por Renato Kress

Observar gente é o meu ofício de vida. Essa semana um dos maiores especialistas nos danos estruturais e colaterais do capitalismo falou o que fala há anos: ele não se sustenta. É óbvio. Existe um esforço enorme midiádico para que não vejamos o óbvio, por isso eu sempre fico impressionado quando alguém descobre ele de novo. Parece ironia, mas não é.
Atualmente estou impressionado que as pessoas finalmente descobriram que as experiências delas influenciam as leituras de mundo delas. Podemos chamar de “lugar de fala”, obviedade, bom senso ou até lógica.
Vamos falar um pouco de “lugar de fala” para depois entender a psicopolítica da comunicação e os afetos envolvidos. Ontem ouvi um podcast maravilhoso da Anita Deak sobre lugar de fala na literatura e me peguei pensando sobre tudo isso que segue abaixo. Então, como eu ainda não tenho um podcast, pega uma pipoca e vai lendo aí. Prometo que vai valer a pipoca.
De que lugar vem o lugar de fala?
Aliás, vamos ser sérios e responsáveis dentro dos conceitos que usamos? De que lugar vem esse tal lugar? “Lugar de fala” é um conceito da antropologia que pressupõe que o nativo geralmente saiba mais sobre si mesmo e sobre sua cultura do que o não nativo. Parece uma idéia bem óbvia. E é. Na verdade é só isso mesmo.
Não envolve silenciar o não nativo. Não envolve um “lugar de calar” ninguém e definitivamente não é um “lugar que cala” nem que manda calar. O conceito como um todo envolve também uma visão simplista de que o inconsciente não existe e somos todos completamente conscientes de quem somos e de todas as forças em ação na nossa mente. Como se fôssemos pura consciência. Essa é a hora em que Freud, Jung, Lacan, Klein e companhia reviram no túmulo. Não aprendemos o básico. Não somos pura consciência e não sabemos tudo sobre nós mesmos, quem dirá sobre o outro.
Usos e abusos do tal lugar
Ah, então isso quer dizer que todos os nativos necessariamente têm a mesma autonomia e autoridade para falar sobre sua cultura? Não. Uma mulher envolvida no movimento feminista, como a Manuela D´Ávila ou a ângela Davis, tem mais autoridade para falar sobre as lutas do movimento feminista do que a Damares ou a Regina Duarte. Exatamente como um engenheiro tem mais “lugar de fala” (dá pra chamar de autoridade também, hein!) quando o assunto é levantar um prédio, ou o cientista político quando o assunto é política.
Ué, mas ambas não são mulheres? Pois é. Identidade de gênero não define tudo e é apenas um fator no complexo mundo multifatorial das ciências sociais.
Multifatorial? É produto da polishop?
Sabe aquele único referencial que você usa para definir todo o universo ao seu redor? Em Ciências Sociais ele é inútil sozinho. Quanto menor o espectro de variáveis analisado – só gênero, só classe, só etnia, só tamanho do seu pé, só uso de uma cafeteira, só renda, só o seu ascendente zodiacal – mais longe do mundo real vai parar a pesquisa. Isso se estende a ponto de eu arriscar que uma pesquisa social – ou uma afirmação qualquer na mesa de bar – baseada em apenas um fator isolado – sua experiência, por exemplo, sua história de vida – sirva para basicamente nada! Geralmente, aliás, esse tipo de “argumento” é usado para corroborar preconceitos através de generalização, omissão e distorção.
Não existe estudo em ciências sociais que seja monofatorial. Não existe seriedade e comprometimento com a realidade em qualquer estudo que considere única e tão somente um fator, seja ele qual for.
Exemplo e incômodo
Pele negra. O Pelé e o Milton Santos têm a mesma autoridade para falar sobre racismo e geopolítica? Claro que não! Um foi um geógrafo que passou a vida estudando geopolítica, um acadêmico negro num espaço reservado culturalmente para brancos. Já o outro é um jogador de futebol que jamais se envolveu com o tema – a não ser quando usou sua visibilidade para deslegitimar o movimento negro aqui e ali – e ganhou fama e prestígio num espaço em que a sociedade racista em que vivemos permite a fama e a expressão do talento negro, que é o esporte. Serem ambos negros não dá aos dois a mesma capacidade de falar sobre as estruturas perversas do racismo. Um único fator não explica seus posicionamentos. Na verdade, levar em conta um único fator nos confundiria para entender seus dois posicionamentos.
