por Alberto Sampaio Júnior e Eduardo Newton

Reza a lenda que, após receber a recusa de seu chamado, o Rei da Macedônia teria ido ao encontro de um homem cujos relatos a respeito de um extremo altruísmo e temperança o faziam invejá-lo. Era um dia ensolarado em Corinto. Ao se aproximar daquele indivíduo jogado ao chão, Alexandre, o Grande, tão logo ao anúncio de sua presença, ouviu: “e eu sou Diógenes, o Cão”. Ainda de acordo com a anedota narrada por Plutarco, Alexandre Magno, entusiasmado com tamanha indolência que acabara de presenciar, ofereceu a Diógenes a possibilidade de realização de qualquer desejo, mencionando o vasto poder do Império. Incomodado com a sombra que o corpo de Alexandre fazia aos seus olhos, Diógenes, nu e desprovido de quaisquer bens materiais, respondeu: “Apenas não me retire aquilo que não me podes me dar”. A partir da leitura dessa narrativa, percebe-se que, mesmo passados vinte e três séculos de sua morte (323 a.C.), a maneira de viver e de se posicionar diante a determinadas convenções sociais, apresentando ao mundo um conjunto de convicções e um estilo de vida que se convencionou chamar de Filosofia do Cinismo, fazem de Diógenes de Sinope uma figura importante para a compreensão acerca da necessária ruptura de sistemas irreparáveis, a exemplo do famigerado sistema de justiça criminal brasileiro.
O Cinismo
Em que pese a maioria dos pesquisadores atribua a Antístenes (445 – 365 a.C.) a fundação do movimento cínico, sendo considerado o “primeiro cão”, é a Diógenes que se atribui a autenticidade do movimento, elevando-o à expoência do Cinismo. Diógenes representa, sem qualquer questionamento, um dos grandes nomes da filosofia antiga e que repercutiu até mesmo na modernidade.
Em tempo, deve-se esclarecer que, muito embora o objetivo deste breve texto não seja uma ampla exposição a respeito do Cinismo atribuído a Diógenes, alguns apontamentos se fazem pertinente, a fim de viabilizar a devida compreensão acerca do valor semântico dos vocábulos cínico e cinismo, evitando, por exemplo, confusões entre o sentido clássico ligado à postura filosófica e o atual uso pejorativa do termo – afinal, sem o conhecimento acerca das características do Cinismo e da distinção entre vocábulos, ninguém se sentiria elogiado ao ser chamado de cínico. Mas, afinal, o que é isto – o Cinismo?
Sabe-se que o Cinismo guarda estreita relação com o Iluminismo. Ideias como liberdade de preconceitos e a crítica aberta a autoridade seculares e religiosas[i][1], bem como a constante crítica à desigualdade das relações sociais, marcam essa relação. Sob a mesma efervescência política de pensamento, o adjetivo cínico passou a ser utilizada de forma sarcástica pelo movimento anti-iluminismo, tornando-o um termo ofensivo. E não apenas. O termo cínico acabou por ser vulgarizar por uma só de suas definições que se relaciona com o teatro, isto é, “personagem-tipo que representa o indivíduo sem escrúpulos, hipócrita, sarcástico e oportunista”[ii]. Despreza-se, assim, a figura do cão (kynos), que deu origem ao vocábulo cinismo. E por que o cão? Diógenes entendia que este animal não se utilizava de expedientes para esconder o seu real estado de espírito tampouco se vinculava as convenções sociais vigentes para se saciar.
Todavia, não se pode entender o cinismo como um modo de ser hedonista, mesmo diante de comportamentos de Diógenes que indicassem a sua completa falta de pudor. O mais famoso cínico sustentava a relevância da disciplina para a obtenção da total liberdade, que somente por ela seria possível suportar qualquer percalço e assim se obter a verdadeira felicidade. Diga-se ainda mais: a partir de uma real preocupação com a prática em si, e não com especulações teóricas, o Cão agia em conformidade com sua retórica, apontando que ser feliz dependia de poucos bens materiais.
Distante de ser um conjunto sistematizado de ideias ou teorias, o Cinismo é, antes, uma prática de vida que visa o distanciamento de preconceitos e práticas socialmente mecanizadas, isto é, acríticas. O cínico representa, em síntese, uma personalidade livre, autossuficiente e independente.
