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Sociedade de consumo: adoecimento e segregação

por Flávia Tridapalli Buechler

O que Freud e Lacan podem nos ensinar sobre o consumismo e suas consequências? Essa não é qualquer pergunta, pois se este tema pode ser articulado a estes dois grandes psicanalistas, significa que há ressonâncias dessa prática que é o consumo tanto no campo das subjetividades humanas quanto no campo das relações entre humanos.

O criador da psicanálise em 1930 escreveu um texto intitulado Mal-estar na Civilização, onde ressalta dentre outras análises, cinco pontos importantes que nos ajudam a compreender sobre a constituição subjetiva do humano. Ressalta Freud (1930) que: 1) o humano funciona a partir de um registro que ele nomeará como princípio do prazer, onde o Eu tenta a todo custo evitar e eliminar sensações de dor e desprazer; 2) o humano conhecido como sujeito de desejo é constituído por uma falta, uma falta estrutural que o condena ao mesmo tempo ao desejo (movimento) e à incompletude (satisfações parciais); 3) o sujeito de desejo viverá na tentativa de preencher essa falta, pois assim, supostamente atingiria a felicidade, aspiração dos humanos por excelência, seja através da ausência de dor e desprazer ou a partir da vivência de fortes prazeres; 4) o princípio do prazer está em desacordo com o real do mundo, ele é inexequível por completo o que possibilita dizer que a intenção de que o homem seja “feliz” não se encontra no plano da “Criação”; e 5) aquilo a que chamamos “felicidade” vem da satisfação repentina de necessidades altamente represadas, e por sua natureza é possível apenas como fenômeno episódico, ou seja, podemos fruir intensamente só o contraste, muito pouco o estado, o que faz com que as nossas possibilidades de felicidade sejam restringidas por nossa própria constituição.

Alguns dizem que Freud foi muito pessimista nas colocações que observou e descreveu neste texto. No entanto, é possível pensarmos que Freud foi muito mais realista que pessimista, pois ao apontar para o impossível preenchimento da falta faz justamente ver e aceitar o que pode vir a se tornar possível. Assim, podemos dizer que Freud ousou escutar sobre a dureza que é estar vivo ao referir que “a vida, tal como nos coube, é muito difícil para nós, traz demasiadas dores, decepções, tarefas insolúveis. Para suportá-la, não podemos dispensar paliativos. […] Existem três desses recursos, talvez: poderosas diversões, que nos permitem fazer pouco de nossa miséria, gratificações substitutivas, que a diminuem, e substâncias inebriantes, que nos tornam insensíveis a ela” (p.232:5567). E ele também nos alerta que “a satisfação irrestrita de todas as necessidades se apresenta como a maneira mais tentadora de conduzir a vida, mas significa pôr o gozo à frente da cautela, trazendo logo o seu próprio castigo” (p.261:5567).

Pôr o gozo à frente da cautela, o que significa isso? Significa a dificuldade do humano em renunciar à alguma parcela de satisfação. Renúncia indispensável para que continue a desejar, bem como para que se mantenha em relação com os outros. Como clássico exemplo, podemos ressaltar o uso contínuo e abusivo de drogas, sejam elas lícitas ou ilícitas. Quem é esse sujeito? Nos casos mais alienantes é alguém que não suporta a vida sem o consumo desse objeto que é a droga e, além disso, alguém que vive a vida à procura e em função desse objeto. Consome tanto, que se consuma, se destrói num gozo que em muitos casos revela-se mortífero.

Lacan, ao fazer um retorno a obra freudiana e ao aprimorar a teoria psicanalítica a partir dos seus estudos no campo da linguística traz à tona o conceito de discurso e a estruturação do inconsciente como uma linguagem. Isso nos interessa, pois significa dizer que a forma como habitamos o mundo é construída discursivamente, em outras palavras, que o discurso dominante seja no seio de uma família, seja numa determinada época, governa a produção de subjetividades e modalidades de laço social.

Nessa lógica, podemos observar que um discurso pode estar tanto a serviço do sujeito e do laço social quanto a desserviço deles. E ainda, na medida em que um discurso se torna hegemônico, ele pode nos conduzir tanto às possibilidades de invenção quanto ao horror, como foi o que ocorreu nas sociedades colonialistas, no nazismo e em outras formas de governo que se atreveram a mensurar e hierarquizar o valor dos humanos. Outro testemunho que sinaliza a parcela de alienação e morte que um discurso pode conter é o que Hannah Arendt (1999) presenciou no julgamento de Eichmann, donde cunhou o termo banalidade do mal a partir da relação que observou entre autoridade e obediência.

Ao considerarmos estas breves colocações, podemos começar a pensar sobre a época atual e um dos discursos que a governa, a saber: o discurso do capitalista. Para quem não sabe, Lacan tem um seminário dedicado à sua teoria sobre os discursos, tendo ele enfatizado sobre o discurso do capitalista numa conferência que realizou em Milão no ano 1972. Ressalto, portanto, que falo e escrevo tocada por essas leituras juntamente com os trabalhos de outros psicanalistas que abordam o tema.