Joio e trigo
Querer e lutar pela justa valorização dos especialistas independente de suas etnias, cor de pele ou gênero é completamente diferente de achar que qualquer pessoa que compartilhe um único desses marcadores sociais seja necessariamente sempre representativo para falar sobre uma causa.
Olhar holístico
Em tempo, mais uma vez, “lugar de fala’ é considerar o pano de fundo histórico, social, econômico, emocional, étnico, cultural e de gênero do sujeito que emite um enunciado dentro de uma comunicação. Não é só olhar a aparência, é um olhar holístico, é um olhar para o “todo”, num sentido de ter um panorama geral mesmo.
Calaboquismo: A cultura do lacre
Precisamos ficar atentos aí com toda essa “lacração”, com todo esse silenciamento, com todo esse “cala boca” que está se tornando o conceito de “lugar de fala”. Porque não estamos considerando um poderoso vetor dentro da dinâmica dos jogos políticos na sociedade brasileira: os afetos!
Quando silenciamos ou somos silenciados sentimos entrar em ebulição determinados afetos, somos invadidos por determinadas emoções. Precisamos levar isso em consideração se de fato queremos levar adiante alguma mudança social e não apenas massagear nosso ideal narcisista e inflado de quem pretensamente somos.
O uso político libertário
Quando tiramos o instrumento metodológico do “lugar de fala” do campo da antropologia, onde ele nasce, para dar visibilidade a autoras mulheres nos trabalhos acadêmicos sobre mulheres ou a autores negros (ou autoras negras) nos trabalhos acadêmicos sobre negros estamos operando um lindo, justo e necessário acerto de contas histórico, além de colaborarmos para dar poder e notoriedade para quem até então foi silenciado. Isso é maravilhoso e é uma luta constante diante de um avanço do radicalismo branco heteronormativo que pretende calar toda divergência à sua auto-imagem narcisista e inflada. Isso é imprescindível justamente porque estamos em tempos de ascensão do fascismo tropical do seu Jair.
O uso político excludente, “calaboquismo”
Mas quando pervertemos o “local de fala” para que ele se adeque a uma agenda política de silenciamento da divergência estamos fazendo o que Carl Gustav jung chamou de “enantiodromia”, uma reversão na polaridade de um debate que mantém a mesma estrutura anterior, só mudando o referencial de quem tem o poder específico de silenciar e quem é silenciado.
Quando usamos perversamente o conceito como um “local que cala” toda fala que não seja emitida por alguém que comungue de um mesmo fenótipo (aparência externa) igual ou semelhante à nossa, estamos reduzindo pessoas a estereótipos baseados nas nossas projeções e gerando animosidade entre as pessoas. Na ânsia de não sermos julgados e rotulados por nossas aparências julgamos e rotulamos os outros por suas aparências! O ser humano é um macaco pelado interessantíssimo, vocês hão de convir!
Os cúmplices de Jair
Ninguém gosta de ser silenciado. “Ah, mas eu não quero silenciar ninguém!”. Ok, então, vamos para a esfera dos afetos e sensibilidades: ninguém gosta de se sentir sendo silenciado. Ouvir a todos é trabalhoso e eventualmente vai levar a grandes conflitos, sim. Mas pense agora em todos os brasileiros que elegeram Jair. Em algum momento eles se sentiram representados por esse sujeito, por sua banalização da vida, por suas piadas machistas, por suas posturas homofóbicas, por suas declarações racistas, pelo seu jeitinho de levar vantagem e proteger os filhos mesmo quando estes são claramente criminosos. É muito provável que cada parente ou amigo nosso que furaria a fila do hospital, se pudesse, para nos salvar, tenha votado no Jair. Gente que age por impulso, pensando no ganho imediato, na vantagem momentânea, no resolver o próprio problema. Jair é o reflexo do nosso “jeitinho”, a banda podre da malandragem carioca e brasileira.
