por Maira Marchi

Sobre o preconceito contra pessoas que não amam sua família
A nossa família sempre é assim, maior que a humanidade.
(Mia Couto)
São comuns as menções à família como sendo o melhor lugar para se estar. Ou, em outros termos, como composta pelas melhores pessoas com quem se pode estar. Em algumas datas este discurso se evidencia, como dia das mães, dia dos pais, natal. Entretanto, não é apenas nestes momentos que os sujeitos incluem por “família” outros sujeitos que não aqueles que a lei prevê, sofrem. Felizmente algumas escolas já não mais denominam “dia dos pais” e “dia das mães” os dias que o mercado estrategicamente escolheu para ganhar mais dinheiro. Algumas escolas hoje celebram o “dia da família”.
Porém, convido aqui o leitor a ir além; o que seja: sermos mais inclusivos, e acolhermos não apenas aqueles que entendem por “família” não aquela que a lei escolheu para si, bem como aqueles que não possuem família. Afinal, viver consigo é viver em companhia. Podemos pensar neste momento naqueles em situação de rua, mas não apenas neles. Podemos pensar naqueles “em situação de casa”, mas sozinhos.
Uma maneira de se ilustrar esta exclusão dos sozinhos é o horror que alguns possuem perante aqueles em situação de rua. Este horror manifesta-se não apenas em violências contra eles, mas também na dificuldade em tomarem por um viés não moral a decisão de alguém por estar na rua. Aquelas falas “mas ele está na rua porque quer!”, “ele tem para onde ir!”, “ele não quer ir pro abrigo porque não quer respeitar regras”, para além da associação entre estar na rua e vagabundagem. Sim, pode-se estar na rua porque se quer, pode-se estar na rua mesmo tendo outro lugar para ir. E, sim, pode-se ser vagabundo. Nenhuma destas opções justifica uma reprovação, a não ser para aqueles que não admitem que alguém pode não ser mão-de-obra (Bauman, 2005).
Evidentemente que pessoas em situação de rua podem se considerar em família, e que esta família não é aquela que a lei denomina por tal. Entretanto, refiro-me neste momento aos sujeitos, em situação de rua ou “em situação de casa”, mas que vivem sozinhos. Falo em nome deles.
Imaginem aquele que não ama aqueles sujeitos que a lei diz que são sua família, ou que até tem alguém para amar (seja aqueles que a lei diz que são “família” ou outros), mas que decide caminhar sozinho. Apenas em sua companhia, melhor dizendo. E imaginem como é ler um outdoor de propaganda de um hotel/pousada a mensagem de que aquele é um lugar pensado apenas para acompanhados por um terceiro. Ou ler um folder de uma construtora dizendo que uma casa só pode interessar a quem possui alguém com quem lá morar. Ou navegar por um site de agência de turismo insinuando que só pode aproveitar uma viagem aquele que vai junto de alguém.
Para problematizar estes aspectos, podemos lembrar da teoria de Winnicott sobre o desenvolvimento humano. Conforme explicam Dias e Loparic (2008), o amadurecimento humano é a integração, que seria uma tendência inata mas só se realizaria em um ambiente facilitador. Haveria algumas etapas para se alcançar esta integração, sendo as principais:
- dependência absoluta em relação àquele que exerce a função de mãe;
- dependência relativa em relação ao mesmo sujeito;
- constituição da identidade pessoal;
- capacidade de ser responsável e de contribuir (brincar, trabalhar, criar artisticamente), alcançando uma independência relativa;
- desenvolvimento da sexualidade inicial e depois madura;
- convivência social criativa e de trabalho produtivo, alcançando o status de adulto.
A teoria winnicottiana do desenvolvimento talvez tenha como ícone para sua compreensão o conceito de tendência anti-social. Ele, pedagogo e posteriormente psicanalista, quando a serviço do governo britânico, atuou junto a crianças cujos responsáveis haviam sido encaminhados a campos de concentração. Além disto, escutava as instituições que trabalhavam com crianças, como escolas e abrigos. Este autor não desconsiderava a influência social nos atos contrários à lei; ao mesmo tempo, reconheceu a influência do que veio a chamar de “deprivação” naqueles comportamentos que se contrapunham à ordem social, desde uma enurese até os comportamentos que aqui e hoje chamaríamos de “atos infracionais”.
