ARTIGOS

O vírus da verdade

por Willis Santiago Guerra Filho

“Os espíritos xapiri, que descem das montanhas para brincar na floresta em seus espelhos, fugirão para muito longe.Seus pais, os xamãs, não poderão mais chamá-los e fazê-los dançar para nos proteger.Não serão capazes de espantar as fumaças de epidemia que nos devoram.(…)Então morreremos, um atrás do outro, tanto os brancos quanto nós.Todos os xamãs vão acabar morrendo.Quando não houver mais nenhum deles vivo para sustentar o céu, ele vai desabar.”Davi Kopenawa Yanomami,“

Epígrafe do livro “A Queda do Céu”


O vírus da Covid-19 é apocalíptico, ou seja, literalmente, revelador, e sendo revelador, o que revela é a verdade, também literalmente, em grego clássico, alétheia.

Sim, a verdade, isto do que em geral já se tinha desistido, menos em ambientes religiosos, pois se tornou mais um objeto de crença do que da ciência.

A verdade, afinal, é mesmo ao que damos crédito, no que cremos, sendo portanto um objeto de fé, e “obiecta fidei” constituem, sabidamente, o objeto de estudo da teologia, ressaltando aí, igualmente, nesse “dar crédito”, o componente originariamente jurídico envolvido, a função alética certificadora, cartorial mesmo, do apofântico, fundamento imprescindível de toda convivência humana, impensável sem garantias de co(n)fiança.

É nossa confiança que se encontra agora fundamentalmente abalada, confiança em nosso corpo, nos corpos quaisquer, no contato, que sempre pode ser contágio, mal encontro, mesmo quando nos alegra.

E no entanto não podemos abrir mão dele, pois como diz em manifestação recente Manuel Castells, se é para morrermos, melhor que seja abraçados.​O vírus revelou a verdade do equívoco estrondoso em que e com que se constitui a sociedade mundial, sociedade da comunicação (Niklas Luhmann), sociedade de comunicação que nunca se realiza, que sempre é levada adiante como expectativa de em momento futuro superar as frustações efetivadas no presente, presente que só se suporta com esperança e crença neste melhor futuro, futuro este que agora desaparece, revelando-se a miragem que sempre foi (como consta em tradições sapiênciais antiquíssimas, como aquelas budistas).

Sim, uma ficção coletiva entre tantas, como o Direito, cada vez mais evidentemente falaciosas, mas nas quais insistimos, simplesmente por não sermos capazes de substitui-las, por nos faltar um tal poder, um poder que só a crença na magia confere, o poder dos xamãs, pais e mães de santo, profetas e os assim chamados videntes, a quem Rimbaud em sua célebre carta (do Vidente) convocava os poetas a serem e também caberia convocar os filósofos e juristas a se tornarem também.Desnuda-se pornograficamente o desmonte que se promovia e ainda insiste em promover de um mínimo Estado social aqui em implantação.

Acelera-se assim o filme grotesco que vivíamos e isso deve ser saudado, pois que chegue logo ao fim este horror! A velocidade de disseminação do vírus acelerou ainda mais, muito mais, o já aceleradíssimo ritmo de progressão dessa guerra que a economia da sociedade mundial movia, sem declarar, ocultada por todos os meios e mídias, guerra contra o próprio planeta em que se assenta, seu ecosistema com um todo.

O Welfare State de há muito, não só com o aparecimento e predomínio do neoliberalismo, já mostrava para quem ousasse ver sua verdade, de ser um WARfare State. E agora a guerra está revelada, a verdade do estado de guerra generalizado em que vivíamos e ainda vivemos, uma vida sem sentido, para morrer igualmente, sem sentido: é o permanente estado de exceção, que Walter Benjamin vislumbrou e tão claramente nos anunciou, em seu texto-testamento, “Teses sobre o conceito da história”.

Por fim, ao menos por enquanto, a pandemia revela antes do tempo, antecipadamente, a verdade da digitalização galopante de nossos meios de comunicação, formas de trabalhar e nos relacionarmos, que é o controle de dados e dos seus portadores para assim melhor explorá-los em suposto benefício próprio, isolando-(n)os ainda mais. Eis como se exerce agora mais imediatamente o chamado biopoder, agora biodigital, sendo o soberano, como diz Byung-Chul Han, quem dispõe sobre os dados.

O tema do biopoder e sua centralidade foi suscitado de modo contundente, antes  de todos, como sabemos, por Michel Foucault, tendo na atualidade em Achille Mbembe quem tem mostrado melhor do que ninguém que conheço sua faceta em conexão com o racismo. E o faz em termos como os seguintes: […] racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder, “este velho direito soberano de matar”. Na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornas possíveis as funções assassinas do Estado. Segundo Foucault, essa é “a condição para aceitabilidade do fazer morrer” (Necropolítica. São Paulo, São Paulo: n-1 edições, 2018, p. 18).

WILLIS SANTIAGO GUERRA FILHO é professor universitário; Doutor em Ciência do Direito pela Universidade de Bielefeld, Alemanha; Livre-Docente em Filosofia do Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC); Doutor e Pós-Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Doutor em Comunicação e Semiótica (PUCSP); Doutor em Psicologia Social e Política (PUCSP)

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