por Paulo Silas Filho

Havia um estudante de direito que, diferente de grande parte dos seus colegas, passou realmente a se interessar pelo curso – ou pelo menos naquilo que pretendia chegar após a graduação. O estudante se deu conta que não existia meio outro que não estudar para que conseguisse o êxito esperado. Ao mesmo tempo, não via as problemáticas que eram abordadas em sala de aula como questões a serem realmente problematizadas, refletidas em seu âmago, discutidas filosoficamente, analisadas sob diferentes ângulos. Nada disso. O estudante concluiu apenas que deveria conhecer o mínimo suficiente para que conseguisse passar nas provas – tanto aquelas que eram aplicadas pelos professores no decorrer do curso, como aquelas que teria que fazer durante sua vida até que conquistasse a vitória almejada. Assim, o estudante passou a estudar resumos, adotar métodos esquemáticos e adquirir livros facilitados que traziam objetivamente o que “deveria” se saber sobre cada matéria. Apenas o essencial que seria o suficiente para passar nas provas. Propedêuticas e livros mais densos, obviamente, ficavam de fora, pois custavam um tempo demasiado de estudo que o estudante não poderia perder em busca de seu objetivo. E assim ocorreu – boas notas durante o curso e a posterior aprovação num concurso que o estudante, agora formado, realizou. Fim da história.
O cenário aqui narrado é clássico na área jurídica. Para além dos estudantes totalmente descomprometidos com os estudos e sem qualquer interesse no curso em que estão matriculados, há muitos bons alunos que possuem objetivos outros que não o estudo do direito de forma crítica e reflexiva. Estudam, e bastante, para passar. Vale a matéria que vai cair na prova e nada além.
Esse peculiar ambiente, hoje imperante na área jurídica, que se retroalimenta – valendo aqui citar o “Dilema Tostines” denunciado por Lenio Streck ao apontar para “a baixa literatura que, darwinianamente, foi sendo “construída” por uma guilda de profissionais que se aproveitam desse estado d’arte” (STRECK, 2014) -, propicia uma espécie de consumismo jurídico próprio. Tem-se aí a oportunidade para um tipo de mercado que leva em conta a necessidade dos estudantes-consumidores, cuja demanda passa a ser prontamente suprida pelos mais diversos meios de produtos que desse fenômeno surgem: manuais facilitados, resumidos, plastificados e afins; ementários; banco de petições prontas; e por aí vai.
Esse fenômeno, vale pontuar, acostuma o estudante de tal modo que a questão se reproduz posteriormente como que no automático. É dizer: durante, os métodos facilitadores que reproduzem a decoreba; depois, esse costume permanece, valendo-se sempre da utilização de jargões jurídicos irrefletidos, do uso de ementas de julgados sem preocupação com o conteúdo do (assim equivocadamente chamado) “precedente”, do embasamento em súmulas sem qualquer análise mais detida, além de outros procedimentos costumeiros que dificilmente chegam a ser questionados.
O consumismo jurídico que aqui se aponta é aquele que é exercido pelos sedentos por produtos que atendam suas necessidades dentro desse fenômeno. Não se está assim, como pretendia Dworkin – e aqui citando sua famosa obra -, levando os direitos a sério, nem na teoria e nem na prática, para quem faz essa distinção. O campo é vasto para que diversos produtos surjam nesse comércio fraudulento.
Na práxis forense, por exemplo, há o constante uso de ementários e outras tantas fórmulas prontas que não exigem maiores reflexões, uma vez que “os sujeitos processuais invariavelmente utilizam a jurisprudência (e a doutrina) como discursos de autoridade para legitimar seus pedidos ou as suas decisões” (CARVALHO, 2015, p. 37). A moda dita a regra, como bem aponta Alexandre Morais da Rosa ao demonstrar que “a decisão judicial, pois, está vestida com as roupas da última coleção e garantida pela grife: STJ e STF. E a moda jurídica atende a interesses não ditos e muitas vezes obscenos” (ROSA, 2011, p. 103-104), de modo que o que se observa nisso tudo é uma lógica de autorreprodução. Sobre a questão problemática das súmulas, “há quem diga que a submissão dos juristas aos pequenos totens sumulares é uma postura adquirida por conta de um caquético habitus dogmáticus. Isso, na realidade, é preguiça” (FERRAREZE FILHO, 2016, p. 114).
