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Seriado “When they see us” lança luz sobre a condenação de inocentes

Por Luiz Eduardo Cani

When they see us é um seriado estadunidense, produzido para a Netflix neste ano, cujo título foi traduzido para o português como Olhos que condenam.

A série é inspirada no célebre caso dos cinco do Central Park (Central Park five), ocorrido em 1989, na cidade de Nova Iorque.

Esta análise será feita a partir da série. Portanto, pode haver diferenças em relação à versão oficial, o que não a torna mais ou menos verdadeira, na medida em que é impossível atingir a verdade em uma reconstituição histórica dos fatos como aquela realizada no processo[1]. Interessa somente a narrativa porque permite compreender as justificativas para que o processo exista e os limites intrínsecos (o primeiro já apontado na impossibilidade de “encontrar” a verdade).

É preciso ter honestidade: a promotora que atuou no caso criticou o roteiro da série: “‘O filme de Duvernay tenta me retratar como uma promotora intolerante e com excesso de zelo, a polícia, como incompetente ou algo pior, e os cinco suspeitos como inocentes de todas as acusações contra eles. Nada disso é verdade’, disse Fairstein em um artigo publicado no The Wall Street Journal. A ex-promotora concorda com a isenção pela acusação de estupro, mas considera que não deveriam ter sido excluídos os demais delitos de que eram acusados e mantém a dúvida sobre seu envolvimento no ataque brutal a Trisha Meili”[2].

Cinco adolescentes inocentes foram presos pelo estupro violento de uma mulher. A investigação foi resultado de um conjunto de “acomodações”: as informações levantadas não eram compatíveis, então foram reorganizadas, nada ligava os cinco ao crime, então as confissões foram extorquidas, uns foram colocados contra os outros, advogados não acompanharam os interrogatórios, os investigados sequer sabiam o que havia contra eles.

Em suma: a polícia tinha um total de “vários nadas”, por assim dizer. Diante da inexistência de um caso, no sentido estadunidense do termo, os elementos da investigação foram forjados.

Condenação de inocentes

A preocupação com a condenação de inocentes não é atual. Os juristas, desde a antiguidade, sempre tiveram algum grau de preocupação com erros judiciais. Na antiga Roma, o jurisconsulto Trajanus expressou, talvez pela primeira vez na história, a célebre frase: é melhor deixar impune um criminoso do que punir um inocente. Essa opinio juris foi posteriormente reafirmada pelo também jurisconsulto Ulpianus[3]. Diante do incremento da judicialização da vida é necessário aumentar o grau de preocupação com o fenômeno, na medida em que o Direito é limitado:

Como os juristas sabem muito bem, acontece que o direito não tende, em última análise, ao estabelecimento da justiça. Nem sequer ao da verdade. Busca unicamente o julgamento. Isso fica provado para além de toda dúvida pela força da coisa julgada, que diz respeito também a uma sentença injusta. A produção da res judicata – com a qual a sentença substitui o verdadeiro e o justo, vale como verdadeira a despeito da sua falsidade e injustiça – é o fim último do direito. Nessa criatura híbrida, a respeito da qual não é possível dizer se é fato ou norma, o direito encontra a paz; além disso ele não consegue ir.[4]

Se o limite último do Direito é a imutabilidade da decisão final do processo (sentença ou acórdão), em decorrência do término da perda do prazo para recursos ou do uso de todos os recursos disponíveis, é preciso tentar estabelecer mecanismos para prevenir erros judiciários.

Esses mecanismos terão a função de tutelar direitos e garantias fundamentais, mas invariavelmente produzirão um efeito colateral: a informação apurada no processo será menos condizente com o evento[5], porquanto haverá um conjunto de mecanismos que filtrarão as provas utilizáveis mediante os critérios de admissibilidade e relevância da prova[6].

Implícitas nas críticas aos direitos e garantias fundamentais está um desconhecimento da história do direito, sobretudo da inquisição, indispensável à compreensão de um modelo de processo sem direitos e sem garantias.

Foi justo um modelo de processo sem direitos e sem garantias que causou a condenação dos cinco inocentes do Central Park.

Mas é preciso ter cuidado, o modelo de processo retratado na série não pode ser chamado de inquisitorial, embora alguns o façam, porque o sistema, no sentido kantiano do termo (conjunto de conhecimentos unidos por uma ideia-fim[7]), apresentado nas cenas é acusatório. O princípio unificador do sistema processual é estabelecido pela gestão da prova[8]: se o juiz produz prova, o sistema é inquisitório, se as provas devem ser produzidas pelo acusador (o acusado não deve precisar provar nada, pois é presumido inocente), o sistema é acusatório[9].

Para encerrar o texto, e dar o pontapé inicial no debate sobre condenação de inocentes, a pergunta que resta é: e o que tem a Filosofia a ver com isso? Se até aqui apareceu muito pouco de Filosofia, a pergunta é pertinente. Para respondê-la, primeiro se precisa dizer o que se entende por Filosofia. A melhor explicação que se conhece é a do professor Ricardo Timm de Souza:

Toda filosofia, e isso bem sabem os filósofos de todas as eras, constitui-se essencialmente em crítica da razão, ou seja, em cuidadoso processamento crítico da(s) racionalidade(s) vigentes em uma determinada época, a partir da percepção qualificada e situada em um determinado locus cultural específico que, não obstante, resgata arqueológica e genealogicamente o passado e abre efetivas possibilidades compreensivas-propositivas ao futuro[10].

