por Lucas de Melo Prado

ou por que a sociabilidade neoliberal é essencialmente corrupta
“A verdadeira corrupção é a do mercado.”
– Jessé de Souza
Certa noite, em um churrasco com colegas professores, discutíamos se a origem da corrupção estaria no setor público ou no setor privado. A culpa seria do particular, que oferece vantagem indevida ao funcionário público em troca de algum benefício? Ou seria do funcionário público, que exige do particular alguma vantagem indevida a fim de fechar um contrato importante? A conversa se estendeu por horas a fio, e eu voltei para casa com duas impressões: primeiro, a de que estávamos reeditando a discussão folclórica e absolutamente infrutífera sobre o ovo e a galinha; segundo, a de que havíamos estreitado indevidamente a questão, centrando-a nos indivíduos e nos tipos penais, ao invés de encará-la como o problema social e sistêmico que ela efetivamente é. Tentarei, pois, recolocar o debate sobre a corrupção em termos sistêmicos, considerando nosso modelo econômico e social.
Como boa parte do ocidente, temos uma economia de mercado. Não importa o que dizem as teorias conspiratórias e malucas que circulam por setores da extrema direita. Temos uma economia de mercado, e isso é um fato. Ponto.
Michael Sandel[1] argumenta que uma sociedade como a nossa, que possui uma economia de mercado, reconhece no mercado um instrumento eficaz para a alocação de recursos escassos, a fim de produzir e distribuir bens e serviços úteis para a população. Ocorre que as sociedades contemporâneas – a nossa inclusive –, ao adotar um modelo sócio-político-econômico neoliberal, estão gradualmente deixando de “ter uma economia de mercado” e passando a “ser sociedades de mercado”. E o que isso significa? Segundo Sandel, uma sociedade de mercado é um ambiente onde tudo está à venda. Qualquer coisa pode tornar-se mercadoria. Um lugar na fila, por exemplo, pode ser transformado em mercadoria. Um cartão de aniversário e um discurso de padrinho aos noivos, também. Saúde, educação e previdência, idem. Trata-se de um processo de mercantilização da vida.
E por que essa conversão gradual da sociedade em uma sociedade de mercado importa? Michael Sandel aponta que a transformação de um elemento da vida em mercadoria provoca uma mudança em seu critério de avaliação. O lugar em uma fila, por exemplo, é avaliado por ordem de chegada: será atendido primeiro aquele que chegou primeiro. Mas, quem vai ao Beto Carrero World pode adquirir o Fast Pass, que lhe confere o “direito” de burlar a fila das principais atrações do parque. Os primeiros lugares na fila deixam de ser determinados por quem chegou primeiro e passam a ser daqueles que tinham dinheiro suficiente para comprá-los.
Um cartão de aniversário e um discurso de padrinho aos noivos derivam seu valor do tempo, do cuidado e do esmero dedicados por aquele que os elabora. As palavras no cartão ou no discurso valem pela relação entre aquele que escreve ou fala e as pessoas a quem as palavras são dirigidas. Mas, se você não quiser escrever seu próprio cartão ou elaborar seu próprio discurso, há sites na internet que os vendem, prontos ou personalizados, a um módico preço. Obviamente, se você escolher comprar suas palavras, você não vai querer que as outras pessoas saibam disso. Inconscientemente você sabe que um cartão e um discurso comprados, por mais caro que tenham sido, perdem seu valor original. Pode até parecer piegas, mas não há dinheiro no mundo capaz de traduzir o valor de palavras sinceras, vindas do coração. A mercantilização das palavras corrompe seu valor.
Da mesma forma, há uma subversão de valores quando saúde, educação e previdência são mercantilizadas. Isso porque, ao serem alçados à condição de direitos fundamentais pela constituição federal, esses serviços deveriam ser garantidos a todos, independentemente de suas condições financeiras. Sua transformação em mercadorias, porém, suprime-lhes a universalidade característica dos direitos, tornando-os exclusivos àqueles que podem arcar com seus elevados custos.
Além dessa subversão dos critérios de valoração (e precisamente em decorrência dela), a mercantilização da vida, que caracteriza as sociedades de mercado, está intimamente ligada a uma generalização da corrupção sistêmica, por vezes legalizada, por vezes criminalizada. Explico.
Nem toda corrupção é crime no sentido jurídico do termo.