Ainda a respeito de figura de Diógenes, o Cão, dois tópicos ainda merecem ser desenvolvidos, mesmo que sucintamente. O primeiro consiste em um trecho de sua biografia, mais especificamente a razão de ter saído de Sinope para Atenas. O seu exílio teria se dado supostamente por participar em empreitada de falsificação de moeda. Resta comprovado que seu pai, Hicésio, seria um banqueiro, o que torna plausível esse dado. Daí, surgem relatos que, após seu banimento, Diógenes teria buscado amparo dos deuses e então ouvido que seu papel seria o desfigurar a moeda em Atenas. O Cão entendeu que se tratava de uma figura de linguagem e então deveria desnudar os vícios de uma sociedade que se mostrava cada vez mais desigual.
O segundo tema importantíssimo consiste em um conceito, parresía (παρρησία), muito caro para o movimento cínico:
“Seu significado não é difícil de compreender, tanto mais que muitas ações de Diógenes o exemplificam. A expressão é geralmente traduzida como ‘liberdade de expressão’, mas seu significado grego é mais preciso. Ele inclui duas palavras (…) o que quer dizer, respectivamente, ‘tudo’ e ‘expressão’ ou ‘fala’. Assim, significa literalmente ‘o tipo de expressão pela qual dizemos tudo’ – sem ambiguidades, sem eufemismos, sem significados ocultos, sem nuances de linguagem enganadoras e, sobretudo, sem a intenção de velar linguisticamente o jeito de as coisas serem. Como afirmou certa feita um cínico, pela ‘parrhesia’ ‘vomitamos toda verdade’, nem mais nem menos.”[iii]
É claro que há quem discorde de um enaltecimento de Diógenes e, por sua vez, de todo o movimento por ele iniciado. E essa postura crítica é observada já em Platão, que denominava o Cão de o Sócrates enlouquecido. Certamente as críticas se direcionavam não ao conteúdo da fala, mas si a maneira como se expressava. Disso decorre a importância da parresía. Michel Foucault acreditava que o ápice do que a Filosofia pode conceder ao homem é a parresía, vez que demonstra o comprometimento do filósofo com a verdade, por uma questão de princípio, sem relativizações, ou seja, dizer a verdade, sempre, por inteiro. Oscar Wilde, citado por Navia, afirma ser o Cinismo a arte de ver as coisas como são e não como deveriam ser – é chamar as coisas pelo nome certo[iv].
Um vez feito um sintética abordagem a respeito do legado filosófico do homem que vivia em um barril de vinho e não temia nem mesmo o homem mais poderoso de sua época – Alexandre, o Grande – propõe-se uma verdadeira viagem temporal de mais de dois milênios e aportamos em um país chamado Brasil.
O Brasil do encarceramento em massa
No cenário jurídico e no imaginário coletivo, o transcurso de um curto lapso temporal – pouco mais de meio século – se mostrou excessivamente cruel com a defesa criminal. Àquela época, os grandes nomes eram os defensores que, de maneira corajosa, literalmente enfrentavam o regime político opressivo então instituído.
A queda da ditadura civil-militar teve seu marco derradeiro com a promulgação do Texto Constitucional de 1988. Enfim, chegava à democracia tão sonhada por muitos. Mas, mesmo após o decorrer de mais de 3 décadas não representou mudanças significativas no modo em que se desenvolve a persecução penal. E isso se compreende por uma razão “bem simples”: a permanência, ou melhor, o aprofundamento da mentalidade autoritária em toda sociedade, o que não deixou imune a comunidade jurídica, vide os apoios explícitos ao golpe de 2016 ou mesmo àquele que demonstra atualmente a total falta de preparo para o exercício da função presidencial.
Não obstante, mesmo diante do fracasso do caráter preventivo da pena (especial e geral), parcela significativa da sociedade continua a atribuir à privação de liberdade o meio adequado para a implementação satisfatória daquilo que convencionou chamar de segurança pública. No entanto, os números demostram o fracasso da expansão da repressão penal enquanto tutor da sociedade. De acordo com estatísticas do Conselho Nacional de Justiça, o Brasil alcançou o terceiro lugar no ranking mundial de população carcerária, abaixo apenas do Estados Unidos e da China. Em contrapartida, os acentuados números de homicídios pelo Brasil demonstram a ausência de relação entre o expansionismo penal e a diminuição da violência urbana. A propósito, alguns entusiastas do famigerado mito da “bandidolatria” atribuem ao excesso de direito e de garantias fundamentais o aumento da violência. Entretanto, sem a necessidade de nos reportarmos a instrumentos hermenêuticos sofisticados, percebe-se que o falacioso argumento desses tolos não suporta poucos segundo de crítica. Ora, se considerarmos válido o cerne do argumento levantado no âmbito do referido mito, poderíamos concluir que regiões cujos índices de homicídios são elevados, a exemplo do bairro de Santa Cruz – RJ, ostentam elevada presença de direitos e de garantias fundamentais, o que não é verdade. Sob o mesmo argumento, regiões a exemplo do bairro do Leblon, área nobre da capital carioca, com baixíssimos índices de homicídios, são desprovidas das mesmas garantias constitucionais.
