ARTIGOS

Quem deu, deu. Que não deu, não Damares: a distopia do carnaval no Brasil

por Roberta Oliveira Lima

arte: Justificando

“Júlia começou a especular sobre o assunto. Com ela, tudo sempre ia dar em sua própria sexualidade. Assim que essa questão era abordada de alguma forma, ela demonstrava uma grande perspicácia. Diferentemente de Winston, entendera o significado profundo do puritanismo sexual do partido. Não era apenas que o instinto sexual criasse um mundo próprio fora do controle do Partido – um instinto que, por isso, se possível, tinha de ser destruído. O mais importante era que a privação sexual levava à histeria, desejável porque podia ser transformada em fervor guerreiro e veneração ao líder (…) se você está feliz na própria pele, por que se excitar com esse negócio de Grande Irmão, Planos Trienais, Dois minutos de ódio e todo o resto da besteirada?” Orwell, George, 1984, p. 161)

A ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, promove um seminário nesta sexta-feira, 6, para prevenir a gravidez entre crianças e adolescentes utilizando como método contraceptivo a abstinência sexual. Entre os convidados, estão a CEO da Ascend, Mary Anne Mosack, e o pastor Nelson Junior, idealizador da associação cristã Eu Escolhi Esperar. O evento é uma preparação para a Semana Internacional de Prevenção da Gravidez na Adolescência, que ocorre no início de fevereiro. Damares já tinha defendido a abstinência em junho deste ano. (…) a ministra afirmou que tal método evitaria a transmissão de doenças sexuais, como o HIV. “Se eu retardo [em] um ano o início da relação sexual dessa menina, eu posso salvar a vida dela”, disse a ministra. (Veja, 2019: https://veja.abril.com.br/politica/damares-promove-seminario-sobre-abstinencia-sexual-na-adolescencia/ )

 O pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, disse discordar da proposta da ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) de incluir a iniciação sexual tardia como política pública para prevenir a gravidez na adolescência. “Não acho que isso é um assunto de política pública, de Estado. É um assunto de consciência de família, de instruir nossos adolescentes e jovens de que na vida tudo tem uma hora e um tempo”, (…) Para ele, ensinar educação sexual na escola não é o melhor caminho porque as instituições estão “infestadas de esquerdopatas”. “Não querem ensinar sobre sexo, querem ensinar sobre ideologia, querem dizer que menino pode transar com meninoAí começa a bandidagem e a vagabundagem.”… (https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/01/22/malafaia-abstinencia-sexual.htm?cmpid=copiaecola)

*

Farei uma breve análise discursiva dos textos acima. Inicialmente, lembro que fevereiro está chegando e, habitualmente, essa é a época da chegada do Carnaval. A novidade do presente ano é que temos inserida uma nova política pública em matéria de educação baseada na abstinência sexual.

 No país em que tudo vira piada, foliões já se encarregaram de criar o bloco do “Quem deu, deu. Quem não deu, não Damares”[1], pois em um cenário tão distópico[2], o bom humor deve seguir, minimamente, caótico.

E por falar em distopias, o início do post traz três trechos distópicos, a diferença é que um texto faz parte de uma obra ficcional, 1984, de Orwell e os outros dois são declarações de uma agente pública e de um telepastor famoso no país.

Para o primeiro trecho, chamo a atenção para o diálogo que deixa transparecer a subjacente necessidade de controle de corpos em um sistema que se pretenda autoritário. Como a personagem Júlia lucidamente comenta: O mais importante era que a privação sexual levava à histeria, desejável porque podia ser transformada em fervor guerreiro e veneração ao líder (…) se você está feliz na própria pele, por que se excitar com esse negócio de Grande Irmão, Planos Trienais, Dois minutos de ódio e todo o resto da besteirada? 

 Histeria e ódio, eis dois ingredientes que são e já foram capazes de suscitar as mais abjetas ações da humanidade em tempos pretéritos e, tragicamente, também presentes. 

O controle de corpos tem assim a sua função de bipoder e biopolítica (Foucault) explicitada, como também de necropolítica (Mbembe) e se estampa de forma clara nas páginas da clássica obra de Orwell e em nosso cotidiano genocida, onde a população jovem e negra de metrópoles como o Rio de Janeiro é cotidianamente varrida por mortes violentas; na transfobia que faz de nós líderes de violência transfóbica, homofóbica e lesbofóbica e na misoginia que em sua face feminicida colhe corpos de jovens mulheres a cada novo dia.

Em relação ao segundo trecho a ser analisado, chamo a atenção para o momento em que a ministra Damares afirma que: “Se eu retardo [em] um ano o início da relação sexual dessa menina, eu posso salvar a vida dela.

 Notemos que ela não fala de meninos

Ora bolas! Se meninos usam azul e meninas usam rosa quando o assunto é roupa, não seria o caso de também apresentar-se uma equivalência entre ambos os sexos quando o tema é educação sexual? Ou será que o equivalente do rosa/azul quando se trata de gênero e educação sexual significa que meninas vestem a roupa do “não pode” e meninos são trajados com o “sempre pode”, revelando-se, aqui, a projeção do patriarcado introjetada há séculos que representa socialmente meninos como conquistadores e meninas como belas,  recatadas  e naturais praticantes, portanto, da abstinência sexual até o casamento.