Em direito, a corrupção traduz-se em dois tipos penais: corrupção passiva e corrupção ativa. Na corrupção passiva, corrupto é todo funcionário público que solicita ou recebe vantagem indevida, para si ou para outrem, em razão da função pública que exerce[2]. Já na corrupção ativa, corrupto é todo particular que oferece ou promete vantagem indevida a funcionário público, com o objetivo que obter dele algum favorecimento específico[3].
A linguagem jurídica, porém, é deficitária. Por mais que o direito tenha anseios de completude, a tradução do mundo da vida em linguagem jurídica sempre deixa escapar blocos inteiros de informações e relações relevantes. No âmbito do direito penal, isso se agrava devido ao seu caráter fragmentário, decorrente do princípio da intervenção mínima.
Assim, os crimes de corrupção tipificados no código penal são apenas um aspecto, bastante limitado, do fenômeno social da corrupção. Em verdade, a corrupção é um fenômeno relacionado ao mau funcionamento de sistemas sociais. A corrupção que conhecemos como crime é meramente um sintoma de uma relação doentia entre os sistemas político e econômico. Para compreender melhor essa relação doentia, vale uma rápida explicação sobre a teoria dos sistemas.
Nos séculos que antecederam a modernidade, as estruturas sociais de regulação confundiam-se em uma semântica moral-religiosa, em que bem e mal, transcendente e imanente, verdadeiro e falso, lícito e ilícito, poder e não poder, ter e não ter, belo e feio apontavam sempre para uma estrutura de dominação político-social da “nobreza” sobre a “plebe”. A nobreza identificava-se com os valores positivos do bem, do transcendente, do verdadeiro, do lícito, do poder, do ter e do belo, enquanto à plebe restavam os valores negativos do mal, do imanente, do falso, do ilícito, do não poder, do não ter e do feio.[4]
Segundo Niklas Luhmann[5], a Modernidade inaugura um novo modelo social, organizado em sistemas relativamente autônomos, que desempenham funções sociais diversas. A função social do sistema é dada por um código binário, constituído por um elemento positivo e outro negativo. O sistema estético, por exemplo, é regido pelo código belo (elemento positivo) e feio (elemento negativo).
O código binário de cada sistema diferencia-o dos demais sistemas e confere-lhe consistência interna. Se a estética é regida pelo código belo e feio, a moral é regida pelo certo e errado; o direito, pelo lícito e ilícito; a política, pelo poder e não poder; a economia, pelo ter e não ter, e assim por diante.
Apesar de autônomos entre si, os sistemas relacionam-se por meio de instrumentos que servem de acoplamentos estruturais, traduzindo o código de um sistema para outro. Um contrato, por exemplo, é um acoplamento estrutural que traduz em termos jurídicos uma relação própria do sistema econômico.
Há casos porém, em que não há apenas tradução de um código binário em outro, mas sim um sistema se “apodera” de outro, impondo o seu próprio código binário. Nesses casos, um sistema deixa de funcionar pelo código que lhe é próprio e passa a funcionar pelo código do outro sistema. Um sistema é corrompido pelo outro. Eis aí o que vem a ser corrupção. Nessa perspectiva, a corrupção é um fenômeno sistêmico!
Os crimes de corrupção passiva e ativa são, portanto, apenas sintomas de fenômenos que em muito lhes extrapolam. Eles são a ponta do iceberg de corrupções sistêmicas que têm como foco o sistema econômico. Quando agentes do sistema econômico oferecem vantagens a agentes do sistema político e/ou quando agentes do sistema político solicitam ou aceitam tais vantagens, em troca de algum favorecimento, o sistema político deixa de funcionar pelo seu código binário próprio e passa a funcionar pelo código de outro sistema: o econômico. Em outras palavras, as ações dos agentes políticos passam a ser determinadas pelos interesses de quem pode “comprar” seu favorecimento. Nesse contexto específico, as ações dos agentes econômicos e políticos caracterizam a corrupção do sistema político pelo econômico e, ao mesmo tempo, enquadram-se nos tipos descritos pela lei penal.
