por Maíra Marchi Gomes

Pretende-se neste texto retomar, e problematizar, algumas discussões realizadas em momento anterior. Como se pode depreender daquela ocasião, códigos linguísticos para normatizar o conceito de normalidade não faltam. Havendo alguém que deseja (a)normalizar alguém ou a si, encontra-se uma diversidade de códigos. Diversidade tamanha ao ponto de ser possível dizer que ninguém escapa de olhos que anseiam localizar este ente abstrato que é a (a)normalidade. Categorizações, classificações, nominações são desesperadamente buscados (e, mais essencialmente falando, criados) para que se localize o perigo, a inadequação, a incapacidade, a incompetência, a falta.
Em alguns dos saudáveis momentos nos quais se questiona a plenitude e a certeza, precisa-se localizar este horror no outro; em outros, em nós. Talvez fôssemos menos hipócritas, com o outro e conosco, se lidássemos melhor com o fato de que todos somos normais e anormais, haja vista que esta tipologia varia de acordo com quem se propõe a ler o mundo pela ótica da (a)normalidade. E, ainda, talvez fôssemos mais felizes e amorosos se admitíssemos que todos precisam ter suas anormalidades acolhidas. Logo, que a anormalidade não deveria ser tomada em si nem por um critério supostamente técnico (porque tais critérios pautam-se em parâmetros que, como todo parâmetro, são construções históricas, políticas, econômicas e subjetivas), muito menos por um viés moral (o que leva a pensar a anormalidade como uma ofensa e a normalidade como um elogio).
Neste escrito, pretendo caminhar um pouco além nesta direção, dialogando os conceitos de criatividade e normalidade. Percorrendo alguma análise da criatividade humana, proponho que uma das formas pelas quais se expressa os impasses no desenvolvimento da habilidade de ser o que se é, de ser fiel ao que se é, é a exigência para consigo e para com o outro de atender a um padrão. Um sonho de ser como uma abstrata “maioria”, um abstrato “todo o mundo”, um abstrato “igual”.
Comecemos por resgatar, com França, Passos e Rocha (2014), a distinção tão cara à Winnicott entre saúde e normalidade. Nos primórdios de sua produção, este importante expoente da psicanálise inglesa já sinaliza que estar doente, em alguns casos, é um indicativo mais importante de normalidade do que “estar bem”. Em determinadas situações, a sintomalogia que poderia sinalizar uma doença, a depender da função que possui para o sujeito, indica uma implicação do sujeito frente ao seu sofrimento. Ele pode, com seu sintoma-doença, ter justamente encontrado uma margem de autonomia frente aos conteúdos emocionais conflitantes. Assim, o índice que supostamente diria de uma anormalidade indica, nesta circunstância, o espaço de saúde encontrado e criado pelo sujeito.
Para Winnicott, portanto, a saúde não se equivale à normalidade, mas sim à expressão de si autônoma e plena e, em última instância, à expressão de vida. Winnicott não define saúde pelo seu negativo (discorrendo sobre doença), mas por sua postividade; qual seja: a que saúde é vida. Surpreende pensar nesta ideia de que aqueles que se esmeram em ser como todos na verdade não são aquilo que é a única coisa que podem ser: eles próprios. Assim, não sendo, eles não existem psiquicamente. Poderíamos dizer que são os verdadeiros zumbis. Estes, a propósito, que tanto fascinam muitos expectadores de arte, que neles encontram uma via de identificação de sua dificuldade em existir. De seu gozo em ser morto.
Esta problemática já havia de alguma forma sido tratada por Freud (1920/1996), quando chegou ao conceito de pulsão de morte. Desde lá, já se sabe que a satisfação passa tanto pelo prazer, como pelo desprazer e, mais importante para o que se aborda aqui, o humano não deseja essencialmente satisfação, mas quietude. O polo contrário ao da satisfação seria esta quietude. Daí é que o impulso de vida pode reger busca pelo prazer e também pelo desprazer, que o impulso de morte nos move à morte. Veja-se que a oposição anterior entre princípio do prazer e princípio da realidade, frente a esta magistral descoberta, fica em segundo plano. Chega do discurso moderno de que o sujeito resiste a encarar a realidade. Aqui, se chega à resistência de todos nós em viver.