No plano legislativo e político, medidas importantes para o desaceleramento do aumento da população carcerário se mostraram infrutíferas, a exemplo da edição da Lei n.º 12.403/2011, que, dentre algumas inovações, ampliou medidas alternativas ao cautelares, e a tardia implementação das audiências de custódia, no ano de 2015. Vejam: em 2001, o PL n.º 4.208 visava justamente estancar o uso indiscriminado da prisão cautelar. À época havia 233.859 presos, dentre os quais 75.000 eram provisórios. Dez anos depois, o número de pessoas privadas de liberdade alcançava a marca de 514.000 presos, e continua a crescer, mesmo com a vigência da referida lei processual. A propósito, a desconfiança da Comissão de Juristas que participou do aludido PL nutria desconfiança em desfavor das expressões “garantia da ordem pública” e “garantia da ordem econômica”, uma vez que tais condições à decretação da prisão preventiva padecem de anemia semântica. O restante da tragédia tupiniquim todos conhecem: mentalidade autoritária, solipsismo e prisões – muitas prisões!
Assinalamos, ainda, que, tal como na Grécia Antiga, a sociedade brasileira é marcada por extrema desigualdade social. Uma minoria desfruta de nababescas condições e se preocupa somente com a economia enquanto que a maioria é entregue a própria sorte e somente é lembrada no momento de arcar com a estatização dos prejuízos da elite.
A desfiguração da moeda e o constrangimento cínico
A questão que se impõe é a necessidade de “desfigurar a moeda” que é utilizada no processo penal. Apesar das instruções constitucionais, a verdade é que as decisões são concebidas a partir de manuais próprios e muitas vezes desconhecidos. Não se despreza o fato de que o processo penal pode ser entendido como um jogo (tétrico, de acordo com o STF que reconheceu o Estado de Coisas Inconstitucional), tal como Alexandre Morais da Rosa e Johan Huizinga indicam. Todavia, a defesa – pública ou privada – necessita ter a coragem para se manifestar contrariamente aos cunhadores de decisões e que se mostram infiéis à Constituição.
Certamente, há um preço a ser pago por essa postura e que pode, inclusive, desdobrar para o defendido/cliente. Contudo, esse risco, desde que informado ao réu, é a prova da liberdade total e do reconhecimento de que a mentalidade autoritária somente será vencida com a combinação da pesquisa acadêmica – o que já é feito pelo país afora – e com a coragem do defensor.
Frisamos que a questão da parresía na defesa criminal guarda, apesar de referencias teóricos distintos, muita semelhança com o conceito de constrangimento epistemológico defendido por Lenio Streck.
Ao caminharmos para conclusão, nos deparamos com Diderot. Um gênio da modernidade, o que é inegável. Porém, quiçá em um ato da estupidez de dois filhotes de cão, ousamos a divergir do que ele afirmava a respeito do cínico, tal como narrado por Luis Navia: “(…) alguém poderia escolher tornar-se um filósofo acadêmico ou eclético, ou cirenaico, ou pirronista, ou cético, mas cínico tem de ser nato.”[v]
E essa ousadia – ou estupidez – vem com o pensamento contra-hegemônico, vem de uma voz do Sul nesse planeta cada vez mais marcado pelas fissuras provocadas por um capitalismo predatório. Eduardo Galeano afirmava que cada ser humano seria uma fogueira e as descreve vistas do céu:
“Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo.”[vi]
Diógenes incendiou e incendeia a vida de todos aqueles que travam contato com seu pensamento, ou melhor, com sua maneira de viver; logo, ao contrário do enciclopedista, não é preciso nascer cínico para se encantar com sua proposta para o alcance da Eudaimonia e não temer a verdade.
Mas, afinal, como Diógenes poderia nos inspirar?