Há, contudo, outras tantas situações que escapam dos limites da lei penal, não obstante caracterizem, às vezes mais contundentemente ainda, a corrupção levada a cabo pelo sistema econômico. Uma dessas situações diz repeito à representatividade no congresso nacional: dos 513 deputados federais, 204 (cerca de 40%) são alinhados à bancada empresarial; dos 81 senadores, 38 (quase 47%) fazem parte daquela mesma bancada.[6] Em outras palavras, quase metade do congresso, em ambas as casas legislativas, trabalha na defesa dos interesses dos mais ricos – não raro, em detrimento da grande maioria de pobres e miseráveis, como se verifica nas discussões sobre a reforma/destruição da previdência pública. Isso significa que, em grande parte, o funcionamento do congresso não é determinado pelos interesses dos eleitores, como deveria ser em um sistema político democrático, mas sim por interesses apontados pelo sistema econômico, isto é, daqueles que podem pagar mais, quer seja ilicitamente, por meio de propinas para compra de votos, por exemplo, quer seja licitamente, na forma de doações de campanha. Nesse último caso, para se ter uma ideia do papel determinante do poder econômico em nossos processos eleitorais, vale conferir os números levantados por Sara Reis Silva, no trabalho sugestivamente intitulado “Quanto custa uma vaga de senador no Brasil?”[7].
Mas a corrupção sistêmica do poder econômico não pára por aí. Se Sandel está correto, e nossa sociedade está se transformando em uma sociedade de mercado, onde qualquer coisa pode tornar-se mercadoria, então o sistema econômico está gradualmente expandindo-se e invadindo não apenas o sistema político, mas também todos os outros sistemas sociais. A ética, compreendida enquanto arte da convivência, é corrompida pela lógica do condomínio e das áreas VIPs, a partir da qual os espaços de convivência são cercados e reservados para aqueles que podem pagar por eles. A intensidade da fé é medida pelo valor das ofertadas e as graças de Deus são prometidas àqueles que depositam as maiores somas em altares que mais parecem balcões de negócios. Os padrões de beleza, cada vez mais inatingíveis, demandam procedimentos estéticos, intervenções cirúrgicas e produtos cosméticos que compõem um mercado mundial bilionário. Até as relações de amizade são mercantilizadas e corrompidas ao assumirem a forma de networking. Cada um desses sistemas, ao ser invadido pelo sistema econômico, abandona seu código próprio e passa a adotar o código ter / não ter. Em suma, se você tem dinheiro, você pode comprar a ala VIP, a graça de Deus, o corpo perfeito e as amizades lucrativas. Política, ética, religião, estética, relações interpessoais… na sociabilidade neoliberal, nada escapa à expansão e à invasão do sistema econômico. E esse é um processo fundamentalmente corrupto.
Por isso, é seguro dizer que não existe mercantilização sem corrupção. Mercantilização é a corrupção dos elementos da vida que são mercantilizados. Assim, a mercantilização das filas, das palavras, dos direitos, do meio ambiente, das relações, das mentes, dos corpos… enfim, a mercantilização da vida é, em essência, corrupção.
Portanto, qualquer discussão séria sobre a origem da corrupção deve levar em conta, necessariamente, o modelo de sociabilidade que nós escolhemos construir. Quanto mais nos afundamos no receituário neoliberal, que põe a vida à venda, mais naturalizamos a corrupção capitaneada pelo sistema econômico como centro gravitacional da vida social. Nesse contexto, os crimes de corrupção nada mais são que sintomas de uma sociabilidade que se constrói a partir da corrupção sistêmica e da mercantilização da vida.
Da mesma forma, um combate à corrupção que não se proponha a repensar e reconfigurar nossa sociabilidade é, desde o início, limitado em alcance e eficácia, além de correr sérios riscos de absorver a lógica corrupta, naturalizada pelos mecanismos sociais estruturados pelo modelo neoliberal da sociedade de mercado. A Lava Jato, maior operação anticorrupção da história recente do país, dá testemunho disso.
Durante anos, os membros da força-tarefa da Lava Jato foram alçados à condição de heróis que livrariam o sistema político brasileiro da corrupção. Ao invés de discutirmos comunitariamente as origens sociais e sistêmicas da corrupção e de buscarmos formas mais saudáveis de sociabilidade, transferimos para o Judiciário a responsabilidade de lidar com a corrupção. Todavia, como já comentamos, a atuação do Judiciário é limitada, inclusive porque a própria linguagem jurídica é limitada. Ao abdicarmos do debate político sobre nosso modelo de sociabilidade e transferirmos a responsabilidade ao Judiciário, limitamos o combate à corrupção aos seus sintomas. No caso da Lava Jato, quanto mais a operação evoluia, mais claro ficava o quanto ela era limitada, direcionada e seletiva.
