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Ignorância é força

Por Roberta Oliveira Lima

A frase que dá título ao post faz parte do livro 1984, escrito por George Orwell, sendo um dos três slogans do Partido, que também propagandeava que “liberdade é escravidão” e que “guerra é paz”. O personagem principal da história sobrevive ao sistema político do livro graças ao seu emprego no Ministério da Verdade – órgão do governo encarregado de adulterar os fatos para que ele se encaixe dentro da ideologia dominante. Os fatos nesse mundo distópico não valem nada e “o partido recomenda rejeitar as evidências coletadas através de seus olhos e ouvidos. Esse era seu comando mais definitivo.”[1]    

Toco no tema, pois temos experimentado cotidianamente um cenário parecido, e, destaco, de forma pontual, a discussão da semana passada provocada pelo eleito em relação aos dados do INPE sobre o desmatamento da Amazônia, os quais foram considerados “mentirosos, ruins para a imagem do país e ponto final, taokei?!” O diretor do INPE se manifestou de forma contundente e, assim como vários cientistas, pensadores e qualquer ser minimamente racional tem buscado fazer, demonstrou o quão desqualificada e despropositada era a atitude do presidente eleito.[2]

Faço uma pausa em nosso cenário contemporâneo para lembrar de fala não muito antiga do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, não por acaso ídolo de Jair Bolsonaro, em que ele fez um pronunciamento que reflete esse espírito de pós-verdade da extrema-direita estadunidense ou brasileira, ao afirmar ao seu cativo público: “Lembrem-se que o que vocês então lendo e vendo não é o que está acontecendo. Assim faremos a América grande de novo.”[3]

Voltando ao eleito e seus filhos, temos dezenas e mais dezenas de twittadas que mostram que a “extrema-impressa”, como gostam de chamar qualquer meio de comunicação que não lhes preste vassalagem , é perigosa, mentirosa e o quanto o que merece ser validado e divulgado virá somente de seus representantes, oráculos visionários de entidades divinas em goiabeiras ou filósofos terraplanistas.

As narrativas são disputadas, a ciência é tratada como opinião, fatos são distorcidos, em suma, o poder tem se alimentado de mentiras sucessivas e absurdas em muitos momentos. Todavia, isso não acontece de forma gratuita ou impensada, assim como no livro de Orwell e seu Ministério da Verdade, especializado em dominar através da mentira,  o modus operandi de determinados sistemas de governo parece estar ciente de que, com a morte da verdade, a liberdade se esvai e o controle de corpos e mentes dentro de um regime autoritário e potencialmente totalitário se faz possível.

Em relação aos totalitarismos, quero me ater nesse post ao fascismo. Jessé de Souza[4], em sua obra A Elite do Atraso, fala do protofascismo existente em uma parcela da classe média e da elite brasileira. Marilena Chauí[5] também trata tal parcela da população como fascista politicamente, aliás, em tempos em que as palavras parecem já não possuir o poder de dizer ou traduzir fatos e parcelas de realidade, o próprio termo fascismo tem sido considerado elogioso por muitos, uma vez que o fascista ou protofascista se sente imbuído de elevada moralidade ou como se autorretratam em terras brasileiras: um honrado “cidadão de bem”. Nesse instante chamo a atenção para Jason Stanley e sua interessante proposta transformada em livro[6] e que trata do funcionamento do fascismo através de dez pilares por ele enumerados.[7]

Primeiro pilar – Passado mítico, segundo ele, todo líder fascista promete levar a nação de volta a uma versão idealizada do seu passado. Em terras brasileiras, foi e é contumaz ouvirmos homenagens a torturadores e louvores ao período ditatorial de 64.

Segundo pilar – Propaganda. Os fascistas têm uma forma muito peculiar de lidar com comunicação. A propaganda fascista tende à inversão: notícia é chamada de notícia falsa. Anticorrupção é corrupção. E, no caso brasileiro, Ministro da Educação aparece com guarda-chuva dizendo que está chovendo fake news sobre sua gestão.