Se Filosofia é isso, resta ainda saber o que é razão e o que a razão tem a ver com a condenação de inocentes. Eis o ponto: todas as provas contra os cinco do Central Park foram forjadas para encaixar com as poucas informações que tinham. Depois disso, tudo apontava para eles como culpados. Havia confissões. Era racional reputar os cinco culpados do estupro.

Havia muitas informações desencontradas e muitas dúvidas, mas ainda assim havia racionalidade, tanto na teoria do caso[11] apresentada pela acusação, quanto nas teorias do caso apresentadas pela defesa.

Essas racionalidades exigiram um “cuidadoso processamento crítico” inexistente no processo. Daí porque os acusados foram condenados. As condenações foram cassadas apenas porque um terceiro assumiu a responsabilidade pelos estupros, fornecendo informações precisas e desconhecidas sobre o caso.

Por tudo isso, o papel da Filosofia é produzir o Caos no processo criminal ao questionar, tensionar e duvidar das racionais teorias dos casos. São perguntas simples, mas muito esquecidas: (a) Algo aconteceu? (b) O que aconteceu? (c) Quando aconteceu? (d) Como aconteceu? (e) Com quem aconteceu? (f) Por que aconteceu?[12] (g) Quem se beneficiou com o acontecido?[13]

Se as respostas formarem uma narrativa muito fechada, racional e aparentemente neutra, outras perguntas precisam tensionar as respostas, pois algo está podre e, se ainda não fede, vai feder.

LUIZ EDUARDO CANI é advogado e doutorando em Ciências Criminais pela PUC/RS


[1] Nesse sentido: “a verdade de uma coisa nos foge até que nós não possamos conhecer todas as outras coisas e, assim, não podemos conseguir senão um conhecimento parcial dessa coisa. E quando digo uma coisa, refiro-me, também, a um homem. Em síntese, a verdade está no todo, não na parte; e o todo é demais para nós. Mais tarde isso me serviu para compreender, ou ao menos a tentar compreender, por que Cristo disse: ‘Eu sou a verdade’”. In: CARNELUTTI, Francesco. Verdade, dúvida e certeza. Trad. Eduardo Cambi. Folha Acadêmica do Centro Acadêmico Hugo Simas, Curitiba, n. 116, p. 5, 1997, p. 5.

[2] MARS, Amanda. Promotora retratada em ‘Olhos que Condenam’ critica a Netflix: “A história é falsa”. El País Brasil, São Paulo, 12 jun. 2019. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/06/11/cultura/1560281824_495525.html&gt;. Acesso em: 11 jul. 2019.

[3] “Absentem in criminibus damnari non debere divus Traianus Iulio Frontoni rescripsit. Sed nec de suspicionibus debere aliquem damnari divus Traianus Adsidio Severo rescripsit: satius enim esse impunitum relinqui facinus nocentis quam innocentem damnari”. “Ausentes não devem ser condenados criminalmente disse Trajanus em resposta a Julio Frontoni. E nem por suspeita deveria haver qualquer condenação disse Trajanus em resposta a Adsidio Seuero: seria melhor deixar impune um criminoso que condenar um inocente” [tradução livre]. In: JUSTINIANUS. Corpus juris civilis. Digesta, l. XLVIII, 48.19.5. Disponível em: <http://www.thelatinlibrary.com/justinian/digest48.shtml&gt;. Acesso em: 11 jul. 2019.

[4] AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). Trad. Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 28.

[5] Uma crítica aos erros judiciais decorrentes dos direitos e garantias fundamentais foi esboçada pelo físico Larry Laudan. In: LAUDAN, Larry. Verdad, error y proceso penal: un ensayo sobre epistemología jurídica. Trad. Carmen Vázquez y Edgar Aguilera. Madrid: Marcial Pons, 2013, p. 21-55.

[6] Sobre: TARUFFO, Michele. Relevancia y admissibilidad. In: TARUFFO, Michele. La prueba de los hechos. Trad. Jordi Ferrer Beltrán. Madrid: Trotta, 2005, p. 364-378.

[7] Raciocínio desenvolvido na arquitetônica da razão pura. In: KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 669-681.

[8] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O núcleo do problema no sistema processual penal brasileiro. Boletim IBCCRIM, v. 175, p. 11-13, 2007, p. 12.

[9] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Introdução aos princípios gerais do processo penal brasileiro. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, v. 30, n. 30, p. 163-198, 1998, p. 165-167.

[10] SOUZA, Ricardo Timm de. O nervo exposto: por uma crítica da ideia de razão desde a racionalidade ética. In: GAUER, Ruth Maria Chittó. (Org.). Criminologia e sistemas jurídico-penais contemporâneos II. 2. ed. Porto Alegre: EdiPUCRS, p. 125-136, 2011, p. 125.

[11] Sobre teoria do caso: SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da. Por uma teoria da ação processual penal: aspectos teóricos atuais e considerações sobre a necessária reforma acusatória do processo penal brasileiro. Curitiba: Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2018, p. 375-384.

[12] Nem sempre é possível saber.

[13] Idem.

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