ARTIGOS

Carta aBertha

por Mariana Anconi

Arte extraída da Revista Cult, por Andreia Freire

Querida Bertha Pappenheim,

Estes dias não têm sido fáceis. Estamos vivendo um período de muitas incertezas e crises. Sei que você passou por momentos complicados também, desde o adoecimento de seu pai. Aliás, você esteve com ele nos momentos finais e ainda adoeceu junto, quando então foi encaminhada ao Dr. Breuer. O fato de você ser considerada por muitos a paciente inaugural da psicanálise, mesmo não sendo paciente de Freud, faz um resgate ao percurso de estudos sobre a histeria nesse momento.

Na sua época, a histeria era considerada por muitos, inclusive médicos, uma cena teatral, eliminando o aspecto de sofrimento do quadro clínico. Você teve muitos sintomas graves e, por não terem uma etiologia bem definida, muitos consideraram um drama, exagero.

Olha, essa associação entre histeria e exagero continua até hoje, acredita? Os canalhas usam e abusam desse termo para diminuir a angústia e sofrimento de muitas pessoas.

Além dos canalhas, estamos tendo que lidar com uma epidemia que vai deixando um rastro mortífero nos países que passa. Uma situação que nem a geração dos meus pais viveu. Se trata de um vírus que, mesmo em seu caráter “invisível”, tem deixado à vista uma certa podridão que já existia e ninguém queria ver. Deixou às vistas as falhas de sistemas de saúde de vários países e, ainda, revelou um lado obscuro daqueles que não se incomodaram com a ideia (equivocada) de que o vírus apenas sacrificaria os velhos.

Aquela sua pergunta “é uma tragédia ou uma dádiva estar velho e envelhecer?” tem ressonâncias hoje neste contexto que, teoricamente, nada teria a ver com a Belle Époque vienense. A sua pergunta perdura no tempo.

Lembro agora que as perguntas têm um papel importante na história da psicanálise. Che Vuoi? O que queres? O que quer uma mulher?… Elas abrem para o novo e para a invenção.

Tenho pensado que questionar e construir críticas são ações cada vez mais evitadas nos tempos de hoje. Eu não sei como as pessoas querem estar “à altura de seu tempo” sem estabelecer uma crítica aos mestres e suas teorias. E veja, alguns esquecem que criticar não significa destruir, mas sim criar possibilidades a partir disso.

Você questionou e fez furo no discurso do mestre quando interrompeu a hipnose praticada por Breuer em você e, só assim, pôde falar e ser ouvida, como você nomeou de “talking cure” (cura pela fala). Desse seu ato inventivo, Breuer aprendeu com você. Aliás, qual analista não aprende algo com seu paciente?

Falando em mestres, lembrei de uma série que recentemente foi lançada, chamada Freud (sim, ele continua pop). Mesmo você não tendo contato com Freud, certamente lembra dele, cuja esposa era sua amiga.

Sobre a série, você encontra muitas resenhas na internet, mas teve algo que me chamou atenção: a reação de alguns colegas psicanalistas. Muitos deles se sentiram ofendidos, ficaram indignados com a imagem de Freud na série de ficção. Surgiu uma preocupação com o que iriam pensar do pai da psicanálise e, consequentemente, da psicanálise. Fiquei me perguntando se isso não revelou o desejo por um mestre intocável, onipotente, sem falhas, que refletiria na imagem ideal dos psicanalistas.

Se as pessoas se sentem ofendidas com as caricaturas que fazem de seus mestres, o que as diferencia dos seguidores religiosos?

Ah, mas o fantasma da religião é algo que ronda a Psicanálise de tempos em tempos. Você não chegou a conhecer, mas existiu um psicanalista francês, Jacques Lacan, que se preocupou muito com os rumos da psicanálise. Ele inclusive foi expulso da sociedade psicanalítica francesa. Se considerou “excomungado”. Usou esse termo não à toa, revelando o teor religioso da expulsão. Se viu no lugar do herege. No seminário que proferiu após sua expulsão, iniciou uma tentativa de fundamentar os conceitos da psicanálise, assim como a ciência faz com seus conceitos, justamente pensando no futuro, tentando evitar que a psicanálise se tornasse igreja.

Ele não foi o único. Melanie Klein, psicanalista inglesa extraordinária, também foi ameaçada de ser expulsa, mas evitou sair, e propôs um trabalho em um congresso da IPA (International Psychoanalytical Association) para “se redimir”. Cada um escolhe a saída que pode, certo? Alguns saem excomungados, outros saem perdoados.

Bertha, outro motivo, e último, para escrever esta carta, está relacionado a outra carta aberta. Esta madrugada despertei várias vezes lembrando de trechos dela escritos por um pequeno grupo de psicanalistas.

Na carta há uma dúvida na aposta ao trabalho analítico nesta situação de urgência e crise no mundo. Penso que enfraquecem a potência da função de escuta da angústia nas urgências subjetivas atuais. Angústia que, mesmo atrelada ao discurso social, revela também particularidades do sujeito. O analista escuta esta particularidade. É como disse uma colega esses dias: “talvez devamos ao menos reconhecer a atitude honesta do grupo em questão de, através de uma carta aberta, atestar sua própria impotência.”

O que você pensaria disso hoje, Bertha?

Te escrevo tudo isso, porque de alguma forma esta carta está relacionada à sua história. Hoje há uma repetição de cenas que devem ser colocadas em questão, assim como você fez até os últimos dias de sua vida.

Yours, Mariana Anconi.

MARIANA ANCONI é psicóloga, psicanalista e mestre pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP)

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