por Fernando Jaepelt

não sei como começar essa carta, então começo assim mesmo, dizendo que não sei como. e também me pergunto, como estará você que passa certo tempo sozinho em casa. estará suportando e, quem sabe, na melhor das hipóteses, aproveitando sua própria presença? e se você estiver com alguém, está com quem gostaria de estar?
existe um vírus por aí se reproduzindo, assim como a estupidez humana. não sei qual é mais contagioso. há quem prefira acreditar em discursos fantasiosos, de negação da realidade, caminhos aparentemente mais fáceis e, certamente, mais mortíferos. mas não é esse o tema da minha carta, ao menos não diretamente. e quanto ao destino da carta, bom, ela é destinada aos que se interessam pela arte de pensar na solidão, e sobretudo aos que encontram alguma dificuldade no estilo de vida que se impõe durante essa pandemia.
ufa, acho que comecei a carta. e acho que escorreguei por um momento numa necessidade irremediável de mencionar um assunto incômodo. uma feridinha no céu da boca, latejando à revelia da minha vontade. mas já passei a língua na ferida e juro que tentarei não voltar a ela. a essa altura você deve se perguntar “que diabos esse cara está dizendo, sobre o que ele pretende falar afinal de contas”. e com razão, então chega de lero-lero.
por coincidência pouco antes do início desse pandemônio estive no sebo, lugar delicioso para manhãs de sábado. estou lá encarando uma estante com os olhos aflitos de felicidade, passando por vários títulos, quando um deles me captura de imediato: Sobre a brevidade da vida, livro de Lúcio Anneo Sêneca (4 a.C?- 65 d.C). esse tema da passagem do tempo e do que fazemos com nossas vidas, ah, esse tema. a morte, a finitude, a necessidade de saborear cada segundo, ah, esse tema. sinto-me até vibrante agora, porque acho que vou entrar no que quero dizer. você aí deve estar sentindo uma pitada da minha alegria, do meu êxtase e da minha eterna incerteza pulsante. então comemore comigo, tin-tin…
pois bem, o livro consiste numa série de cartas de Sêneca a Paulino, todas repletas de pensamentos sobre o modo como as pessoas desperdiçam suas vidas, e de elogios ao ócio. o livro é pequeno e breve como o nome sugere, mas todas as páginas são suculentas em matéria de reflexão, nenhum parágrafo é desperdiçado com falas vazias. seu formato anda de mãos dadas com a mensagem que transmite, isto é, por menos páginas que se tenha e menos palavras que se diga, que cada palavra e cada página marquem presença, que cada parágrafo escrito valha a pena ser lido.
como eu sei que você aí confinado em casa vai ler o livro, não preciso citar tudo que me chamou atenção, vou mostrar pouquíssimo aqui, tipo esse parágrafo-soco-na-boca-do-estômago:
“Nenhum homem sábio deixará de se espantar com a cegueira do espírito humano. Ninguém permite que sua propriedade seja invadida, e, havendo discórdia quanto aos limites, por menor que seja, os homens pegam em pedras e armas. No entanto, permitem que outros invadam suas vidas de tal modo que eles próprios conduzem seus invasores a isso. Não se encontra ninguém que queira dividir sua riqueza, mas a vida é distribuída entre muitos! São econômicos na preservação de seu patrimônio, mas desperdiçam o tempo, a única coisa que justificaria a avareza.”
imagino que você já tenha visto mil exemplos desse trecho, e quem sabe até seja o seu caso, espero que não. já vi pessoas de seus quarenta e muitos anos, e rugas e cabelos brancos na cabeça, brigando por pedaços de terra e até por um abacaxi. já vi casais infelizes mantendo casamentos cinzentos durante anos, alegando medo da solidão, da separação de bens, da reclamação dos filhos, das opiniões sociais. é espantoso. há os que fazem questão de ocupar suas preciosas agendas com atividades que nada significam, e pessoas com as quais nem mesmo gostam de conversar ou transar. não permitem que suas terras sejam invadidas, mas mantém invasores em suas vidas íntimas até a morte.
