por Eduardo Newton

Apesar de o século XXI se encontrar inserido na fluida pós-modernidade, o Brasil, quiçá pela sua modernidade tardia e pelo fato de o autoritarismo ter permeado todo o seu processo histórico, sequer conseguiu efetivar plenamente o discurso liberal de controle do poder punitivo. Para parcela significativa da população, o ideário de Beccaria é um sonho desfeito diuturnamente pelo exercício do direito penal subterrâneo. Assim, diante da mentalidade hegemônica pode parecer um delírio, mas cada vez mais se mostra necessário pensar e aplicar mecanismos de aprofundamento da humanização do processo penal.
Uma premissa deve ser posta: existe e se encontra em pleno funcionamento um plano de sabotagem ao projeto constitucional de persecução penal. O elevado número de prisões processuais comprova essa assertiva. Logo, ao se pensar em humanização do processo penal brasileiro, se deve remeter a audiência de custódia. É essa a razão para a problematização de uma “nova” função.
Não se mostra necessário realizar uma digressão histórica sobre a implementação da audiência de custódia no Brasil. O que deve ser ressaltado neste texto é o fato de a cúpula do Poder Judiciário, entenda-se Conselho Nacional de Justiça e Supremo Tribunal Federal, ter efetivado Tratados Internacionais cujas normas “hibernavam” por mais de duas décadas. Esse comportamento, no que se refere à audiência de custódia, se encontra em plena sintonia com o pensamento de Nereu José Giacomolli:
“Ademais do filtro constitucional das leis ordinárias, a incorporação de diplomas internacionais protetivos dos direitos humanos, independentemente do seu patamar (materialmente constitucionais – § 2º – ou material e formalmente constitucionais – § 3º), também exige a filtragem convencional de toda a produção e aplicação legislativa interna (controle de convencionalidade).”[i]
É necessário afirmar que existiu, por parte da base do Judiciário, uma visível resistência ao determinado por sua cúpula. Eis mais uma prova de que o discurso liberal não conseguiu atracar nestas paisagens do chamado Novo Mundo. Provavelmente se perdeu no curso da travessia atlântica, pois uma decisão judicial com efeito vinculante proferida pela Alta Corte e um ato normativo emanado pelo órgão de controle foram solenemente descumpridos. No cenário jurídico, o Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro é um dos personagens que demonstra a mais ferrenha renitência em compreender o que é o Estado de Direito, sendo certo que essa assertiva se baseia em uma rápida pesquisa jurisprudencial sobre esse tema no sítio eletrônico do STF. Além desse exemplo, não se pode fechar os olhos para um inusitado fenômeno, qual seja, a indevida assunção do papel legislador por magistrados, o que é materializado por meio de enunciados cuja legitimidade é igual a zero.