Em algum momento algum dos nossos amigos e parentes riu, diminuiu, relativizou ou banalizou essas condutas. E nós – talvez cansados de discutir, nos indispor – nos afastamos, ou julgamos, silenciamos no grupo, deixamos de falar, cortamos contato virtual ou real, tornamos certos assuntos tabus em família, entre amigos, etc. Praticamos aí o “calaboquismo”, a “lacração”, o “cancelamento” que fez com que essas pessoas não vissem em nós, espaços de diálogo. Não vendo espaços de diálogo conosco eles usaram a internet, os fóruns, os grupos, os encontros, os espaços físicos, como vias para encontrar o diálogo ou o monólogo que nós negamos. É no vácuo de empatia da esquerda lacradora que cresce e se alimenta a direita fascista.
Acabando com o nosso conforto
Desculpa, eu sei que estou causando um incômodo dos diabos em falar isso, mas somos co-autores dessa tragédia sim. Ao menos quando desistimos de dialogar. É chato perder o pedestal acima do qual apontamos nossos lacres e lugares que calam, mas é preciso sair um pouco do confortável gueto onde a esquerda purista se subdivide em sub-estratos cada vez mais intolerantes, narcisistas e infantis.
Psicopolítica dos afetos
Por estudar há anos a psicologia analítica procuro dentro da medida do possível, observar os aspectos das questões sociais como simbólicos, como dotados de aspectos visíveis (luz) e aspectos não visíveis (sombra). Por favor me provem com fatos caso acreditem que eu esteja errado, mas vejo claramente que a sombra do identitarismo sectário antipático, intelectualmente narcisista, avesso ao diálogo e pretensioso da esquerda é o identitarismo sectário antipático, afetivamente inflado, obtusamente intelectualóide e pretensioso da direita. Um alimenta e dá motivação ao outro. Os extremos têm uma relação psico-erótica abusiva onde o absurdo de um alimenta e permite os absurdos do outro.
Mecanismos de defesa: Negação, negociação, aceitação etc
Sei que muitos vão dizer que eu estou fazendo uma “falsa simetria” e eu concordaria se eu estivesse falando no campo histórico e político onde a direita tem mais acesso aos meios de produção e propagação de mídia – todo a filosofia sobre o controle dos aparatos estatais e privados de difusão ideológica estudados pelo jovem Marx – do que a esquerda, mas estou falando de possibilidade de diálogo com quem é possível dialogar.
Esquece os extremos! Com os extremos não se dialoga. Mas, cá pra nós? Se você leu até aqui esse texto significa que, no mínimo, você já tem maturidade afetiva para entender que não está nesses extremos. Na melhor das hipóteses você está se movendo para longe da cristalização de um dos extremos. Enfim, foi possível para você ler esse texto que, em linhas gerais, é incômodo para todo mundo.
Então não pense em dialogar com todos os bolsonaristas. Vamos parando com o cômodo lugar de “não é possível falar com todos, não falarei com nenhum”. É possível fingir imaturidade para todos lá fora, você com você já sabe que se leu até aqui é porque já não está mais nessa viagem infantilóide do ego. Você é humano, você acerta e erra e está tudo bem. Então o outro humano também. Não se esconda no “não posso falar com todos”. Ignore “todos”. Fale com quem se proponha. Com quem, nesse mar de absurdos que é o desgoverno Jair, tenha desenvolvido coragem e vergonha na cara suficientes para perceber que somos – todos! – falíveis e estamos – todos – carentes de um exercício real de diálogo e cidadania.
Não se esqueça daquele cabeludão de Nazaré que teve a sensibilidade social de sacar que, quando estamos arrependidos, é mais legal sermos acolhidos do que repreendidos. Afinal, ninguém gosta de ser julgado e o mínimo comum de todas as elocubrações religiosas é tratar aos outros humanos como gostaríamos que eles nos tratassem
RENATO KRESS é antropólogo e cientista político
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