Encontramo-nos então, em uma época arquitetada pelo discurso do capitalista e marcada pela sociedade de consumo. Segundo Baudrillard (2009), essa sociedade é marcada por não nos cercarmos mais de outros homens e sim de objetos, da recepção e manipulação de bens e informações. Isso porque o discurso capitalista impõe ao sujeito: 1) o rechaçamento da falta-a-ser, transformando-a perversamente numa falta-a-ser-rico (QUINET, 1999), pois o dinheiro como valor supremo passa a materializar a detenção do poder; 2) o imperativo goze!, que por ser imperativo, dispensa o pensar e a invenção, o que potencializa a obediência e o conformismo; 3) uma nova economia libidinal a partir da segregação, onde ter ou não acesso aos objetos diz se você está dentro ou fora do laço social.

A sobreposição da economia de mercado à ordem social, faz com que não haja regulação possível ao gozo que todos nós devemos renunciar, pelo menos parcialmente, para que consigamos viver juntos. E não há regulação possível, pois as leis do mercado são leis invisíveis, o que torna o discurso do capitalista um discurso sem lei, sem interdito e perverso, por prometer e fomentar a ilusão de que a completude é possível. Dessa forma, esse discurso promove um autismo induzido e um empuxo-ao-autoerotismo, o que conduz efetivamente à decepção, tristeza, tédio e nostalgia do ser-completo ou a diversos tipos de toxicomanias entre outras várias psicopatologias[1] próprias desse discurso (QUINET, 1999).

Outro impacto social desse discurso que tem como lema gozar sem empecilhos, é a produção de uma cultura da indiferença, pois onde tudo é possível, não há diferença, não há inclusive a diferença entre humanos e objetos, humanos e números, humanos e bens. É o que Matos (2005) refere quando revela que as relações atuais são marcadas pelo cálculo e pelo interesse, características que remetem à economia de mercado. Diz a filósofa, que estamos num mundo onde não há mais contato, não há encontro e consequentemente não há engajamento na relação e no cuidado com o outro. Na mesma lógica, Badiou (2017) refere que esse discurso se aproxima da barbárie, pois numa sociedade que aceita aberta e de maneira amplamente consensual que o lucro seja o único motor viável para fazer funcionar a coletividade, a norma torna-se ganhar o máximo de dinheiro possível, independente da validade dos meios necessários para atingi-la.

É diante desse laço social que reduz a linguagem ao comando que a psicanálise se põe a ocupar um lugar muito particular, e a sustentar uma ética que resiste à tendência e persiste na sustentação do desejo, da diferença, da falta e das relações. A ética psicanalítica, ao não rechaçar o mal-estar constituinte do humano e suas relações implica o sujeito na sua capacidade de autoria de si e de um mundo em comum, isso porque se trata de um posicionamento e não de uma ciência que se pretende universal. Enquanto posicionamento, essa ética apresenta-se como ato político de afirmação e circulação da palavra, bem como vai na contramão de qualquer lógica ou dispositivo que tente reduzir ao silencio a voz do outro.

Para isso, Vivès (2019)[2] afirma que é preciso enquanto humanos nos retirarmos de uma deriva conformista, pois esta que tem a ver com o princípio do prazer, acaba por tornar mais cômodo nos sujeitarmos à obediência que incorrermos ao mal-estar do desejo, da falta e da diferença. Podemos dizer que incorrer ao mal-estar é trabalhoso e não se dá sem angústia e sofrimento, no entanto me parece, até o momento, um caminho viável para um mundo de relações perenes ao invés de um (i)mundo[3] de relações perecíveis.

FLÁVIA TRIDAPALLI BUECHLER é psicóloga, especialista em psicopatologia da infância e da adolescência e especializanda em psicanálise, sujeito e laço social (UNIFEBE/HSC).


[1] Sobre esse assunto ver “Efeitos do superdesempenho no psiquismo” publicado na revista eletrônica do Caos Filosófico no mês de setembro de 2019: https://caosfilosofico.com/2019/09/18/efeitos-do-superdesempenho-no-psiquismo/

[2] Conferência realizada por Jean-Michel Vivès sob o título “Não havia outra escolha possível” – Conformismo, conformidade e confirmação. Uma abordagem psicanalítica do devir-desistente ou do devir-persistente” na ocasião do IX Encontro Nacional e Internacional do Corpo Freudiano no Rio de Janeiro em novembro de 2019.

[3] Referência ao tema central do IX Encontro Nacional e Internacional do Corpo Freudiano: “O Mundo e o iMundo: a psicanálise diante do horror” realizado no Rio de Janeiro em novembro de 2019.

Referências

BADIOU, A. Em busca do real perdido. Trad. de Fernando Scheibe. 1ª ed. Belo

BAUDRILLARD, J. A Sociedade de Consumo. 3ª Ed. Portugal, Lisboa: Edições 70, 2009.

FREUD, S. O mal-estar na civilização. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das letras, E-BOOK. (Trabalho original publicado em 1930)

ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Companhia das letras, 1999.

Horizonte: Autêntica Editora, 2017.

MATOS, O. O amor como consumo. Vídeo publicado pelo canal Café Filosófico no ano de 2005. Acessado em: https://www.youtube.com/watch?v=404u9GcPQZU

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