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Desviantes (não) por acaso

por Paulo Silas Filho e Larissa Zucco

A partir do filme Coringa, pode-se ter o “louco” como desviante. Adotando-se categorias da sociologia e da criminologia para compreender de que modo o desvio opera na sociedade, é possível saber os efeitos disso na (não) adoção de políticas públicas que visem integrar, tratar ou apenas compreender a figura daquele que é tido como “louco”.

A proposta desse breve texto, portanto, é estabelecer um “chão” sobre o o conceito sociológico e criminológico de desvio, demonstrando por que a psicologia é um saber necessário a ser incrementado por quais quer que sejam as políticas públicas que venham a ser adotadas. Daí porque o filme “Coringa” é um exemplo ilustrativo, que permite enxergar melhor a questão posta.

Numa abordagem sociológica, a figura do “louco” pode ser vista como o de ser “desviante”. O desviante passa a ser compreendido não só em razão da reação social que ocorre após o desvio, mas também pela soma de fatores prévios ao resultado.

A forma com a qual a sociedade reage a um determinado fenômeno vai depender da compreensão prévia (socialmente construída) que se tem do próprio fenômeno.

Na entrevista com Murray, Coringa reclama que Wayne e toda a população de Gotham City choraram a morte de três jovens apenas porque eram ricos. Afinal, se fosse ele mesmo, o Coringa, assassinado por alguém, a maioria das pessoas passaria por cima do corpo sem dar nenhuma importância.

Essa mesma dinâmica interacionista ocorre quando o corpo social reage a um determinado ato que é repudiado, mas que recebe ênfase distinta nesse repúdio (que pode ir desde a condescendência até o afã pela aniquilação do indivíduo) a depender do “local” ocupado pelo agente. É em razão disso que alguém que vende drogas, por exemplo, pode ser noticiado pela mídia como “bandido” e “traficante” (negros, pobres, jovens sem estudo, enfim, a “casta” sobre a qual o direito penal verdadeiramente opera), enquanto um outro alguém, pertencente a outra “casta”, é anunciado pela mesma mídia como “intermediador de venda de substâncias ilícitas” e sem qualquer adjetivo que se traduza em demérito.

A “reação social”, como paradigma sociológico que explica a construção da figura do desviante, é muito bem explicada pelo sociólogo Howard Becker quando estabelece aqueles que seriam considerados os outsiders. Para essa perspectiva, o enfoque se dá na reação social que surge após o ato, não sendo o “ato em si” o verdadeiro elemento que constitui o problema. O desviante seria todo aquele que não se insere ou não adere ao “valor moral absoluto” que é escolhido consensualmente (assim dito pelo discurso oficial) pela sociedade. Daí que os rechaçados pela sociedade – pelo próprio sistema – costumam ser aqueles subgrupos nos quais estão inseridos os criminosos, uma vez que a lógica operante da reação social assim os define de modo particular. Isso porque a reação social para com o desvio é mais significativa (quando não unicamente) quando o desviante é assim já previamente percebido.

Nesse sentido, o “louco” é um indivíduo que acaba estando inserido nessa categoria de outsider justamente por conta da sua condição e a reação tida pelos demais. Isso acontece com o “louco” pobre, claro, pois o “louco” rico sequer assim é entendido ou tratado, recebendo por vezes a tratativa de excêntrico, desvinculando-se assim de uma categoria vil na qual não faz “jus social” de estar inserido.

Estabelecido esse chão primevo, tal como já se fez com a figura de Jean Valjean, personagem notório do romance “Os Miseráveis”, de Victor Hugo, estabelecendo-o enquanto um outsider numa perspectiva criminológica, pois assim como Jean Valjean, “há muitos estigmatizados que buscam viver suas vidas, ao próprio modo – seja como for, mas que enfrentam a dureza da não aceitabilidade” (TAPOROSKY FILHO, 2018, p. 147-160), elenca-se a figura do Coringa do filme para observar como isso ocorre em algumas não medidas de política pública voltadas para o “louco”.