Daí é que se recai na noção de criatividade. A doença seria precisamente a perda ou inibição deste potencial humano, que nada mais é que o potencial de existir. Nascemos, e talvez existimos. É necessário ressaltar que França, Passos e Rocha (2014) destacam que a abordagem winnicotianna reconhece que processos sociais interferem, para além do sujeito, na concretização deste potencial humano de criar. Em outros termos, de ser. Ideia semelhante é compartilhada por Franco (2003, p.48): “Há indivíduos em situações ambientais extremamente adversas que na vida adulta tiveram sua capacidade criativa reduzida, quase eliminada”. Poderíamos aqui pensar em como alguns sujeitos constituir-se-ão como anormais não apenas por incapacidades suas, mas também pelo (não)lugar a eles destinado pelo ambiente. Os eleitos para comporem os excluídos da vez. Em outros termos, a suposta minoria (raciocínio bem condizente, aliás, com a lógica da (a)normalidade).
Toda a releitura de Winnicott, inicialmente pediatra, psicanalista que escutou crianças (inclusive via rádio) cujos responsáveis foram encaminhadas para campos de concentração, a entender que curar não é erradicar o mal, mas cuidar. Talvez isto deva servir não apenas quando estamos na condição de psicanalistas de alguém, mas toda vez que estamos com alguém, na condição que for. Pode-se inclusive pensar que o uso desta lente da (a)normalidade, especialmente em todos os contextos e a todo tempo, apenas é feito por quem se percebe como exorcista.
Uma derivação desta reflexão pode ser também aquela sobre o que espera um sujeito que segue sua vida com o propósito de se curar. Chata vida esta a de quem escolhe a roupa pensando naquela que não surpreenderia (terno preto, cinza, marrom, ao invés do azul-celeste, verde-água ou vermelho-terra). Que escolhe no cardápio aquela opção mais comum e previsível (tipo caipira de limão, em detrimento da caipira de lima da Pérsia). Quem transita pelos parques procurando placas de “proibido” porque não sabe o que lá enxergar se não as encontrar. “O índice da vida criativa é a experiência de sentir que a vida vale a pena. A vida que parece aborrecida ou totalmente infeliz é a vida na qual o elemento criativo não se estabelece” (Franco, 2003, p.39). Lamentável é a criança que, escutando um “não”, não sabe transgredir. Ela não sabe o quê adoçar frente a recusa de um doce.
Questionável é o sentimento de valor que um sujeito que se pretende normal atribui à própria vida. Talvez, no desespero por existir, crie-se o “gourmet”, que aparentemente é uma tentativa de transformar o comum, o simples, o universal, o básico, em algo singular, único, especial. Questionável de fato é o próprio valor de uma vida deste estatuto, apenas reativo e não ativo. Sujeitos determinados pelo fora. Sujeitos ocos. Franco (2003, p.40) diz, destes escravos dos estímulos, que são protótipo do modelo da ação-reação. “…ações compulsivas, de onde a liberdade se afastou. Não tem uma ação que nasça do centro da vida”. No caso destes sujeitos (criaturas, penso eu), não haveria distinção entre compreender e explicar. Agem, sem antes serem. Não haveria, então, o que compreender, bastando a explicação. Eles não criam o mundo onde vivem. Resignam-se a viver no mundo que encontram. Crêem que o que é deve ser. Franco (2003) resgata, a propósito, parte da teoria freudiana para alertar para os riscos que a fuga para a realidade traz, tanto quanto a fuga da realidade.
