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Poliamor: a beleza de ser descartável

por Maíra Marchi Gomes

Infelizmente não cessamos de encontrar modalidades de amor que são alvo de repulsa, rechaço, opressão e exclusão. Por vezes nos indagamos se posicionar o amor no alvo aonde jogaremos as piores lanças que há dentro de nós não serve, precisamente, para tolerarmos as múltiplas manifestações de ódio. Dentre tais expressões de amor, localizamos as homossexualidades, as bissexualidades, as transexualidades. Poderíamos até incluir aqui as zoofilias e as pedofilias, já que minha crítica não é à reprovação (jurídica e/ou moral) de determinado ato, mas quando tal reprovação é maciçamente movida pelo desejo de vingança, negação e projeção de seus desejos e fantasmas. Nestas circunstâncias, mesmo em casos de pedofilia e zoofilia, o que principalmente pauta a resposta daquele que se autoriza a avaliar/julgar o outro, não é a proteção daquele vulnerável (criança ou/e animal), mas a proteção de si mesmo por não suportar contactar alguns conteúdos de sua mente. Em casos como estes, não há como a reprovação moral e/ou jurídica não ser excessiva. É o xingamento desnecessário, o empurrão injustificado, é o desrespeito aos direitos humanos, e é o adoecimento dos pretensos seguidores de uma dita norma.

Neste texto, posiciono a lupa sobre a dificuldade de alguns em conceberem o poliamor como uma modalidade de exercício do amor. Talvez isto sirva para não questionar a legitimidade de sua própria maneira de amar e ser amado; melhor dizendo, questionar se o modelo de amor colocado à constituição da família burguesa (uma dupla – constituída por homem e mulher, lembremos -, e com propósitos de reprodução para garantia da preservação da propriedade) precisa satisfazer ao outro e, especialmente, se nos satisfaz.

Perez e Palma (2018) realizam um percurso histórico para explicar a hegemonia ocidental do amor romântico, patriarcal, heteronormativo e monogâmico. Elas localizam a primeira manifestação do amor como relação pessoal na Idade Média, quando o amor cortês, trovadoresco, nos transmitia o amor como um ideal e como algo inatingível. Já no Renascimento, procurou-se articular esta expectativa da alma a algo material. Daí a popularização do ritual religioso do casamento. Com isto, o que obteve foi a intensificação da vigilância moral e a noção de que o casamento é negociação. Chegando à Idade Moderna, as quase indissociadas Igreja e Medicina dissociaram amizade (que deveria reger o casamento) e paixão (associada à loucura – ao adoecimento, portanto -). Como se o casamento fosse para saudáveis, não podemos deixar de pensar. A partir do Iluminismo, por sua vez, ao amor atribuiu-se o estatuto de ridículo, ante um mundo voltado à razão. Perceba-se, portanto, a idealização do amor (iniciado com o amor romântico, no século XIX, mas alçado a valor de massa no início do século XX, quando a velocidade das modificações sociais, após a industrialização, gerou insegurança e fez com que o amor foi elevado ao status de cura para todos os males) é uma construção. Mais propriamente, um retrocesso.

Neste amor romântico, há uma problemática de gênero que não pode ser desconsiderada. Conforme explicam as mesmas referidas autoras, admira-se não mais a mulher exuberante, mas a mulher virginal. Constrói-se o mito de um amor doméstico, puritano, casto, controlado e cauteloso, sob medida para a classe média. É pertinente lembrar, penso, que é neste momento que as obras de arte passam por uma mudança surpreendente, bem como que a indústria pornográfica passa a ter uma significativa visibilidade. Tudo em nome de separar a mulher desejada daquela apta ao casamento[1]; em outros termos, a separação entre aquela que precisa ser mantida nos recônditos mais íntimos de sua mente e do seu quarto e banheiro e aquela que pode estar na sala e cozinha, visível às visitas. Nenhuma delas, observemos, estaria fora de casa; a primeira, no máximo estaria num prostíbulo, mas nunca transitando na rua e muito menos de mãos dadas com o homem com quem dorme. A segunda, só estaria na rua se seguindo literalmente um homem.

Para Perez e Palma (2018), portanto, a pretensa libertação alcançada com o romantismo é insatisfatória, especialmente para as mulheres. O mito do amor romântico, como relação estável, plena e duradoura, é moldado no ideal da família burguesa. Neste modelo, aos homens são oferecidas novas oportunidades e posições de poder, enquanto que às mulheres novas normas morais são impostas (castidade). Há uma reiteração do papel do homem como patriarca, porque a mudança de parceira é vista como um direito de novamente tentar acertar; já a mudança de parceiro, é vista como uma nova chance de conquistar o homem que irá salvá-la.

Hatakeyama, Almeida e Falcão (2017), além de apresentar algumas teorias psicológicas que se propõem à árdua tarefa de conceituar o amor, alertam para o fato de que historicamente o amor também é associado à juventude. Os autores não problematizam este estereótipo do “amor jovem”, mas bem detalham como, no amor do idoso, a genitalidade não é o foco principal. Ao meu ver, é esta a chave para a compreensão: por mais que Freud tenha cansado de nos ensinar, ainda reduzimos sexualidade à genitalidade.

Ouso inclusive pensar que é, pelo menos em parte, por este estatuto tão privilegiado que se dá ao sexo, em detrimento do amor, que muitos não compreendem uma modalidade de amor como o poliamor. Muitos reduzem suas possibilidades de ser amado à reles expectativa de o parceiro só manter relações sexuais consigo. Há ainda os mais carentes, que esperam que o outro sequer goste de conversar ou atrair outra pessoa, e até os que esperam que o parceiro não tenha qualquer vínculo prazeroso com o passado. Como se fossem tão interessantes que pudessem apagar qualquer memória positiva que o parceiro tenha em relação ao seu passado amoroso/sexual. Há os mais hipócritas, que esperma monogamia de seu parceiro, mas são poligâmicos[2].