Aos desviantes (“outsiders”), pouca importância é dada, uma vez que inseridos num grupo distinto daqueles que operacionalizam o Estado. Isso acarreta numa ausência de políticas públicas ou sucateamento dos órgãos que se destinam a atender esses indivíduos específicos, ou seja, o fenômeno da reação social repercute diretamente nas políticas públicas orientadas pelo Estado.

Ora, “Coringa é desempregado, doente mental, não é engraçado, tem problemas familiares, não tem uma namorada. É frustrado em todos sentidos. É um fodido completo” (FERRAREZE FILHO, 2019). É um sujeito que, já rotulado socialmente, está fadado ao processo de transmutação social ante ao seu certo futuro envio à qualquer das instituições totais (cadeia ou manicômio), ocorrendo assim mais um processo, agora formal, de desculturamento, de modo que passará a sofrer, ainda com mais ênfase, “progressivamente uma série de rebaixamentos, humilhações, degradações pessoais e profanações do eu” (SHECAIRA, 2014, p. 110).

Esse processo se inicia antes, estabelecendo-se e se operando através do próprio controle social informal exercido pela sociedade.

Dessa forma, antes de entender-se como um sujeito, ele passa por estágios de desenvolvimento onde é moldado pelos ideais, pensamentos, valores e crenças familiares, posteriormente pela escola e, durante todo esse processo, pela sociedade e sua cultura. Portanto, nota-se que todos os indivíduos (familiares ou não) estão interligados com a construção desse sujeito. Para além da sociedade, tem-se o Estado, ente esse que por estar (ou assim devendo estar) em trâmite num mesmo direcionamento que a sociedade, não devendo ser considerado uma instância outra, que também repercute diretamente na formação do indivíduo – estando ou não num mesmo alinhamento.

Assim, abre-se espaço para discutir, através do Estado, a questão das políticas públicas e a saúde mental. Nesse aspecto, questiona-se: saúde mental para quem?

Historicamente, fala-se de uma luta de (des)construção das doenças e transtornos mentais, tanto para reconhecimento quanto para tratamento. Mesmo se tratando de algo que vem do século passado, ainda nos dias de hoje é difícil falar sobre saúde mental, pois ela não é definida socialmente pelo DSM (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) ou CID (Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde), mas sim pela classe social da qual esse indivíduo – portador ou não de um diagnóstico – faz parte.

Observa-se o referido discurso com algo muito simples de ser analisado: quando um famoso é diagnosticado com uma psicopatologia, como por exemplo a depressão, logo se tem a mídia lamentando por essa pessoa, falando sobre os malefícios que essa doença traz, quais são seus sintomas e uma espécie de “fique atento” advertido. Porém, quando passamos esse mesmo exemplo, de psicopatologia, para um cidadão de classe baixa, ele passa a ser considerado como “alguém que não tem o que fazer” ou então “que está de frescura”, ou pior, “que só quer chamar a atenção”.

Quando lançada a proposta de pensar em “saúde mental para quem?”, coloca-se a pensar se estamos realmente falando de diagnósticos e de reconhecimento do sofrimento mental, ou apenas estamos distinguindo quem pode e quem não pode desenvolver transtornos. E pior, coloca-se o transtorno como uma escolha, como se fosse algo que deseja-se para si ou para o outro.

O Estado – representado por indivíduos que também compõe essa sociedade pertencente -, como fornecedor de auxílio e garantia dos direitos de uma sociedade, mostra-se em total descaso em garantir que as pessoas com sofrimento mental tenham um tratamento digno e funcional, pois sempre que – popularmente falando – “a corda aperta”, um novo corte de verbas é realizado, podendo ser na educação, na segurança ou na saúde, de forma que os impactos disso são refletidos diretamente em sua nação.

Um governo que não é capaz de suprir as necessidades básicas de uma sociedade – colocando o “seu bolso” em primeiro plano – gera por si só o adoecimento da mesma. Com base nesse cenário, Coringa ilustra muito bem a realidade de várias pessoas que sofrem diariamente com a necessidade de auxílio das políticas públicas para tratamento e distribuição de medicamentos. Paga-se impostos com o intuito de que sejam revertidos para o bem comum, investindo em bens e serviços públicos. Certamente, em bens tem sido investido, mas não para deleite público. O corte de verbas mostra-se cada vez mais presente e os impactos disso são sentidos por toda a população na educação, na segurança e na saúde. Mas, qual o real preço disso tudo?

