por Paulo Ferrareze Filho e Victor Vernes

Para Jung, discípulo dissidente de Freud, a mitologia exerce um papel fundamental para conhecer o psiquismo. Isso porque ela observa os mitos como narrativas que comunicam dramas psíquicos de caráter arquetípico. Assim, em razão dessa constituição arquetípica, tais dramas tendem a repetir-se em diferentes épocas e geografias do mundo.
Em tempos de coronavírus, um reexame das narrativas apocalípticas e pestilentas pode ter algo a nos dizer. Seja sobre nossas sombras coletivas, seja sobre nossa lucidez, única capaz de nos tornar aptos a enfrentar a crise e a sair dela com o menor número de danos, ou seja, de mortos.
Entre tantas, a narrativa mitológica da Arca de Noé, presente na bíblia cristã, talvez seja a mais compreensível do grande público ocidental, dado o caráter pop do cristianismo por aqui.
No mito da Arca, Noé é avisado por Deus sobre a chegada do grande dilúvio e a destruição iminente da fauna e da flora. Ante o risco de extinção de todas as espécies vivas da Terra, como é sabido, Noé é intimado por Deus a construir uma grande arca para salvar as espécies.
Se mitos contam verdades psíquicas, é preciso sublinhar um aspecto central que aparece logo no início da narrativa de Noé.
Isso porque, Noé, inicialmente, nega-se à missão requisitada por Deus, alegando que não quer mais que proteger sua própria família. Como sói acontecer nas narrativas heróicas, o herói sempre resiste ao chamado, teima em aceitar a missão.
No entanto, a mensagem do mito é clara: para enfrentar a crise do dilúvio, é necessário escapar das preocupações privadas da família e atender as demandas públicas, da comunidade. É porque aceita assumir a demanda pública que Noé é capaz de salvar as espécies e a si mesmo do dilúvio.
O dilúvio, agora, atende pelo nome de coronavírus. E, se Jung estiver com razão, não será atendendo interesses pessoais antes dos coletivos que vamos enfrentar essa crise com inteligência.
Aliás, cada vez que duvidamos da ciência, é isso que nos falta: inteligência. Se a OMS, os médicos sanitaristas e a ciência nos indicam a quarentena absoluta de todos os que não estão envolvidos com os serviços essenciais, a fim de evitar o colapso do sistema público de saúde, por que haveremos nós, que não estudamos o assunto, de contrariá-los?
A história é prenhe de situações em que a má-fé busca fazer da ignorância o seu exército no front da batalha. Nesse enrosco em que estamos metidos, mesmo ante a lucidez da ciência, a má-fé dos mercados e dos empresários, em sua faceta mais cruel, egoísta e mortífera, segue a sanha de arrebanhar ignorantes. Serão os ignorantes que irão para a linha de frente. Serão os ignorantes que morrerão e que farão morrer. Como disse magistralmente Vladimir Safatle, empresários não choram, apenas fazem contas. Boa sorte aos desavisados e aos teimosos.
VICTOR VERNES é médico psiquiatra transpessoal e psicanalista em formação
PAULO FERRAREZE FILHO é professor de psicologia jurídica e psicanalista em formação
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