Certamente as mentes inquietas ainda estão a se questionar a relação temática entre o legado de Diógenes, o Cão, e a tradição autoritária brasileira. Compreensível. Talvez para a decepção de alguns, esta breves linhas reflexivas não pretendem, assim como o Cinismo, apresentar postulações teóricas ou qualquer sistematização de conhecimento. Não é o objetivo, e sequer poderia ser. O Cinismo se manifesta sempre a partir de uma ruptura, opondo-se aos sistemas que o adepto julga irreparáveis, com a capacidade de penetrar além da aparência das coisas. É bem verdade, aliás, que tal característica não esgota a totalidade do fenômeno filosófico. Indicamos apenas um recorte, acentuando alguns dos cernes da maneira cínica de responder ao mundo: liberdade alcançada a partir de excepcional lucidez ou olhar intelectual para reconhecer determinados enganos.[vii]
Sendo assim, cientes de que a tradição autoritária ainda é um dos fatores que impede e distancia o alinhamento do Brasil aos ideais de um Estado Democrático de Direito, cujo tronco axiológico é a dignidade da pessoa humana, o espírito combativo presente no Cinismo vivido por Diógenes é essencial para uma efetiva oposição ao atual sistema de [in]justiça criminal. Precisamos aperfeiçoar a parresía. É preciso dizer a verdade por inteiro, em quaisquer circunstâncias, seja na audiência de custódia, seja nas alegações finais orais. Evidentemente, não se trata de qualquer verdade. É a verdade que ora ousamos remeter à Constituição. É preciso ridicularizar o solipsismo jurídico. Assim como Diógenes, não nos curvemos diante de “imperadores”. Os defensores necessitam perambular pelos assépticos corredores de majestosos prédios que se chamam Palácios da Justiça e, com suas lanternas, inquirirem cada pessoa que encontrar se conhecem um ser humano justo ou, o mais importante, alguma prisão legal. Quiçá com o humor, questionar a serventia do reconhecimento de Estado de Coisas Inconstitucional do sistema prisional, pois se há não é capaz de assegurar direitos mínimos como ainda se pode enjaular pessoas. Diante de estátuas de bronze que supostamente representa a Deusa da Justiça, pedir, quem sabe como esmola, que a parcela hegemônica da comunidade jurídica se afaste do caminho fácil do aprisionamento, já que ele representa somente dor. Constranger magistrados, no sentido de que eles se sintam responsáveis pelo mal que representa o cárcere, ainda mais quando banalizado.
Para essa missão, devemos apurar a intelectualidade. Afastemo-nos das simplificações ordinárias ou de divagações que não se mostram próprias para a realidade brasileira, que seja denunciado a colonialidade do saber. Livrarias não podem fechar. Assopremos, portanto, as brasas que ainda circulam por meio do pensamento de Diógenes, mesmo que minúsculas, a fim de que reaqueçam, pois certamente veremos defesa menos receosas, mais libertárias, ou seja, defesas verdadeiramente cínicas.
ALBERTO SAMPAIO JR. é músico, gosta de Adoniran Barbosa, advoga apenas para saciar a concupiscência de sua alma. É um cínico em construção
EDUARDO NEWTON é mestre em direito pela UNESA, Defensor Público no estado do Rio de Janeiro/RJ, pai do Guilherme e do Miguel e tido como calo no sapato de mentes autoritárias. É frequentemente vítima do lawfare
[1] NIEHUES-PRÖBSTING, Heinrich. “A recepção moderna do cinismo. Diógenes no Iluminismo.” Texto integrante do livro “The Cynics – The Cynic Movement in Antiquity and its Legacy”, traduzido por Cecília Camargo Bartalpti. EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2007, p. 362.
[i] NIEHUES-PRÖBSTING, Heinrich. “A recepção moderna do cinismo. Diógenes no Iluminismo.” Texto integrante do livro “The Cynics – The Cynic Movement in Antiquity and its Legacy”, traduzido por Cecília Camargo Bartalpti. EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2007, p. 362
[ii] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. P.407.
[iii] NAVIA, Luis E. Diógenes, o Cínico. São Paulo: Odysseus Editora, 2009. pp. 208-209.
[iv] NAVIA, Luis E. Diógenes, o Cínico. São Paulo: Odysseus Editora, 2009.p. 12
[v] NAVIA, Luis E. Diógenes, o Cínico. São Paulo: Odysseus Editora, 2009. p. 21
[vi] GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: 2016. p. 13
[vii]NAVIA, Luis E. Diógenes, o Cínico. São Paulo: Odysseus Editora, 2009, p. 119.
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