Da mesma maneira, nota-se que um governo, enquanto figura de poder e influência, que não adere a políticas de tratamento e cuidado aos transtornos mentais, abre espaço para que seus indivíduos também trate a questão com descaso e desinteresse, contribuindo assim para que o estigma do doente mental permaneça como o “louco” de seu povo.

Imagine-se o seguinte cenário: uma pessoa de classe baixa desenvolve depressão; por infortúnio da vida, não possui condições financeiras de bancar um tratamento psicológico particular, de modo que acaba por procurar as políticas públicas de atendimento à saúde mental; após passar por uma longa fila de espera no SUS, é encaminhada ao CAPS; inicia o seu tratamento; agora, além de um indivíduo com psicopatologia, sofrimento psíquico e emocional, essa pessoa também será estigmatizada por todos, pois é um “louco que frequenta o CAPS”.

O julgamento social e a forma como as políticas públicas são vistas atualmente correspondem à imagem cultural e social de seu povo, e mesmo sendo o CRAS, CREAS, CAPS, entre outras, instituições com profissionais específicos para cada atendimento, ainda não são capazes de suprir a necessidade de uma população que não as procura por medo do rótulo imposto àqueles que dessas instituições fazem parte de algum modo.

Ampliando a problematização ainda mais, têm-se outras figuras conhecidas publicamente como atores e cantores que exemplificam o que é essa imagem cultural e social. Veja-se o caso do ator Fabio Assunção, cujas manchetes levaram seu nome e o rótulo da dependência química em diversas notícias. O ator ficou conhecido pelos memes de “vamos beber”, “hoje eu vou ficar mais louco que o Fabio Assunção” (que inclusive virou um funk), ou ainda “já tem alguém bebendo” – sempre com suas fotos ilustrando as frases. Também o cantor Zeca Pagodinho se faz presente em figurinhas de WhatsApp para chamar a galera para o rolê. E assim a vida é pintada como linda, não existindo doença nem dependência, muito menos preocupação em identificar se está ocorrer uso ou abuso de bebidas alcoólicas ou quaisquer outras substâncias. O importante é beber, não é mesmo!?

E assim a coisa anda. Vive-se para julgar os outros, cobrando-os, condenando-os, fazendo-os adoecer, destruindo suas relações afetivas, amorosas e familiares e torcer para que o mesmo não aconteça consigo mesmo. Após definir os adoecidos, rotula-os e tenta-se excluí-los do meio ao qual (desde seu nascimento) foi inserido, fortalecendo-se assim o discurso de que deveria existir locais apropriados para “depositar” as pessoas adoecidas mentalmente. O discurso da neutralização segue sempre operante. Para o Estado, quanto mais “se prende” os indivíduos tidos como desviantes, mais controle se exerce sobre a população, buscando-os neutralizar em busca de uma padronização populacional.

Os desviantes, portanto, não o são por acaso. O sistema opera para que a coisa toda assim seja. Não funciona, portanto, funciona, pois assim é para ser.

PAULO SILAS FILHO é advogado, professor de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia (UnC/UNINTER) e mestre em Direito (UNINTER)

LARISSA ZUCCO é acadêmica de psicologia (UnC)

REFERÊNCIAS

FERRAREZE FILHO, Paulo. Coringa no espelho: relações familiares, neoliberalismo e transgressão. Caos Filosófico. Disponível em: <https://caosfilosofico.com/2019/11/28/coringa-no-espelho-relacoes-familiares-neoliberalismo-e-transgressao/>. Acesso em: 16/12/2019.

SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia: um estudo das escolas sociológicas. 1ª Ed. São Paulo: Estúdio Editores.com, 2014

TAPOROSKY FILHO, Paulo Silas. Jean Valjean e o estigma do condenado. In: TOMAZINI, Andressa (org). Ciências Criminais: uma introdução. 1ª Ed. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018.

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