Lembro, inclusive, de um antigo ditado imortalizado na voz de alguns atores globais que ao representarem de forma caricata alguns senhores do gado, do cacau ou similares, bradavam: “segurem suas cabras, que meu bode está à solta” – frase normalmente dita por um pai machista e orgulhoso que não ficaria nada satisfeito caso sua “cabritinha” resolvesse igualmente soltar-se, diga-se de passagem.

Damares ainda emenda o malfadado soneto ao ignorar – ou fingir ignorar, a situação do estupro de vulnerável quando afirma em alto e bom som que: ‘se provarem que vagina de menina de 12 anos pode ser possuída, paro de falar”[3] – Cara ministra, és formada em Direito e bem deves conhecer o artigo 217-A de nosso Código Penal que atesta de forma límpida que: “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos é estupro de vulnerável com reclusão de 8 a 15 anos”. Não há o que se provar, mas o que se aplicar em tais casos, simples assim.

Por derradeiro, temos o telepastor Silas Malafaia, pasmem, discordando da “terrivelmente evangélica”[4] ministra. Todavia, aquilo que parece ser um sopro de lucidez ao defender que tal assunto não deve ser tratado como política pública de Estado, logo se torna um conjunto de ataques à educação e comunidade LGBTQIA+ quando declara que: “ (…) ensinar educação sexual na escola não é o melhor caminho porque as instituições estão “infestadas de esquerdopatas”. “Não querem ensinar sobre sexo, querem ensinar sobre ideologia, querem dizer que menino pode transar com menino.” 

Nessa hora, seria possível desembainhar um aparato teórico que comportaria até mesmo discussões teológicas que envolvem a temática, bem como tratar de todo o ódio que tem sido destilado nos púlpitos neopentescostais Brasil e mundo à fora. Escolho apenas chamar a atenção para o fato do quanto a temática sexual pode e será usada como instrumento de legitimação de machismos, homofobias e ódios variados em nome de Deus. 

O presidente eleito com o slogan “Deus acima de todos”, inclusive, parece desejar institucionalizar os mais variados terraplanismos comportamentais e científicos, os quais são oportunamente revelados pelo oráculo em forma de Ministra que apresenta o divino como um inquisidor autoritário de corpos e mentes. Nessa toada, espero, encarecidamente, que não cheguemos a um golpe teocrático aos moldes do também distópico “Conto da Aia” de Margaret Atwood.

Por fim, deixo as discussões sobre a ineficiência da abstinência sexual como política de enfretamento de violências, doenças e gravidez na adolescência para os profissionais da área que tem robustas estatísticas demonstrando a inocuidade de tal método como política pública.

Quanto a nós, aproveitemos que fevereiro chega e, como forma de resistência ou deboche, aconcheguemo-nos aos nossos amores – de uma vida, um verão, um carnaval ou uma noite, caso assim desejemos. Sem esquecermos da liberdade dada a cada um, a qualquer tempo, para exercitar a abstinência sexual, caso dessa forma entenda que assim deva conduzir seu desejo, afinal de contas seu cio é seu e você escolhe em qual céu ou inferno depositá-lo. 

ROBERTA OLIVEIRA LIMA é professora da UNESA/RJ e doutora em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF/RJ)


[1] CORREIO 24 HORAS. Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/folioes-lancam-bloco-quem-deu-deu-quem-nao-deu-nao-damares/. Acesso em: 29 Jan. 2020.

[2] “a palavra [distopia] é derivada de duas palavras gregas, dus e topos, significando um lugar doente, ruim, defeituoso ou desfavorável”2 (p. 4). Normalmente, conceberíamos a distopia pensando apenas a partir da literatura ou da cinematografia, mas “[existem] usos não literários e empíricos do termo” (p. 5). Aqui encontra-se o dado primordial e a característica mais relevante do livro: distopias podem não só existir nesse exato momento, como formaram a realidade de diferentes grupos ao longo da história. Claeys, professor de História do Pensamento Político na Universidade de Londres, publicou reconhecidos livros/artigos sobre, por exemplo, a ideia de utopia (tendo sido premiado por seu trabalho), a respeito da Revolução Francesa e do Socialismo. A partir de seus estudos, logo na Introdução, o autor indica existirem distintas formas de distopia. O fio condutor seria pensar um lugar (mundo, país, estado, região, continente etc.) ruim para determinado grupo (…) In: TALONE, Vittorio da Gamma. Distopias presentes, passadas e futuras: os monstros da sociedade. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/soc/v20n49/1807-0337-soc-20-49-368.pdf. Acesso em: 29 Jan. 2020.

[3] Jornal El Pais: Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-01-28/damares-demonstra-forca-entre-os-mais-pobres-e-acende-alerta-na-esquerda.html Acesso em: 29 Jan. 2020.

[4] “O Estado é laico, mas esta ministra é terrivelmente cristã’, diz Damares ao assumir Direitos Humanos. Disponível em:  https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/01/02/estado-e-laico-mas-esta-ministra-e-terrivelmente-crista-diz-damares-ao-assumir-direitos-humanos.ghtml Acesso em: 29 Jan. 2020

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