Além disso, as conversas tornadas públicas pelo site The Intercept[8] demonstram como um combate à corrupção desassociado do necessário debate acerca da sociabilidade neoliberal corrupta é vulnerável à própria lógica da corrupção. O conluio entre juiz e procuradores, a falsa imparcialidade, as estratégias processuais para influenciar as eleições, a blindagem de aliados políticos, o alinhamento ao interesse imperialista ianque, os planos para tirar vantagens econômicas pessoais em cima da fama gerada pela operação e todos os escândalos envolvendo o episódio atestam que a força-tarefa, responsável pelo combate à corrupção, era, ela própria, corrupta. Nesse caso, era o sistema jurídico que estava sendo corrompido, a fim de servir aos interesses políticos e econômicos da força-tarefa, sempre em consonância com o projeto neoliberal da extrema direita[9].
É assim que, em uma sociedade de mercado, erigida sobre o modelo neoliberal, até o combate à corrupção é corrupto. Isso porque o neoliberalismo, visando à mercantilização da vida, constitui-se em um projeto de corrupção sistêmica de todos os âmbitos sociais, inclusive do direito e do Judiciário. Os crimes de corrupção ativa e passiva são apenas sintomas de um fenômeno muito mais abrangente, que naturaliza e generaliza a corrupção dos sistemas sociais pelo sistema econômico.
No fim, Jessé de Souza tem razão: “a
verdadeira corrupção é a do mercado”.
[1]SANDEL, Michael J. O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado. Trad. Clóvis Marques. 6. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.
[2]Código penal. Corrupção passiva. Art. 317. Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem. Pena: reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.
[3]Código penal. Corrupção ativa. Art. 333. Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício. Pena: reclusão, de 2 (dois) a 12 (doze) anos, e multa.
[4]V. NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. p. 6 ss. V. também PRADO, Lucas de Melo. Política jurídica, transnacionalidade e jurisdição constitucional. Revista de Estudos Jurídicos UNESP, a. 17, n. 25, p. 125-143, 2013. Disponível em: <https://ojs.franca.unesp.br/index.php/estudosjuridicosunesp/article/view/771>. Acesso em: 26 jun. 2019. p. 134-136.
[5]LUHMANN, Niklas. Law as a social system. Northwestern University Law Review, v. 83, n. 1 e 2, p. 136-150, 1989. Disponível em: <https://heinonline.org/HOL/LandingPage?handle=hein.journals/illlr83&div=12&id=&page=&t=1561601805>. Acesso em: 26 jun. 2019.
[6]DEPARTAMENTO INTERSINDICAL DE ASSESSORIA PARLAMENTAR. Radiografia do novo congresso: legislatura 2019-2023. Brasília: DIAP, 2018. Disponível em: <http://www.diap.org.br/index.php/publicacoes/finish/41-radiografia-do-novo-congresso/4045-radiografia-do-novo-congresso-legislatura-2019-2023-fevereiro-de-2019>. Acesso em: 26 jun. 2019. p. 100.
[7]SILVA, Sara Reis. Quanto custa uma vaga de senador no Brasil?: análise dos gastos de campanha dos candidatos eleitos para o senado federal entre 2002 e 2014. Brasília: Senado Federal, 2015. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/516857>. Acesso em 26 jun. 2019.
[8]GREENWALD, Glenn; REED, Betsy; DEMORI, Leandro. Como e por que o Intercept está publicando chats privados sobre a Lava Jato e Sérgio Moro. The Intercept Brasil, 9 jun. 2019. Disponível em: <https://theintercept.com/2019/06/09/editorial-chats-telegram-lava-jato-moro/>. Acesso em: 4 jul. 2019.
[9]Se, até as eleições de 2018, ainda havia alguma dúvida desse alinhamento, a nomeação de Sérgio Moro ao Ministério da Justiça e a promessa do presidente Jair Bolsonaro de indicá-lo a ministro do STF tornaram óbvio que a atuação do juiz (e chefe informal da força-tarefa) da Lava Jato era informada e determinada por interesses da extrema direita nacional.
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