As ações destes “sujeitos” são mecânicas, heteronômicas, legalistas, moralistas, doutrinárias e, ainda nas palavras de Franco (2003), falsas. O autor se refere à noção de falso-self de Winnicott, que conforme explica Svartman (2000), trata de uma subjetividade cuja expressão a si e ao outro não é autêntica. Sujeitos que, internamente, não são o que são. Aqueles que, externamente, são o que não são. Em última instância, na verdade, estes sujeitos não são. Não existem. São criaturas, e não sujeitos. Seguem buscando qual fila seguir, em qual fim de fila se inserir. Mesmo que sem saber onde chegar, e muito menos onde chegarão, ao seguir filas.
Percorrendo as noções de onipotência, imaginação, espaço transicional de Winnicott, podemos compreender um pouco mais os processos de desenvolvimento dos adultos que tomam o que vem de fora como a única palavra que existe, ou, pelo menos, por resposta última. Ele explica que o ambiente suficientemente bom deve apresentar gradativamente a realidade. Esta gradação serve para que o sujeito exerça algo fundamental: a ilusão de que é ele quem cria a realidade. Esta ilusão, questionada aos poucos, nunca pode ser aniquilada ao ponto do sujeito acreditar que é a realidade que o cria. “Quando a criança não tem a suficiente experiência com a onipotência terá que exacerbar a onipotência na vida adulta, a criatividade artificialmente estabelecida e o controle” (Franco, 2003, p.43). Este possivelmente será o lamentável adulto que paralisa frente à repressão: aquele que vive uma vida previsível, improdutiva, sem sentido, entediante, irreal, fútil. O autor explicita que aqui não importa o que se faz, mas se aquilo que se faz é tocado por si.
O viver não criativo manifesta-se, para Franco (2003), em perturbações do sono, manifestações somáticas, drogadicção, delinquência juvenil, esquizofrenia, quadros esquizóides e outras psicopatológicas que ele não especifica. Entretanto, ouso pensar que este viver não criativo apresenta-se nos detalhes. Na falta de encanto, na falta de brilho, típica de um ego aterrorizado perante o id, acovardado perante os riscos e frustrações de uma vida autêntica. Mais além disto, acredito que este sujeito que não suporta riscos, dúvidas, inquietações, surpresas também é o que busca que o outro assim proceda; afinal, a autenticidade, coragem e esperança do outro espelham a sua mediocridade, mesmice e automatização.
Benedikt (2002), em direção correlata, propõe que a falha na capacidade de imaginação é que leva a seguirmos pelos trilhos da proximidade-moralidade e distância-imoralidade. Para ela, a capacidade de imaginação é que possibilitaria ter empatia e, por correlato, nos sentirmos moralmente responsáveis pelo outro. Como ser moralmente responsável pelo outro quando não se é por si?
MAÍRA MARCHI GOMES é é psicóloga na Polícia Civil de Santa Catarina e doutora em Psicologia pela UFSC.
Referências
Benedikt, Adriana. (2001). Moralidade e responsabilidade em tempos sombrios. Sociologias, (6), 266-279. https://dx.doi.org/10.1590/S1517-45222001000200012
França, Rafaela Mota Paixão, Passos, Maria Consuêlo, & Rocha, Zeferino. (2014). Os sentidos da saúde na obra de Donald Winnicott. Estudos de Psicanálise, (42), 97-106. Recuperado em 20 de agosto de 2019, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-34372014000200011&lng=pt&tlng=pt.
Franco, Sérgio de Gouvêa. (2003). Psicopatologia e o viver criativo. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 6(2), 36-50. https://dx.doi.org/10.1590/1415-47142003002003
Freud, Sigmund (1920/1996). Além do princípio de prazer, In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v.18. Rio de Janeiro: Imago.
Plastino, C.A. (Org.).(2002). Transgressões. Rio de Janeiro: Contra capa.
Svartman, Betty. (2000). Winnicott: conceitos que abrem novos caminhos. Revista da SPAGESP, 1(1), 117-125. Recuperado em 20 de agosto de 2019, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-29702000000100016&lng=pt&tlng=pt.
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