Perceba-se que as concepções de fidelidade e lealdade no poliamor são diversas. A idéia de fidelidade talvez se refira à fidelidade ao próprio desejo e sentimento, e a lealdade talvez se refira à sinceridade com que se explicita os próprios desejos ao outro. Daí que é pressuposto do poliamor a consensualidade, nem que uma das partes seja monogâmica enquanto a outra é poliamorista. Pilão (2015) aponta três tipos de arranjos no poliamor, que podem ser abertos – em que existe a possibilidade de novos envolvimentos – ou fechados – em que os envolvimentos se restringem ao grupo, se consolidando uma “polifidelidade”. São os arranjos: (a) “relação em grupo” – todos se relacionam entre si; (b) “rede de relacionamentos interconectados” – cada pessoa da relação tem outros relacionamentos distintos; e (c) “relação mono/poli” – casal em que um é poliamorista e outro não, por opção.

Os mesmos autores apontam que no poliamor não há uma idealização do outro, e nem mesmo a pressuposição de que se é capaz de completar o outro. Nesta direção, aliás, Perez e Palma (2018) explicam que compersão é o nome dado ao sentimento oposto ao ciúme e se baseia na capacidade de sentir-se feliz por seu parceiro ser capaz de envolver-se com outra(s) pessoa(s). É neste aspecto que, gostaria de articular com a noção de ambiente suficientemente bom (Winnicott, 1983).

Conforme este autor, nossa saúde mental depende de experiências muito primitivas, e experiências na relação com o ambiente. Ele explica que a “mãe suficientemente boa” é aquele sujeito cuja função é apresentar gradativamente a realidade ao bebê, numa dosagem que faz com que o sujeito mantenha a ilusão de sua potência de transformar o ambiente, ao mesmo tempo que se submetendo à realidade externa. Para ele, se isto não for bem dosado, teremos sujeitos que acreditam que a vida é apenas aquela que é (inexistindo seu espaço mental que permitiria apropriar-se do mundo e fazer algo com ele) ou, num outro extremo, aqueles que pressupõem que a vida é aquela que deveria ser (apenas aquela que atende aos seus anseios).

Observe-se o ato de amor de uma mãe, seja ela o que e qual for, que entende que sua função é cumprida quando ela passa a ser desnecessária. Aí o bebê está autônomo. Aí ele está independente. É essa mãe que não fica feliz em dizer que o bebê só come se o alimento for oferecido por ela. É aquela que não se vangloria em dizer que só ela sabe interpretar o choro do bebê. É aquela que gosta de saber que o bebê, mesmo chorando com sua despedida, fica muito bem com um terceiro. É aquela que fica em paz ao saber que o bebê não dorme apenas com ela. Não apenas porque ele não precisa apenas dela, que não precisa dela ininterruptamente, mas porque reconhece que ele sabe o que fazer na ausência dela. Talvez o que há de mais belo no amor maternal seja a capacidade de estar lá para quando voltarmos. A capacidade de ser feliz por ter sido condição fundamental para seu filho ir. A alegria por seu filho ter um mundo à sua volta e ter condições de ir até lá. A felicidade de ter sido resgatada, sabendo que é seu descarte que mostra seu valor. É a falta que instaura o desejo, recordemos. Mantenhamos esta boa lição materna em nossas relações futuras!

Frequentemente estabelecemos relações nas quais misturamos maciçamente passado e presente, e nas quais trazemos uma mamãe (ou quem quer que tenha cuidado de nós) simbiótica. Se há quem deveria ser excluído de nossas relações amorosas/sexuais, pelo menos em certo nível, é este Outro que nos engolfa. Sejamos fiéis, pelo menos no mínimo possível, a quem nos relacionamos. A fidelidade maior está aí: não misturar, pelo menos não em certo nível, nossas questões com figuras de nosso desenvolvimento pessoal e passado neste relacionamento atual. Afora isto, por que não? Tenho me perguntado de qual relação o elogio à monogamia fala…qual relação se quer manter única e intocável. A com os cuidadores primordiais nesta faceta mais fusional? Cresçamos! O outro não é o Outro.

MAÍRA MARCHI GOMES é é psicóloga na Polícia Civil de Santa Catarina e doutora em Psicologia pela UFSC.

REFERÊNCIAS

FREUD, S. (1910). Um tipo especial da escolha de objeto feita pelos homens (contribuições à psicologia do amor I). In: _______. Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1996. v.11, p. 149-162.

Hatakeyama, Natani HarumiAlmeida, Thiago deFalcão, Deusivania Vieira da Silva. (2017). Amor, relacionamentos amorosos e poliamor na perspectiva de jovens universitários e idosos. Rev. Kairós; 20(2): 271-292, jun. 2017

Perez, Tatiana Spalding, & Palma, Yáskara Arrial. (2018). Amar amores: o poliamor na contemporaneidade. Psicologia & Sociedade30, e165759. Epub 07 de junho de 2018. https://dx.doi.org/10.1590/1807-0310/2018v30165759

Pilão, Antonio. (2015). Entre a liberdade e a igualdade: princípios e impasses da ideologia poliamorista. Cadernos Pagu, (44), 391-422. https://dx.doi.org/10.1590/1809-4449201500440391

[2] Hatakeyama, Almeida e Falcão (2017) diferenciam poligamia e poliamor precisamente neste aspecto da poligamia não autorizar, a uma das partes, ter relacionamentos com outros parceiros. Relacionar-se com outros seria prerrogativa apenas de uma partes. Diferentemente, no poliamor a todas as partes é permitido amar outros sujeitos.

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