamos. Daí que a ciência, a produção de saber, as relações humanas enfim, estejam todas elas, de ponta a ponta, permeadas pelo medo do Outro, daquilo que não podemos suportar e, portanto, matamos com nosso punhal conceitual. Não é assim que se declara amor eterno, querendo de uma só feita, aprisionar o Outro em nossa vã arrogância de querer saber do tempo? Dorian Gray que nos diga, além de mostrar como o medo da nossa falta, de nós mesmos, acaba por nos fazer ferir de morte aquela pessoa pela qual dizemos sentir amor – o medo, base do discurso racional, teme e lança para um abismo aquilo que ele não consegue capturar. O pensamento moderno, não em vão, é um pensamento fundado em teses e antíteses, sempre o medo de perder o cedro, o trono, o timão, quer dizer, o poder como aquilo que mata para viver. Como amantes medrosos que dizem: amo mais que tudo, para que o Outro, agora emparedado por essa expressão, não se mova, e morra, vitimizado, por causa do amor. 

A medida da formação do estado nação, do direito, da propriedade, e, portanto, do patriarcado, dos machismos de toda ordem, vêm permeados de antemão pelo medo. Basta lembrarmos da muralha da China, monumento construído para frear mortes e, por causa desse medo, matam-se mais pessoas em sua construção do que se protegem vidas. Mia Couto nos diz que o medo é o mestre que mais o desensinou. Ele paralisa. A regra se funda no medo. Logo, dizer que há medida para o amor talvez seja um medo nosso de cada dia, ou de não sermos amados ou de amarmos de maneira errada. 

Esse paradigma deve ser afastado, não podemos mais nos guiarmos por algo assim; o evento, como disse, vem, ele assola nossas expectativas. Ele é assim porque é Outro. E se acaso quisermos dar conta disso, talvez quedemos mais tranquilos, com a agenda em dia. Mas[RDdS1] , por certo, o abismo da previsão é tão inóspito que nos lança ao abismo da morte em vida. O gênero que diz do amor é só o gênero que vem, dada nossa condição infinita no finito, ou seja, se só o impossível acontece enquanto evento, o gênero que vem, o do amor, será obra do nosso próximo encontro. Não quero nem combinar para que ele ocorra. E talvez assim, pela invisibilidade do vírus, possamos nos guiar para adiante de nós, do eu cartesiano, do capitalismo individualista, da ordem econômica e fundada na morte (necrocapitalismo), para que a vida, após a morte ainda seja possível; é preciso a morte, apenas porque da vida só nos resta inventar. E isso, supomos, vem com o comum que é o fundo a nos entretecer agora, pois, enclausurados, vemos, pelo vírus, aquilo que nos compõe, pedir chegada, o Outro – esse invisível que não cabe em nenhuma fórmula mágica, a não ser aquela cantada pelo Racionais Mc’s, que é fabular, vinda do mundo Mágico de Oz. This is the end, my only friend, the end.

BERNARDO G. B. NOGUEIRA é poeta, mediador, doutor em Teoria do Direito pela PUC/MG e professor da Faculdade Milton Campos

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