Terceiro pilar – Anti-intelectualismo. Hitler já afirmava: você precisa que a propaganda tenha apelo diante dos menos educados. Esse terceiro pilar, inclusive, me faz lembrar da seguinte citação: “Primeiro veio a civilização grega. Depois chegou o Renascimento. Agora estamos entrando na Era do Asno” [8]

Quarto pilar – Distanciamento da realidade, sendo necessário destruir a verdade e a racionalidade, que é substituída por teorias da conspiração. A conta de twitter do 02, popularmente conhecido como Carluxo, honrado membro da filhocracia bolsonariana que o diga…

Quinto pilar do fascismo – Hierarquia. No fascismo, as tradições do grupo dominante devem ser seguidas por todos. As minorias devem se adaptar ou sumir. Ou como já disparou o eleito: “as minorias têm que se curvar às maiorias”.[9]

Sexto pilar – Vitimização. No fascismo, os grupos dominantes dizem que são vítimas dos oprimidos. Não é à toa que termos como racismo reverso, heterofobia, cristofobia e similares tem sido jargões recorrentes em determinados setores da sociedade.

Inclusive, nessa hora, vale voltar a Orwel, pois na obra o autor demonstra que a realidade é a maior ameaça contra o fascismo. O fascismo precisa desestabilizar as pessoas e desconectá-las da realidade. O fascismo precisa se representar como a única realidade, assim ele se torna mais forte que a realidade.”

Sétimo pilar – Lei e Ordem. Esse é o princípio que permite aos líderes fascistas criminalizarem as dissidências. Facilmente exemplificável pelo caso da #VazaJato no qual, de forma única, discute-se mais a fonte da informação do que seu escandaloso conteúdo.

Oitavo pilar – Ansiedade/Tensão sexual. O controle de corpos e gozos parece ser uma constante em tais grupos e, no caso brasileiro, se traduz pela homofobia, pela ideia de que existe uma “ideologia de gênero” dominante, cores de roupa a serem usadas por meninos e meninas, etc.

Nono pilar – Patriotismo. A ideia é fazer com que os valores de um grupo sejam superiores aos valores de outro grupo, e com isso, justificar a perseguição. Não por acaso, percebemos que, por piores que sejam os escândalos, as retiradas de direitos, a não retomada do crescimento econômico, a estagnação do PIB, as duas centenas de agrotóxicos liberados, o nepotismo e a corrupção, o que vale é que a “Sodoma e Gomorra chamada PT” perdeu seu poder e foi extirpada do protagonismo político nacional e seu projeto venezuelante de país foi derrotado em nome do “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”.

Décimo pilar – Arbeit Macht Frei, expressão que afirma que o trabalho liberta. Os opositores não são apenas criminosos, são preguiçosos. Assim, ser da oposição é ser vagabundo, sustentado por “pão com mortadela”, orgias e mesadas provenientes da corrupção, no caso de nosso comparativo nacional com a proposta esboçada por Stanley em seu livro.

Ao final da citação dos 10 pilares e de algumas breves digressões, desejo que nos encarreguemos de refletir, ato tão caro quanto raro em nossos dias. Reflitamos se estamos em um cenário fascista ou protofascista, se somos fascistas ou protofascistas, busquemos, ainda que em meio à embriaguez do caos, a lucidez para não deixarmos que os slogans do Partido de 1984 se tornem reflexos de quem somos ou pensamos ser.

ROBERTA OLIVEIRA LIMA é professora da UNESA/RJ e doutora em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF/RJ)


[1] ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras. 2009.

[2] VASCONCELLOS, Jorge. Dados do desmatamento geram bate-boca entre Bolsonaro e presidente do Inpe. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/07/22/interna_politica,772688/dados-do-desmatamento-geram-bate-boca-entre-bolsonaro-e-inpe.shtml. Acesso em: 25 de Jul. 2019

[3] Prof. Jason Stanley in Wake of  Kavanaugh’s Confirmation: Fascism Cannot Operate Without Patriarchy. Democracy Now. 2018. (08m58s). Disponível em: <https://www.democracynow.org/2018/10/12/prof_jason_stanley_in_wake_of&gt;. Acesso em: 05. nov. 2018.

[4] SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.

[5] CHAUI, Marilena. Marilena Chauí: a classe média brasileira é fascista, violenta e ignorante. Disponóivel em: https://www.youtube.com/watch?v=9nc1WhIJ2Gk. Acesso em: 25 de Jul. 2019

[6] STANLEY, Jason. Como funciona o fascismo: a política do “nós” e “eles”.São Paulo: L&PM Editores,2018

[7] Ressalto que não li ainda a obra, mas a conheci através da pesquisa de um aluno no ano de 2018.

[8] Jean-Luc Godard, O demônio das onze horas in: TOLOKONNIKOVA, Nadya. Um Guia Pussy Riot para o ativismo. São Paulo: Ubu editora, 2019.

[9] Jair Bolsonaro diz que a minoria tem que se adequar a maioria 10/02/17. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BCkEwP8TeZY. Acesso em: 25 de Jul. 2019.

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