a correria cotidiana segue devorando a vida, restando apenas uma existência empobrecida, pautada no desempenho automático de tarefas. acorda come dirige bate cartão produz produz produz vai pra casa assiste séries come dorme. e depois de novo e de novo. eu sei, eu sei, falando assim a leitura fica maçante, pois até as frases que nomeiam essa rotina carecem de beleza. mas é assim o dia-a-dia de muitos. pensemos em alguém cuja mente permaneça ocupada com tarefas e problemas burocráticos, conversas familiares de protocolo, piadinhas óbvias, comentários superficiais sobre assuntos mecânicos. e o dia se encerra nisso, sem algo essencial que fica de fora. e o que seria esse essencial. então… a resposta não vem assim pronta.
seria preciso parar e pensar mergulhando em devaneios, abrir a janela como estou fazendo agora. a lua lambe meu olhar de mansinho, a brisa faz cócegas frescas em meus pulmões. a cidade agora fantasmagórica me faz pensar onde quero estar. o vazio quase vivo na luz do poste me sugere com quem. ou não. a paisagem nada diz e nem faz questão da minha presença, quem elabora tudo isso sou eu, com minha máquina pensante defeituosa que não se contenta em apenas funcionar. há um vazio no meio da existência, assustador para muitos. um oco que faz eco nos finaizinhos de tarde, na hora de ninguém, aquele instante azulado em que as luzes dos postes começam a acender e eu me imagino num ônibus distraído nos anos oitenta, ouvindo música pop tuts-tuts.
pode parecer estranho do jeito que coloquei, então vou pôr em outras palavras. eu falo da importância de entrar em contato com essa coisa. essa coisa que apenas surge na solidão, começa sendo o desejo de algo que não se sabe o que, depois vai se transformando em perguntas mais elaboradas e por fim ajuda a desenhar respostas, íntimas e singulares. é algo que se pode alcançar em várias circunstâncias, inclusive no ócio de uma quarentena. são experiências de contato com a verdade de si. e se você não tem o privilégio de alguns momentos sozinho, pode começar a procurar.
ops, acho que é quase hora de acabar a carta, mas seria tão ridículo assim de repente. lastimável, não sabia como começar e sei menos ainda como pôr fim. como dizia alguém num antigo programa de TV, macacos me mordam. é apenas uma carta e eu falei brevemente do vazio e da solidão produtiva lançada aos devaneios. talvez sirva a você que quer pensar no isolamento. ou nas companhias que tem, nas que gostaria de ter. dá pra pensar em várias direções, especialmente qual é a sua. mas ainda preciso encerrar aqui, e nem quero me despedir mas estou querendo ao mesmo tempo. ahh… já sei. ficou faltando mais uma citação do livro, pra plantar bem em você a vontade de não jogar a vida no lixo:
“Faz a conta dos dias de tua vida, perceberás que poucos restaram para ti mesmo. Tendo aquele conseguido os cargos com os quais sonhava, deseja largá-los e repete sem cansar: “Quando este ano passará?”. (…) Não julgues que alguém viveu muito por causa de suas rugas e cabelos brancos: ele não viveu muito, apenas existiu por muito tempo. Julgas que navegou muito aquele que, tendo se afastado do porto, foi pego por violenta tempestade e, errante, ficou à mercê dos ventos, ao capricho dos furacões, sem, no entanto, sair do lugar? Ele não navegou muito, apenas foi muito acossado.”
você aí, talvez sozinho, lendo essa carta e pensando comigo já deve ter se tocado: a grandeza da vida não reside em sua duração, mas no que fazemos ao longo dela. mas os velhos costumam reclamar, à beira da morte, que o tempo passou muito rápido. não só os velhos. caralho, todo mundo diz isso e nem eu escapo… não só no fim da vida mas no fim de qualquer coisa. todo ano repetidamente a cada ano se fala nossa como o tempo passa cada vez mais rápido tão assustadoramente rápido tão absurdamente que nem dá tempo de colocar as vírgulas até que vem o ponto final e fim deu acabou.
um abraço,
FERNANDO JAEPELT é psicólogo e especializando em psicanálise (HSC/UNIFEBE)
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