No campo acadêmico, imperam os livros que, quanto menos complexos e mais objetivos forem, melhor. Ninguém quer pensar muito, pois basta decorar o básico que é cobrado nos certames. Isso repercute, por consequência, naquilo que é consumido do mercado editorial jurídico. Henderson Furst, ao analisar os dados de uma pesquisa sobre esse mercado (científico-técnico-profissional), estarrece-se com os números, tristes e assustadores, que evidenciam uma queda em exemplares vendidos entre os anos de 2014 e 2018. Estaria aí “a fórmula do sucesso para os jovens alunos jurídicos: o conteúdo resumido e rápido a poucos cliques de distância com aquilo que cai na prova” (FUSRT, 2019). É onde se encontra um outro nível de produtos consumidos pelos ávidos estudantes que objetivam passar em provas, a saber, os minicursos, as breves vídeo-aulas e os resumos encontrados aos montes pela internet. O consumismo jurídico aqui também se faz operante, cujo espaço nessa parte do mercado é dividido entre as obras esquemáticas-facilitadas-resumidas e os tantos e tantos cursos vendidos e disponibilizados na internet.
Assim, para onde quer que se olhe no âmbito forense, seja nos bancos da academia, seja na prática profissional, o mercado destinado a atender esse fenômeno dos consumismos jurídicos segue a todo vapor, pois a demanda é grande e sobra espaço para que aí surjam e se vendam tantos e tantos produtos, corpóreos ou não, que corroboram com a manutenção desse círculo vicioso.
As consequências disso tudo são as mais diversas. Trata-se de um estado atual de coisas da qual não se foge, pois o cenário já assolou o meio jurídico de tal modo que se pode apontar para as poucas exceções que fogem à essa regra. É como se esses consumidores estivessem sempre sob o efeito do ‘soma’ do universo distópico narrado em “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, onde impera a regra do consumismo como mola propulsora de toda uma sociedade peculiar.
O problema não é o consumo em si, mas a forma com a qual esse consumismo jurídico opera. Ao levar em conta todos os fatores presentes nesse fenômenos – alguns aqui mencionados -, nota-se que há uma espécie de poder de mecanização sobre esse consumidor jurídico, existindo nesse âmbito algo semelhante aquilo que Adorno e Horkheimer chamaram de ‘indústria cultural’. Se, conforme apontam os autores, toda cultura de massas é idêntica, não passando as formas da manifestação cultural de um mero negócio, uma vez que seus dirigentes, apresentando-se como indústria, “a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem” (ADORNO e HORKHEIMER, 1985, p. 100), há de se concluir que um fenômeno como tal está presente hoje no cenário jurídico – uma espécie de ‘cultura jurídica industrial’ que resulta no consumismo jurídico aqui exposto.
O cenário é esse. Resta saber diferenciar o joio do trigo para, numa tentativa de salvamento, separá-los.
PAULO SILAS FILHO é advogado, professor de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia (UnC/UNINTER) e mestre em Direito (UNINTER)
REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
CARVALHO, Salo de. Como (não) se faz um Trabalho de Conclusão: provocações úteis para orientadores e estudantes de Direito. 3ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
FERRAREZE FILHO, Paulo. Manual Politicamente Incorreto do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.
FURST, Henderson. Os inacreditáveis números do livro jurídico – parte 1. Publishnews. Disponível em: https://www.publishnews.com.br/materias/2019/08/02/os-inacreditaveis-numeros-do-livro-juridico-parte-1. Acesso em: 04/01/2020
HUXLEY, Aldous. Admirável Mundo Novo. 11ª Ed. Rio de Janeiro: Hemus, 1969.
ROSA, Alexandre Morais da. Garantismo Jurídico e Controle de Constitucionalidade Material: aportes hermenêuticos. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011
STRECK, Lenio Luiz. Vanguarda do atraso: não passa no exame da OAB e vira “advogado pigmeu”. Consultor Jurídico. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2014-ago-07/senso-incomum-vanguarda-atraso-nao-passa-exame-oab-vira-advogado-pigmeu. ISSN:1809-2829. Acesso em: 04/01/2020.
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sempre sobre o efeito do ‘soma. Ou SOB o efeito?
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