Ainda segundo Dias e Loparic (2008), quando as falhas ambientais acontecem na fase da relação de dependência absoluta, elas têm o caráter de privação (privation). Esta condição é grave, porque se dá num momento em que o exterior é inexistente para o bebê. Assim, não há perspectiva de ter esperança em outra situação. Além disto, o sujeito é acometido por severas angústias, daquelas que não podem ser pensadas porque também não há constituição do próprio eu. Devido ao próprio aparelho psíquico pouco desenvolvido neste momento, que não possui a capacidade de fantasiar, imaginar, criar, frente a esta condição, o bebê defende-se por meio da psicose.
Por outro lado, se as falhas ambientais dão-se após o sujeito já ter constituído o meio externo, e, de maneira correlata, constituído o próprio eu, o sujeito sofre uma “deprivação”(deprivation). Há a perda de um ambiente favorável, e a responsabilização do ambiente pela perda. Deprivações geram a tendência antissocial, dentre outras reações defensivas. Nela, o sujeito busca, inconscientemente, ser ressarcido da perda sofrida.
Enquanto ele testa o ambiente para ver se, mesmo mostrando o seu pior, é aceito, é porque há um eu e um objeto constituídos. Há, então, uma condição mais saudável que a psicose. Há, ainda, esperança, por mais que algumas vezes sempre frustrada pelo ambiente.
Bom, vimos que por vezes os sujeitos sentem-se credores em relação à vida. E, por vezes, conforme demarca Winnicott, isto não é apenas uma realidade subjetiva. Por vezes realmente o ambiente está em dívida para conosco, e talvez com alguns sujeitos ele assim sempre esteja, e com uma dívida muito avassaladora. Não, a vida não é sempre boa ou justa. E, sim, há sujeitos com os quais a vida é mais sacana. Só por isto poderíamos ser empáticos com quem não quer andar com alguém. E, ainda, compreendermos que isto pode indicar saúde.
Entretanto, também podemos perceber que viver consigo pode ser a alternativa mais saudável possível. Isto porque, segundo Mizrahi e Garcia (2007) explicam, um ambiente suficientemente bom é aquele que suporta o processo de autonomia do sujeito. É aquele que acolhe os movimentos de discriminação que ele gradativamente faz em relação ao ambiente sem risco de ruptura e solidão. A autonomia do sujeito seria justamente a capacidade de estar só. Estar sozinho é o oposto de estar em solidão.
O ambiente nunca nos preenche. Não é ao acaso que Winnicott conceitua ambiente “suficientemente bom”, sinalizando, dentre outras coisas, que não se pode esperar um ambiente plenamente bom, porque isto significaria uma necessidade do sujeito para com o ambiente. Representaria que o sujeito depende do ambiente para existir. Como se viu, o bom ambiente é aquele que não se propõe a ser imprescindível. Para além disto, em alguns momentos e para alguns sujeitos ainda mais, aquele a quem mais precisamos recorrer somos nós.
Então, lembremos que há quem viva melhor sem família. E, ao lado disto, que há quem viva com família mas nem por isto está bem. Encerro com uma passagem que nos alerta para o que pode significar este elogio à família. Ou, mais essencialmente, este elogio à tutela. Um elogio ao sujeito dependente, que precisa ser grato a alguém hierarquicamente superior:
Nas comunidades em que há uma proporção suficientemente elevada de pessoas maduras, existe um estado de coisas que proporciona a base para o que se chama democracia, sistema de governo no qual os líderes são eleitos e depois dispensados pelo mecanismo eleitoral, os eleitores assumindo responsabilidade pessoal para com esse tipo de agressão. Se a proporção de indivíduos maduros se encontra abaixo de um certo número, a democracia não se torna um fato político e os assuntos da comunidade tendem a ser resolvidos de modo pré-adolescente, por líderes não eleitos e irremovíveis, objetos de identificação encobridora das tendências agressivas não integradas (Dias & Loparic, 2008, p.52)
Referências
Bauman, Z. (2005). Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar.
Dias, Elsa Oliveira, & Loparic, Zeljko. (2008). O Modelo Winnicott de atendimento ao adolescente em conflito com a lei. Winnicott e-prints, 3(1e2), 1-14. Recuperado em 08 de julho de 2019, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-432X2008000100003&lng=pt&tlng=pt.
Mizrahi, Beatriz Gang, & Garcia, Claudia Amorim. (2007). A capacidade de estar só: um contraponto winnicottiano ao ideal contemporâneo de autonomia absoluta. Psicologia em Revista, 13(2), 267-280. Recuperado em 08 de julho de 2019, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-11682007000200004&lng=pt&tlng=pt.
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