Antes mesmo da positivação da audiência de custódia e do veto presidencial ao artigo 3º-B, § 1º, CPP, ocorreu um debate sobre a possibilidade de manejo da videoconferência, que veio a ser motivado por substitutivo ao PLS 554/2011 apresentado pelo então senador Francisco Dornelles que atendia a um pedido da Presidência do TJRJ. Naquele momento, Aury Lopes e Caio Paiva apresentaram duras críticas a essa possibilidade:
“O maior inconveniente desse substitutivo é que ele mata o caráter antropológico, humanitário até, da audiência de custódia. O contato pessoal do preso com o juiz é um ato da maior importância para ambos, especialmente para quem está sofrendo a mais grave das manifestações de poder do Estado (…) É elementar que a distância da virtualidade contribui para uma absurda desumanização do processo penal. É inegável que os níveis de indiferença (e até crueldade) em relação ao outro aumentam muito quando existe uma distância física (virtualidade) entre os atores do ritual judiciário. É muito mais fácil produzir sofrimento sem qualquer culpa quando estamos numa dimensão virtual.”[ii]
A questão é que a humanização do processo penal, quando examinada a audiência de custódia, vai além do contato visual estabelecido entre o preso e os atores jurídicos. A superação da chamada frieza do papel é menos que o mínimo e isso deve ser ressaltado mesmo em um cenário pandêmico. Há de se compreender a existência de uma “nova” função da audiência de custódia, a saber: o acolhimento da pessoa vulnerabilizada e que se encontra privada de sua liberdade ambulatória. Não se está aqui a defender uma postura assistencialista ou paternalista. Longe disso, acolher a pessoa é efetivar seu direito à informação sobre sua situação, sobre as razões do seu aprisionamento, seus direitos e do ato que será realizado. Em uma realidade marcada por um dialeto, o juridiquês, que somente é compreendido pelos iniciados, a nota de culpa[iii], por exemplo, não cumpre com o dever estatal previsto no artigo 7º, item 4, Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o que indica a relevância desse acolhimento. Sobre esse dispositivo convencional e a insuficiência da nota de culpa, as considerações teóricas apresentadas por Flávia Piovesan e Melina Girardi Fachin são imprescindíveis:
“A Corte [Interamericana de Direitos Humanos] já especificou que duas são as garantias veiculadas no art. 7.4 da Convenção Americana: (i) a informação, na forma oral ou escrita, sobre as razões de detenção e (ii) a notificação sobre a acusação, que deve se dar por escrito. Se não houver o repasse de informações de maneira adequada, o indivíduo dispõe de um controle judicial meramente ilusório.”[iv]
Ao ser examinada essa questão pelo prisma do servidor público – policial, delegado, defensor público, promotor de justiça e magistrado – é relevante destacar que se trata de um dever, já que todos esses agentes têm a sua razão de existir na figura do atendimento ao cidadão, devendo-lhe prestar esclarecimentos sobre o exercício do poder estatal. Aos incrédulos sobre essa “nova” função, é relevante destacar o artigo 8º, Resolução nº 213, Conselho Nacional de Justiça que impõe ao magistrado o dever de esclarecimento ao preso sobre o ato judicial. Por sua vez, quanto ao defensor público, subsiste a função institucional de promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico, vide artigo 4º, inciso III, Lei Complementar nº 80/94.
É possível aprofundar ainda mais a dita “nova” função da audiência de custódia,sendo certo que esse acolhimento pode ser compreendido a partir da ideia de cuidado trazida por Leonardo Boff:
“(…) o cuidado se encontra na raiz primeira do ser humano, antes que ele faça qualquer coisa. E, se fizer, ela sempre vem acompanhada de cuidado e imbuída de cuidado. Significa reconhecer o cuidado com um ‘modo-de-ser’ essencial, sempre presente e irredutível à outra realidade anterior. É uma dimensão fontal, originária, ontológica, impossível de ser totalmente desvirtuada.”[v]
Ainda nas palavras de Boff, “sem cuidado, ele [o homem] deixa de ser humano”[vi] e é aqui que se pode falar em uma “nova” função da audiência de custódia. A racionalidade hegemônica, neoliberal, não se preocupa com o cuidado, pois o que interessa são os bens que podem ser adquiridos no mercado. O valor de troca é o único que vale. Não se trata de uma solução mágica, mas de uma tentativa de superar o manejo despudorado do poder, que chega mesmo a neutralizar o autocuidado e, assim, naturaliza o arbítrio. No fétido e precário parlatório, não são poucas as vezes em que o preso agredido não visualiza a gravidade de ter tomado um tapa ou qualquer outra agressão policial. E quanto a essa naturalização, não se pode olvidar para o processo incompleto de cidadania no Brasil, que recebeu o seguinte olhar por parte de José Murilo de Carvalho:
“Finalmente, há os ‘elementos’ do jargão policial, cidadãos de terceira classe. São a grande população marginal das grandes cidades, trabalhadores urbanos e rurais sem carteira assinada, posseiros, empregadas domésticas, biscateiros, camelôs, menores abandonados, mendigos. São quase invariavelmente pardos ou negros, analfabetos, ou com educação fundamental incompleta. Esses ‘elementos’ são parte da comunidade política nacional apenas nominalmente. Na prática, ignoram seus direitos civil ou os têm sistematicamente desrespeitados por outros cidadãos, pelo governo, pela polícia.”[vii]
Essa “nova” função da audiência de custódia se encontra completamente esvaziada em um cenário de completa suspensão do instituto e, por via de consequência, retomada da exclusiva análise do glacial labor da autoridade policial. A pessoa que deve ser acolhida/cuidada – e não por pena, mas por ser algo da natureza humana – é submetida a uma persecução penal própria da obra literária de Kafka. Caso não possua advogado constituído, não saberá quem é seu defensor público, o que, aliás, implica na necessidade de uma urgente autocrítica institucional e não será vergonha assumir o equívoco. Desconhece quem postulará sobre uma eventual prisão preventiva. Ignora o magistrado que decidirá sobre a sua liberdade, bem como sobre o seu futuro. Essa pessoa se encontra em um limbo. Nesse ponto, a realidade necessita se afastar da literatura, sendo certo que essa aproximação atual não se dá pelo amor a arte, mas unicamente pelo desprezo a essa “nova” função.
Esse texto não trouxe nada de novo, é preciso realizar essa confissão e assim responder à pergunta do título. A “nova” função da audiência de custódia se encontra, inclusive, prevista em ato normativo do Conselho Nacional de Justiça e na Lei Orgânica Nacional da Defensoria Pública. A novidade talvez resida na busca de sua efetivação. A privativa análise de autos – físicos ou eletrônicos – de forma remota, ainda que justificada pelo cenário pandêmico, despreza uma função que não foi plenamente compreendida pela comunidade jurídica, até mesmo porque a descartabilidade dos indesejáveis é fomentada pela racionalidade neoliberal. Ainda há tempo de mudar o rumo e observar o norte magnético conferido pela natureza humana. A aproximação com a literatura tem se mostrado trágica, ainda mais quando se considera a existência declarada do Estado de Coisas Inconstitucional do sistema prisional. A sétima arte, mais especificamente a figura de Chaplin em O grande ditador – e como é apropriado ver esse filme no atual momento –, pode auxiliar na descoberta dessa “nova” função. O alerta se mostra mais que apropriado: “Não sois máquinas! Homens é que sois!
Esse texto é dedicado aos meus colegas do I Concurso da Defensoria Pública do estado do São Paulo.
EDUARDO NEWTON é mestre em direito pela UNESA e Defensor Público no estado do Rio de Janeiro/RJ
[i] GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo legal. Abordagem conforme a CF e o Pacto de São José da Costa Rica. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2016. p.29.
[ii]LOPES JÚNIOR, Aury & PAIVA, Caio. Audiência de custódia aponta para a evolução civilizatória do processo penal. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-ago-21/aury-lopes-jr-caio-paiva-evolucao-processo-penal
[iii] Quando da elaboração do esboço deste texto, realizei a asséptica análise de um ato de prisão em flagrante em que a pessoa era informada de ter sido presa em flagrante pelos artigos 140, 147, 150 e 345, todos do Código Penal e artigo 32, § 2º, Lei 9605/98. Apesar de lidar com diariamente com autos de prisão em flagrante, confesso que tive dificuldade em reconhecer alguns tipos. O que se pode esperar da pessoa presa em flagrante?
[iv] PIOVESAN, Flávia & FACHIN, Melina Girardi. Comentários ao artigo 7º. In: PIOVESAN, Flávia; FACHIN, Melina Girardi & MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 92.
[v] BOFF, Leonardo. Saber cuidar. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 38.
[vi] BOFF, Leonardo. Saber cuidar. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 2014. p. 39.
[vii] CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil. O longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. p. 216.
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